O tema das crianças e adolescentes que possuem ou adquirem poderes paranormais tem bastante história quer na literatura fantástica, de terror e de ficção científica, quer no respetivo cinema. Basta recordar “A Aldeia dos Malditos”, de Wolf Rilla, “O Poder do Fogo”, de Mark L. Lester, “Carrie”, de Brian De Palma (estes dois baseados em livros de Stephen King), a série de filmes “X-Men” ou “Chronicle”, de Josh Trank. A eles junta-se agora “Os Inocentes”, escrito e realizado pelo norueguês Eskil Vogt (o argumentista de “A Pior Pessoa do Mundo” e de “Thelma”, de Joachim Trier, este com uma história envolvendo também uma rapariga com capacidades paranormais), que faz uma abordagem muito nórdica ao tema.

“Os Inocentes” pode ser definido como “’Scanners’ em versão júnior”, embora sem sombra do espalhafato “gore” do clássico de David Cronenberg. A história passa-se num anónimo bloco de apartamentos dos subúrbios de uma grande cidade. Ida (Rakel Lenora Fløttum), de nove anos, e a sua irmã mais velha autista, Anna (Alva Brynsmo Ramstad), mudaram-se com os pais para lá recentemente. No mesmo prédio moram também o jovem e solitário Ben (Sam Ashraf) e a pequena Aisha (Mina Yasmin Bremseth Asheim). Os quatro miúdos têm poderes telecinéticos vários, e em diferentes gradações – deslocação e destruição de objetos, telepatia, controlo das mentes alheias, presenças calmantes –, que são mais fortes quando estão todos juntos e podem funcionar em rede. Sendo que Ben e Anna são os mais poderosos do quarteto.

[Veja o “trailer” de “Os Inocentes”:]

O que se vai seguir está nos antípodas de uma inofensiva aventura juvenil. Ben é um miúdo cruel que não hesita em matar animais, tem uma relação difícil com a mãe e é vítima de um rufia do bairro, e Aisha, a mais sensível do grupo, é a primeira a perceber que as coisas não vão correr bem. Os adultos não fazem a menor ideia dos poderes dos seus filhos e passam ao lado da crescente atmosfera de tensão, temor e confronto que se desenvolve entre eles, e que Vogt instala e maneja de forma brilhante e emocionalmente eficaz (e muito através do som), praticamente sem recorrer a efeitos especiais, escorando-se nas interpretações dos miúdos, todos formidáveis, e num “suspense” de aflição surda. O tom sempre reservado e contido do filme contribui para a sua força e intensidade.

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[Veja uma entrevista com o realizador:]

O enredo de “Os Inocentes” inclui várias situações muito perturbadoras (ver o que Ben faz à mãe, e obriga a mãe de Aisha a fazer à filha, através da sua arrepiante capacidade de controlo mental) o que de certeza irá impedir um “remake” americano (a menos que bastante “amaciado”), e Vogt usa muito bem o elemento fantástico como auxiliar da caracterização e amplificador das diferentes personalidades das quatro crianças, e como modificador da situação de Anna, que começa a falar quando está com os outros. A origem dos poderes telecinéticos nunca é explicada, mas o filme deixa sugerido que algumas crianças podem já nascer com eles, caso das deficientes.

[Veja uma cena do filme:]

O clímax do filme, com a batalha mental invisível entre Ida e Anna de um lado, e Ben do outro, travada no meio do parque infantil do bairro onde crianças e adultos brincam e passeiam, sem se aperceberem por um momento do colossal combate de mentes que se está a desenrolar no meio deles (com a exceção de um bebé que começa a chorar de repente, e de dois ou três miúdos que assomam às varandas e janelas), é um dos grandes momentos do cinema fantástico recente. “Os Inocentes” é um filme a não perder pelos ferrenhos do género, e merecedor de um culto imediato e fervoroso.