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"Muito Barulho por Nada": o regresso a um Shakespeare feminista, amargo e doce

Este artigo tem mais de 2 anos

Teatro nas ruínas do convento do Carmo é um sonho de uma noite de verão, mais ainda quando são colocadas de lado as modas e se insiste nos clássicos, como este Skakespeare revisto por António Pires.

Beatriz e Benedito um dos pares românticos cuja relação se estabelece numa posição de igualdade entre homem e mulher
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Beatriz e Benedito um dos pares românticos cuja relação se estabelece numa posição de igualdade entre homem e mulher

Beatriz e Benedito um dos pares românticos cuja relação se estabelece numa posição de igualdade entre homem e mulher

A noite é de verão, a guerra terminou, os jovens dançam e sonham com os amores e as glórias. No jardim das oliveiras, à beira do Mediterrâneo, há arbustos e bancos e escadarias, pelo ar voluteia o hino erótico de Serge Gainsbourg, “J’te aime… moi non plus”. O tempo cronológico não importa porque Shakespeare, como todos os grandes contadores de histórias, é sempre intemporal. Este prelúdio de alegria, que remete para as festas sazonais pagãs, tão propicias às comédias e ao erotismo, é apenas uma forma que António Pires, o encenador da peça e homem do leme do Teatro do Bairro, usa para dizer ao que vem: ele continuará obstinadamente a usar estes verões nas ruínas do convento do Carmo, em Lisboa, para encenar textos clássicos “que as pessoas têm o direito de conhecer”, mas dando a cada um deles uma volta que os torna acessíveis aos espetadores comuns, e aos muitos estrangeiros que ali acorrem, pois as peças são legendadas em inglês. E também contrariando outro modismo, que têm vindo a corroer o teatro em Portugal, o das peças que ficam três dias em cena. Esta, como outras do Teatro do Bairro, fica em cena várias semanas.

“Tanto Barulho por Nada” — ou “Much Ado About Nothing” — é uma comédia amarga e doce, escrita pelo dramaturgo inglês por volta de 1598/99, a tradução foi feita, nos anos 90, por Sophia de Mello Breyner para a Cornucópia, um texto poliédrico, vanguardista e crítico, que testemunha como certos homens e mulheres são capazes de pensar contra as coercividades do seu tempo e fazer uma obra que atravessa muitas épocas e formas de viver sempre a levantar questões atuais. Entre a noite desta quarta-feira, 27 de julho, e a de 20 de agosto, faça calor ou faça frio (é sempre melhor levar um casaco), há um Shakespeare a questionar a forma como a sociedade Isabelina fazia das mulheres uma moeda viva para transações políticas, diplomáticas, financeiras, como lhes retirava o direito a serem donas do seu corpo, da sua sexualidade e lhes exigia modéstia, submissão, fidelidade e, sobretudo, virgindade.

A insolente Beatriz a tentar voar para ouvir o que dizem a prima Hero (sentada) e a a aia Margarida (de pé)

“Much Ado About Nothing” é uma expressão que descreve uma reação excessiva a uma coisa banal e que Sophia encontrou uma congénere portuguesa em “Tanto Barulho por Nada”. Este “nada” pode induzir no espectador a ideia de alguma superficialidade. Errado. Esta é uma das peças mais complexas do bardo de Strattford-upon-Avon: desde o engenho linguístico, cheia de trocadilhos, alusões, paronímias, antíteses, aliterações, aforismos, latências, sarcasmos, os jogos retóricos (muitos deles de índole obscena) até à estrutura da narrativa, aos motivos e símbolos que utiliza.  “Tanto barulho…” é um trabalho difícil de categorizar, porque se apresenta como uma comédia de enganos, mas o seu sub-plot é amargo, sombrio e reflete um forte desencanto na condição humana, mesmo nos jovens, que noutros trabalhos do autor representavam a esperança e a redenção.

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Tal como era hábito na burguesia em ascensão social que queria impressionar a nobreza, o escritor renascentista investe pelo palavreado dentro e não se poupa em ostentar todo o seu arcaboiço linguístico, que vai do calão das gentes humildes à erudição dos nobres ditos esclarecidos. Tudo isto tem uma intenção cómica e não terá facilitado a vida à tradutora e poeta Sophia.

