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"Não somos nem inteiramente bons, nem maus": Philip Glass e Kafka vão à ópera no São Luiz

Este artigo tem mais de 1 ano

"In the Penal Colony / Na Colónia Penal" surge a seis mãos: Miguel Loureiro, Martim Sousa Tavares e Miguel Pereira. Um espetáculo sobre a tirania e a compaixão, com estreia marcada para 15 de março.

O encenador Miguel Loureiro explica que, acima de tudo, a peça lança questões a que importa voltar. “Temos a questão da arbitrariedade do mal e o Kafka nisso é exemplar. Mas há as questões éticas e dúvidas sobrenaturais sobre esse lugar de onde vem o mal"
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O encenador Miguel Loureiro explica que, acima de tudo, a peça lança questões a que importa voltar. “Temos a questão da arbitrariedade do mal e o Kafka nisso é exemplar. Mas há as questões éticas e dúvidas sobrenaturais sobre esse lugar de onde vem o mal"

Estelle Valente

O encenador Miguel Loureiro explica que, acima de tudo, a peça lança questões a que importa voltar. “Temos a questão da arbitrariedade do mal e o Kafka nisso é exemplar. Mas há as questões éticas e dúvidas sobrenaturais sobre esse lugar de onde vem o mal"

Estelle Valente

Tudo começa no meio de uma escuridão envolta por um som tempestuoso. Da plateia para o palco, um homem aproxima-se de um cenário cru, quase despido, onde existe apenas uma estrutura em andaimes. O visitante depara-se com uma complexa máquina de execuções pronta a funcionar sobre um condenado anónimo, controlada por um oficial sem remorsos. Estamos numa colónia penal, em lugar e tempo incerto, controlada por uma qualquer pátria distante daquele lugar, que ali exerce o seu poder sob uma premissa colonial. A realidade e o dia-a-dia daquele inóspito local são marcados pela violência e vividas por homens sem nome que exercessem de forma mecânica a sua função neste sistema punitivo.

Poder-se-ia dizer que é a plataforma ideal para uma certa banalidade do mal, neste caso a tradução de um conto homónimo de Franz Kafka, transformada em ópera por Philip Glass, com um libreto adaptado de Rudy Wurlitzer. In the Penal Colony / Na Colónia Penal chega agora ao palco do Teatro São Luiz, em Lisboa, com encenação de Miguel Loureiro, direção musical de Martim Sousa Tavares e movimento coreografado de Miguel Pereira. Estreia-se esta quarta-feira, dia 15, na sala Luís Miguel Cintra, onde permanece até dia 26, estando também já marcada uma apresentação no Coliseu do Porto, no dia 25 de outubro.

Na entrada para este universo de carácter distópico, regressamos à ideia de prisão e de um sistema repressivo do qual não é fácil (ou possível) escapar. Estamos, afinal de contas, numa ilha tropical, marcada pelo calor e pela humidade, onde há muito que a ética ou a norma deixaram de fazer parte da regra. É a materialização extrema daquilo que o filósofo francês Michel Foucault nomeou como sistema de vigilância e repressão, na sua célebre obra Vigiar e Punir, local onde a prática discursiva está dominada por pulsões de morte, thanatos, como aprofundamento de um pathos totalitário.

Não há livre-arbítrio para aqueles que ali se encontram como reclusos. Há, antes, espaço para a insanidade e para a desumanidade daqueles que exercem poder. Escrito por Frank Kafka, em 1914, e publicado no final da Primeira Guerra Mundial, este conto funciona como analogia para a barbárie que as formas de poder podem adquirir, bem como alegoria dos horrores que as sociedades conheceram desde o início do século XX, mergulhadas em guerras por vezes quase ignoradas, injustas com os mais fracos, cruéis com os adversários e cada vez mais dominadas pela tecnologia e por tecnocratas impiedosos e sem moral.

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Através do libreto, escrito em inglês, que segue à justa o conto de Kafka, e interpretado pelos cantores André Henriques (barítono) e Frederico Projecto (tenor), seguimos uma história marcada pelo absurdo e pela crueldade. O guarda procura desde o primeiro momento explicar com funciona o escarificador – agora ampliada como máquina de morte – ao visitante que assiste com uma certa incredulidade à malvadez desconcertante. O condenado, de quem pouco sabemos, não fala, nem tão pouco sabe qual o destino a que se encontra fadado.

