Publicado pela primeira vez em 1991, este Amor e C.ª, ou Talking It Over, no original, conta agora com edição portuguesa, versão de Helena Cardoso. No cerne do romance, há uma espécie de triângulo amoroso – “espécie de” porque é uma amizade de três e um casal de dois. À vez, os três narradores vão dando o seu olhar.

Stuart e Oliver serão o eixo fundamental da relação de amizade, e Stuart e Gillian são o eixo da relação conjugal. Ambas as relações são dissecadas, e Oliver e Gillian acabam por ser o eixo que possibilita o romance, dada a paixão lateral do primeiro pela segunda, sendo este o pathos em torno do qual a escrita vai girando. A história, aparentemente simples, acaba por existir de forma errática, uma vez que os três se revezam na narrativa, quase completando pontos de vista anteriores, formando um panorama. Ainda assim, está claro que o texto existe para um leitor, e é ao leitor que os três se dirigem, e não uns aos outros.

A técnica é intimista, o que já é natural em Julian Barnes, que gosta de mergulhar nas múltiplas camadas das personagens. Como poucos, o autor adentra-se nas construções psicológicas, permeando sempre cada acção ou pensamento com o seu contexto, fazendo com que o desenvolvimento mental e emocional exista num contínuo. Ainda assim, neste romance, há momentos em que a experiência narrativa sabe demasiado a experiência, com personagens que, volta e meia, parecem algo entre o oco e o opaco, possivelmente fruto do trabalho de linguagem que pretende que a voz as justifique e distinga de caras, traduzindo uma forma de ser ou estar.

Barnes faz um trabalho de grande distinção de voz, quase fazendo com que o nome dos trechos, correspondente aos seus narradores, seja inútil: a voz parece já vir com tons, já se sabe logo quem vem lá. Contudo, e principalmente entre Oliver e Stuart, esse trabalho parece ter sido de tal forma objectivo que se perdeu alguma da fluência natural, sendo as personagens transformadas em vozes quase maquinais, caricaturais. Ou seja, não raras vezes, exageradas. Tal acontece principalmente com Oliver, que é apresentado com algum excentrismo que pode servir para atenuar esta sensação, mas que não deixa de apresentar alguns solavancos à experiência de leitura, em grande parte devido a temas que mete na narrativa e que parecem desligados dos eixos intimistas fundamentais do romance.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR


Título:
“Amor e C.ª”

Autor: Julian Barnes
Editora: Quetzal
Tradução: Helena Cardoso

Páginas: 288

Percebe-se a tensão entre os três a priori. Entre o que os homens dizem, percebe-se que essa tensão vem da diferença, que há uma amizade maculada por impaciências ou sarcasmos. Como o autor insiste particularmente nisto, por vezes, acaba por se fugir do registo inerentemente intimista que o livro parecia buscar no início. E, ao insistir demasiado no que não fica dentro entre as personagens, uma grande parte da intimidade sabe a cinismo. Pode parecer uma representação exagerada de duas personagens que servem, na narrativa, o propósito de representação de dois eixos – mais do que de duas pessoas.

As três partes escrevem na primeira pessoa, dando considerações à vez. Cada monólogo acaba por constituir as personagens, não havendo acção que não seja isso. Ou seja, não há propriamente a ideia de um enredo que se sustente na prosa. Em vez disso, a prosa é o enredo. Barnes vai mostrando que o seu terreno literário é a exploração subtil, elegante, do que só é dito até meio. É nessa ambiguidade que joga, é com esse pequeno mistério que manipula. E, ao mesmo tempo que mostra o que ficou por dizer, também deixa claras as decisões que são tomadas com base no que foi verbalizado, materializando-se.

Nisto, tem especial interesse ver o que é que cada perspectiva esconde, o que permite ao leitor, após algumas interacções, numa altura em que a psique das personagens já parece mais formada, antecipar versões, ainda que Barnes faça mais do que dar a visão caleidoscópica de cada acto. Cada trecho, por pequeno que seja, permite que a tensão se vá acumulando, sendo essa tensão o eixo condutor de todo o romance.

A conjunção de vozes, deve dizer-se, compõe-se, ainda assim, num todo orgânico. Usando a palavra à vez, os três tecem o enredo sem propósito aparente, mas criando os fios que ligam os elementos da vida. E, enquanto o fazem, vão deixando os elementos que marcam a tensão entre eles, deixando o leitor no centro da narrativa que apresentam – e assumindo que lhe contam a história, quase como quem pede a empatia ou assume um confidente ou busca um aliado.

Nisto, convém ainda dizer o que, na verdade, é sublinhar, já que tal é característica evidente para quem observa a escrita de Barnes. Os parágrafos aparecem depurados, há uma preocupação constante com a elegância e com a limpeza do texto, e o autor consegue nunca ceder a fórmulas palavrosas. Isto, que não parece grande coisa, na verdade, é quase tudo: não apenas marca um estilo como garante a sua eficácia, garantindo, em simultâneo, a fruição da leitura como usufruto de um trabalho exímio de construção de sentido via linguagem. Ao moldar a prosa de forma a que não haja elementos a mais, o resultado é uma obra esculpida, em que cada ponto veicula um sentido, daí que nunca passe a ideia do autor como um artesão capaz de máximo controlo. Ao lê-lo, o autor fica com a ingénua ideia de que escrever é coisa fácil, que o romance se faz sozinho, que a vida estava ali à mão de semear, pronta para ser escrita, como quem tem uma musa a ditar a história.

Assim, Amor e C.ª mostra os méritos do trabalho literário de Barnes, sendo ainda caminho para romances calibradíssimos e posteriores, como O sentido do fim (2011) ou A única história (2018). A crítica do leitor português coetâneo, portanto, terá de ter em conta que o romance aqui tratado não é um passo atrás – é, isso sim, um passo que foi dado no passado.

A autora escreve de acordo com a antiga ortografia.