Sempre que acaba uma etapa, a rotina é a mesma: respirar (muito até recuperar o fôlego), procurar quem tem o telefone, ligar às “duas miúdas”, seguir para a panóplia de compromissos de quem tem uma camisola no Tour entre a recuperação ativa numa bicicleta estática. “Esta manhã tinha dito que ia tentar ganhar mais uma etapa por elas”. Prometeu e cumpriu, com um autêntico show na chegada a Hautacam que ficou na retina pelo gesto fabuloso de fair-play quando numa descida o adversário Tadej Pogacar teve uma curva mal medida, caiu e ficou à sua espera – algo valorizado pelo próprio esloveno, num aperto de mão em cima das bicicletas que se tornou a imagem de marca desta Volta a França. No último teste ao triunfo na principal prova de ciclismo, não só conservou a vantagem como ainda lhe colocou outro minuto em cima.
???? Jonas Vingegaard with a huge save
???? Tadej Pogacar goes down
???? The yellow jersey waits for his rival to catch up and they shake handsThere really is ???????????????????????????? else like the Tour de France ????#TDF2022 | @discoveryplusUK pic.twitter.com/uavPNO9U7v
— Eurosport (@eurosport) July 21, 2022
Jonas Vingegaard, de 25 anos, é o nome de quem se fala. Ao longo das últimas três semanas, foi mesmo o nome mais falado. Humilde, resistente, sempre agradecido à família e às raízes que fizeram dele quem é. “Sempre pensei apenas em dar o meu melhor todos os dias e depois ver o que acontece na chegada a Paris”, contou esta semana, acrescentando ainda que a namorada o aconselhou a não ler jornais nem redes sociais para minimizar a pressão normal de quem chegou ao seu patamar. Este sábado, o contrarrelógio de pouco mais de 40 quilómetros entre Lacapelle-Marival e Rocamadour era o último teste para quem resistiu a um total de 15 ataques fortes de Pogacar na montanha. Cumpriu. E a chegada aos Campos Elísios, muito provavelmente já com um copo de champanhe para a fotografia, vai ser uma mera coroação.
The pain is over ???? I had one last push in the TT and gave it everything.
Congrats to Jonas and @JumboVismaRoad on a well deserved @LeTour victory.????????????????Also thanks to all riders and staff @TeamEmiratesUAE for these last weeks. ????
Tomorrow we roll into Paris for one final go ???????? pic.twitter.com/FPnmdtwKxS
— Tadej Pogačar (@TamauPogi) July 23, 2022
Mas quem é este dinamarquês nascido em Hillerslev que se vai tornar apenas o segundo dinamarquês a ganhar o Tour depois da surpresa Bjarne Riis que quebrou cinco vitórias consecutivas de Miguel Indurain em 1996? Em resumo, um espelho do que fez nas estradas francesas… a começar na Dinamarca, o décimo país a acolher a saída da Volta a França que apresenta números que explicam a “explosão” de novos corredores do país. Um exemplo: em Copenhaga, 95% dos 602.000 habitantes tem uma bicicleta (pelo menos) e 70% utilizam-na para irem trabalhar. Vingegaard, por influência da família, não foi exceção.
O pai, Claus, é construtor de fábricas de salmão na Noruega mas que costumava passar férias na zona dos Alpes franceses, local onde o filho Jonas ia aproveitando para melhorar os seus atributos. Melhorar ou, no mínimo, apurar o gosto pela modalidade. Aliás, em entrevista à TV2, a mãe, Karina, contou que teve de fazer um ultimato em relação ao ciclismo. “Quando competia com as outras crianças nunca ganhava nada. Com sorte podia ser um dos três que conseguia pontos. Até agora, nunca tinha subido sozinho a um pódio. Era um pouco selvagem…”, explicou, recordando um episódio em 2012 que acabou por fazer o clique.
Jonas Vingegaard (Thy Cykle Ring)
11 år gammel
DM TT 2008, Hobro14 år senere skal Vingegaard ud at køre sit livs enkeltstart. De grønne Thy-farver er skiftet ud med gult. I dag vinder han Tour de France. #TDF2022
Kom så, Jonas!????@JumboVismaRoad pic.twitter.com/6NVT5e8hWU
— Anders Mielke (@AndersMielke) July 23, 2022
“Dois meses antes de começar a escola desportiva de Ikast disse-me que não queria continuar a andar de bicicleta. E foi aí que lhe disse: ‘Tens de ir a não ser que queiras ficar em casa e estudares na primária local’. Deixámos que fosse para a escola desportiva mas tinha que ir para lá sempre de bicicleta mesmo que não competisse. Caso não se sentisse bem, deixava. Tudo mudou nesse ano. Voltou a ir para cima da bicicleta, melhorou e nunca mais parou. Foi a única vez que ouvimos que estava farto da bicicleta”, destacou. Nessa altura, o bichinho da modalidade ficara de vez, algo que começou quando foi ver pela primeira vez, com dez anos, o Tour da Dinamarca que passava por Thisted. Nessa altura jogava ainda futebol na escola mas os Mundiais de ciclismo em Copenhaga, em 2011, mudou de vez o seu trajeto.