O quinteto de cordas, no fosso, segue a partitura de Glass, numa melodia minimalista, mas também ela apreensiva face ao desfecho que se vai aproximando à medida que é chegado o momento de execução. O guarda principal mantém a postura mecânica. Fala de uma tradição começado por um antigo comandante, entretanto falecido, e que se deve preservar. Todos os elementos parecem orientar o guarda na tarefa de aprofundar o uso desta máquina. O visitante – que somos todos nós enquanto espetadores deste dispositivo de tortura – parece querer encetar um debate que leve a um outro desfecho e à procura pela redenção daquele sistema de encarceramento.

O eco do Tarrafal e do Estado Novo

Foram várias as óperas pensadas pelo trio português antes de chegarem a este conto de Kafka e à sua transformação em ópera, feita pelo compositor norte-americano Philip Glass e estreada no ano 2000. Interessava-lhes uma peça, possível de ser colocada em palco e com um dispositivo aparentemente simples, mas cujo tema fosse de alguma forma intemporal. Ao Observador, o encenador Miguel Loureiro explica que, acima de tudo, a peça lança questões a que importa voltar. “Temos a questão da arbitrariedade do mal e o Kafka nisso é exemplar. Mas há as questões éticas e dúvidas sobrenaturais sobre esse lugar de onde vem o mal. O condenado é acusado de não ter batido continência… poderia ser outra coisa qualquer, mas o que vemos é que o mal tem de acontecer. É um pathos que tem de se finalizar. É uma reflexão que se mantém pertinente.”

Entre os pretextos para a barbárie que se discutem em palco, a circularidade em torno de uma ideia de poder consolida a peça como um olhar sobre as formas mais extremas de vivência. “É uma grande exposição sobre a natureza humana e as suas complexidades”, sublinha Martim Sousa Tavares, que refere ainda como a sua premissa para o público português pode fazer lembrar a realidade que se viveu no Tarrafal durante o Estado Novo. “Leva-nos para esses lugares que são específicos da realidade portuguesa, mas o que importa aqui é este estudo sobre a dualidade entre o que é obscuro e a nossa forma de ser mais iluminada, em que não somos nem inteiramente bons, nem maus.”

Integrado num projeto do Plano Nacional das Artes, o espetáculo “In the Penal Colony / Na Colónia Penal” junta música, teatro e dança, perfazendo essa obra de arte total, tal como foi teorizada por Richard Wagner. Materializa-se como uma criação carregada de originalidade que agrada aos amantes de ópera e que se revela também uma excelente porta de entrada para novos públicos que (ainda) não são familiares com esta forma de arte, explicam os seus criadores.

O movimento, explica Miguel Pereira, acrescenta “outras camadas de sentido”, que vão para lá daquilo que está escrito, funcionando como “pontos de fuga, através da coreografia dos corpos em cena.” Já a música, diz Sousa Tavares, está na linha de uma ópera contemporânea, que não faz concessões a uma tradição lírica. “É monódica na forma como a língua é usada e a música, na estética minimalista, é uma coisa de prisão. Sinto que estou atrás de grades e dá-nos essa atmosfera em que parece que nunca respiramos a plenos pulmões.”

Com o avançar da história, dá-se uma reviravolta que não importa aqui contar. A verdade é que mesmo no sistema mais perfeito, são muitas vezes aqueles que o concebem que acabam por nele ficar presos. “É o seu lado atemporal da obra. Através da escrita, o Kafka dá a ver esse labirinto das questões éticas, em que há reviravoltas. A história primeira passa-se como tragédia e depois repete-se como comédia”, sintetiza Miguel Loureiro, que não deixa de olhar para forma como lemos hoje a obra de certos escritores, nomeadamente para a obra de o autor de O Processo. “Tudo agora é bastante anedótico e bastante plástico. Parece que a própria dimensão da literatura encolheu e não sei onde é que colocaríamos o Kafka se existisse atualmente.”

A literatura que deixou conduz-nos, em última instância, para as formas de redenção e para o velho confronto entre o bem e o mal. Nesta colónia penal parece não haver saída, mas há uma reflexão sobre a tirania, a justiça e as formas de compaixão que no fim podem vencer essa mesma batalha. É aí que, afinal de contas, as pulsões de vida podem triunfar sobre o que é obscuro e, com o passar do tempo, obsoleto.

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