Desde logo pelo titulo; “nothing” era, à época, uma palavra comum para designar os genitais femininos, mas, como a paronímia abunda no texto, a palavra também pode remeter para “Noting”, de notar, reparar, ver. E as duas hipóteses são absolutamente plausíveis pois, um dos temas principais desta história, que Shakespeare terá ido buscar a Ariosto (autor italiano do século XV), é a exigência obsessiva da virgindade feminina, uma imposição da sociedade patriacal judaico-cristã, que se tornou um alicerce de toda a honra familiar, punível até coma pena de morte ou o degredo em conventos.

Se, por um lado, o título alude a esta questão central da peça, ainda que de forma obscena, alude ao mesmo tempo às constantes intrigas, traições, vigilâncias e bisbilhotices que ocupavam a vida das classes ociosas em tempo de paz, deixando de lado as questões importantes do reino. Esta é outra das criticas centrais da obra. Shakespeare fá-las ao seu tempo, mas que servem para qualquer tempo (se ele pudesse adivinhar o delírio coletivo de uma rede social…). Outro dos aspetos a ter em conta é que “aquilo que se note, que se vê”, nem sempre corresponde a essa coisa esquiva que é a verdade. Muitos dos enganos, dos desencontros, intrigas, zangas, (mas também dos encontros, cumplicidades) reside naquilo que as personagens julgam ver nos outros e em si mesmas. Na verdade todos eles se conhecem muito mal, são, e recuperando as palavras de Bergman, “analfabetos emocionais” (Cenas da Vida Conjugal).

Os amigos de Benedito conspiram para que aquele solteiro convicto acredite que Beatriz está apaixonada por ele. Ele rapidamente acredita

António Pires, que é um dos encenadores que mais consistentemente tem usado o trabalho de poetas nas suas peças, quis usar esta tradução de Sophia, feita para ser levada à cena, e que portanto tem em conta todas estas nuances estéticas e literárias. Sabendo que corre o risco de muita gente entender esta peça como um ataque às mulheres e não à sua defesa e uma critica aos homens, Pires não só arrisca fazê-la, como a torna ainda mais provocadora, um teste à capacidade do publico entender a ironia, quando decide não fazer uma recriação da época, e introduzir elementos de outras épocas, como a canção de Gainsbourg, musica clássica remisturada com sintetizadores, gravadores musicais que utilizam cassetes (que os jovens atores não sabem usar) e, sobretudo, decide erradicar uma certa ideia de romantismo, sentimentalóide e telenovelesco a que esta trama pode apelar.

Não, aqui os pares românticos mal se tocam, só discutem, e não dão beijos a la Hollywood. Porquê? “porque eu queria cortar isso, um beijo não nos diz nada sobre a questão mais vasta que está aqui em causa”, explica, numa roda de imprensa, o encenador a uma jornalista escandalizada por não haver beijos entre os amantes.

Shakespeare confronta-nos com o problema das limitações do conhecimento empírico sensorial, exprime a reacção coletiva às vicissitudes da reputação individual, denuncia a situação da mulher no contexto patriarcal da sociedade isabelina, reflete sobre a sequência amor-casamento-família e respectivo estatuto social, observa o luxo e a ostentação da burguesia mercantil em ascensão, e finalmente problematiza a hierarquia dos valores que convergem para o sentido da honra, da auto-estima e da dignidade individuais.”

[João Almeida Flor, na introdução à peça traduzida por Sophia de Mello Breyner”]

Muito Barulho por causa de mulheres insubmissas

A insubmissão feminina parece ser um problema sem origem  e sem fim. De Eva do Antigo Testamento a Shakespeare. De Shakespeare ao #Metoo. São séculos, milénios de guerra. Uma guerra que, nesta peça se materializa na hilariante relação de amor-ódio entre Beatriz e Benedito. Mas vamos ao enredo: tudo se passa na cidade de Messina, na Sicília, depois de uma guerra. Os homens regressam como heróis e as muitas piadas de caserna, alusões ao seu estatuto de bravos guerreiros e à sua agilidade no manejo de armas, não pode deixar-nos de fazer pensar, como alguns críticos, que toda este exibicionismo é, sobretudo, uma competição de carácter fálico (António Pires não consultou o Dr. Freud, mas ele certamente concordaria) até porque, segundo a linguagem psicanalítica, a arma é um símbolo fálico por natureza.