No entanto, o estrelato também obrigou a um caminho de esforço e outras profissões, numa história que foi agora recuperada com imagens de um vídeo de 2016 ao canal dinamarquês DR. “Terminei a escola em 2016 e fui logo trabalhar. Primeiro fui para um mercado de peixe, trabalhei lá quase um ano. Depois tive uma lesão, fiquei sem fazer nada uns tempos e quando recuperei fui para uma fábrica de peixe. Deve ter sido esse o vídeo que viram, estive lá até ao verão de 2018 e depois assinei com a Jumbo-Visma em 2019”. A “lesão” que refere foi mais grave do que aparentava nas declarações, com uma fratura na perna que o deixou vários meses parado de maio de 2017 ao início de 2018, mas voltou com a rotina de trabalhar de manhã na fábrica e treinar durante a tarde. Em 2019, só mesmo uma equipa acreditou nele. E bem.
Tour de France leader Jonas Vingegaard working in a fish-packing plant back in 2017, before turning pro. pic.twitter.com/ClZXtzxaM9
— CafeRoubaix (@CafeRoubaix) July 13, 2022
Após começar na Coloquick-CULT como estagiário em 2016 e membro da equipa nos dois anos seguintes, a passagem para a Jumbo mudou de vez o seu trajeto. Teve algumas vitórias isoladas em provas de menor dimensão, ajudou depois Primoz Roglic a ganhar a Volta a Espanha de 2020, deu nas vistas como mais do que uma promessa na última Volta a França, quando agarrou na batuta da equipa depois dos azares do seu companheiro esloveno e acabou em segundo só atrás de Pogacar. Em 2022, teve o ano de afirmação.
???????? Jonas Vingegaard
It’s a dream day. It means everything, it’s really incredible. It’s the biggest race in cycling, and we did it. Since last year I always thought I could win it. It’s a relief, I’m so happy."#TDF2022 https://t.co/apllI1PCyK
— Tour de France™ (@LeTour) July 23, 2022
Depois do segundo lugar na Tirreno-Adriático e no Critério Dauphiné, além da sexta posição na Volta ao País Basco, Vingegaard era uma das apostas da Jumbo-Visma versão 3.0 da “banana mecânica” que levava ao Tour Roglic, Wout van Aert e Vingegaard. Havia quase uma “sede de vingança” depois do fracasso de 2020 com uma estratégia que caiu no último contrarrelógio individual e dos azares de 2021 em torno de Roglic. Em 2022, no último domingo, voltaram a surgir os fantasmas: Roglic desistiu, Steven Kruijswijk também, Vingegaard sofreu uma queda que lhe provocou algumas feridas. No entanto, à terceira foi mesmo de vez e o dinamarquês esteve imperial na resposta a todos os ataques. Como Pogacar foi admitindo esta semana, não foi ele que perdeu este Tour mas sim Vingegaard que ganhou este Tour.
Jonas Vingegaard sealed his first Tour de France victory in the final time-trial of the 2022 race, although not without a heart-in-mouth moment on a final descent when he almost crashed on a curving bend.
By @jeremycwhittle https://t.co/9OXmuDjpp1 #TdF2022
— Guardian sport (@guardian_sport) July 23, 2022
Faltava apenas a confirmação “matemática” do sucesso, porque apesar de tudo era um contrarrelógio de 40,7 quilómetros e uma queda poderia fazer depois toda a diferença. Aliás, tinha sido o dinamarquês a admitir que teria especiais cuidados, sendo que já depois do terceiro ponto intermédio chegou mesmo a sair da estrada por ligeiros segundos sem perder o equilíbrio. Pormenor: estava na frente desse parcial. Esse momento teve influência no andamento mas o próprio acabou por desacelerar para não colocar mesmo em causa o triunfo de Wout van Aert. Depois, vieram as lágrimas. De Vingegaard, que nos últimos metros viu a vitória certa; da família, namorada e filha, as primeiras pessoas que abraçou; de Wout van Aert, sensibilizado pelo gesto do companheiro de equipa. E se já tinha um grande avanço em relação a Pogacar, conseguiu ainda aumentar essa distância no contrarrelógio com menos três segundos do que o esloveno.
An incredible day for @JumboVismaRoad and an emotional one for ???? @woutvanaert
Une journée incroyable pour la @JumboVismaRoad et beaucoup d'émotions pour ???? @WoutvanAert !#TDF2022 pic.twitter.com/1x7TUywjq8
— Tour de France™ (@LeTour) July 23, 2022
???? "A dream day" for ???????? @WoutvanAert, ???????? Jonas Vingegaard, and the whole @JumboVismaRoad team!
???? "Une journée de rêve" pour ???????? @WoutvanAert, ???????? Jonas Vingegaard et toute l'équipe @JumboVismaRoad.#TDF2022 | @Continental_fr pic.twitter.com/7JqtCuxYEi
— Tour de France™ (@LeTour) July 23, 2022
Na classificação geral, Aleksandr Vlasov foi o grande vencedor do dia, subindo de sétimo para quinto lugar da geral sendo o melhor da Bora. Nas restantes posições, Vingegaard reforçou a liderança com 3.34 de avanço em relação ao antigo vencedor, Tadej Pogacar (UAE Emirates), e 8.13 de Geraint Thomas (Ineos). Seguem-se David Gaudu (Groupama, 13.56), Vlasov (16.37) e Nairo Quintana (Arkéa, 17.24).
???? À @WoutvanAert la victoire d'étape, à Jonas Vingegaard le #TDF2022.
⏱ Un ultime contre-la-montre pour parachever le triomphe de @JumboVismaRoad !
⏩ Voici le résumé de cette 20ème étape. pic.twitter.com/bfp5iT10PJ
— Tour de France™ (@LeTour) July 23, 2022
???? Jerseys and rankings after stage 20
???? Maillots distinctifs et classements après l'étape 20#TDF2022 pic.twitter.com/W76VYjCYyc
— Tour de France™ (@LeTour) July 23, 2022