"Muito Barulho Por Nada" é uma comédia de enganos, encontros e desencontros onde ninguém é quem pensa ser

Dois amigos, Claúdio e Benedito (o abençoado  mas, ao mesmo tempo “Benedick” , o bem-dotado), regressam em glória à sua casa depois de terem combatido. Cláudio, imaturo e um tanto tolo, para se aproximar do senhor do reino, Leonato, julga-se apaixonado por Hero, a sua jovem de única filha e herdeira e pede-a em casamento. Com eles vive Beatriz (a abençoada), sobrinha de Leonato e dona de uma lucidez crua, amarga, selvagem, a fazer lembrar outra personagem shakespeariana, Katherine de “A Megera Domada”. Ao contrário de Hero, Beatriz não sonha casar, não acredita no casamento, desconfia dos homens e em nenhum momento parece preocupada coma sua virgindade. Tem com Benedito uma relação de igual para igual e nunca deixa de ter a última palavra numa discussão com ele.

No lado sombrio desta história estão D. João, que perdeu a guerra e odeia Leonato, e o seu amigo de fraco carácter Borraquio. Sabendo do casamento entre Cláudio e Hero, decidem vingar-se tentando destruir a honra da família. Com cumplicidades espúrias com a aia Margarida e artimanhas, conseguem convencer Cláudio que Hero era amante de Borraquio. Sem duvidar da palavra de D. João e sem falar com Hero, o jovem decide confrontar e humilhar a noiva, acusando-a de traição durante a cerimónia de casamento. Hero cai como se morta, o pai afirma que prefere que ela morra a desonrar a família.

Nesta cena, particularmente cruel, podemos ver a tão atual situação das mulheres, não só em certos países e culturas onde a virgindade é uma questão altamente problemática. Podemos, ao mesmo tempo, ver a situação de todos os são difamados e não se podem defender porque não têm poder. Isto acontece todos os dias, em todo o mundo, mais de quatro séculos depois da escrita desta peça. Ainda que o enredo tenha servido a muitas telenovelas e a bons e maus filmes, com Shakespeare, Sophia e António Pires não estamos no território dos beijinhos. Estamos no território da política.

Quando os, magrittieanos, guardas noturnos, quais anjos da guarda, desmarcaram os conspiradores e salvam Hero

A trama será desmontada por dois guardas noturnos que ouvem, por acaso, a conspiração entre D. João, Borraquio e Margarida, a aia e Hero. No entanto, como todos tinham sido levados a crer que Hero tinha morrido, ela teve tempo de descobrir a verdade e Cláudio teve tempo de se arrepender. Por seu turno, Benedito e Beatriz transformam os seu flirt mascarado por um habitual diálogo ácido e sarcástico, na descoberta inusitada do amor. Hero regressa, reencontra e Cláudio mas em todos este acontecimento quase trágico dá origem a um amadurecimento de carácter. E aqui há entra a forma engenhosa como Shakespeare articulou a história, fazendo com que os dois pares amorosos intercalem o protagonismo, permitindo ao espetador perceber e comparar duas formas diferentes de estar na vida, no amor, no casamento: com submissão, sonho, dogma ou com liberdade, com admiração e igualdade.

Neste momento da narrativa António Pires apaga as luzes a Shakespeare e ao público, corta a cena dos casamentos que está na peça original, e deixa-nos sem saber se Hero perdoa mesmo   Cláudio depois da forma como ele a humilhou publicamente, se Beatriz e Benedito abdicam do seu orgulhoso celibato e casam. Ou seja, apaga qualquer traço de romantismo que assegure aos espetadores que existe, algures, um final feliz, uma redenção e, tal como faz o dramaturgo inglês, abandona-nos, com uma gargalhada, na oscilação entre o conhecimento e a ignorância da verdade. Mas, haverá afinal outra condição senão esta?

“Muito Barulho Por Nada” está em cena a partir desta quarta-feira, dia 27 de julho, até 20 de agosto, nas ruínas do Convento do Carmo, em Lisboa, de segunda a sábado, sempre pelas 21h30. O espetáculo é legendado eletronicamente em inglês

Encenada por António Pires com o Teatro do Bairro, a peça conta no seu elenco com: André Marques, Carolina Campanela, Carolina Serrão, Eduardo Frazão, Graciano Dias, Gonçalo Norton Hugo Mestre Amaro, João Barbosa, João Sá Nogueira, João Veloso, Mariana Branco e Mário Sousa.

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