Foi um dos romancistas britânicos mais proeminentes da sua geração. Os leitores conhecê-lo-ão ainda como um cronista social. Amis, esteta da língua (e licenciado em Filologia Inglesa), destacou-se pelo estilo sarcástico e cáustico. Foram quase 50 anos de vida literária, iniciada com a publicação, em 1973, de Os Papéis de Rachel. O seu estilo marca-se por uma recorrência frequente ao humor negro: Martin Amis usava caricaturas da vida e metia-as em cena no século XX, principalmente no final, vendo-as sempre pela lente do sarcasmo. À hora da sua morte, a sua editora, Vintage Books, fez-lhe o elogio: “Ao longo de 40 anos, Martin Amis liderou o mundo editorial do Reino Unido: primeiro definindo o que significava ser um prodígio literário ao lançar seu primeiro romance com apenas 24 anos; influenciando uma geração de estilistas da prosa; e muitas vezes resumindo eras inteiras com os seus livros, talvez mais notavelmente com seu romance clássico, Money.”

Amis nasceu em 1949 em Oxford. Filho de Sir Kingsley Amis, romancista e poeta, estudou na Universidade de Oxford. A publicação do seu primeiro romance surgiu enquanto trabalhava no Times Literary Supplement. O livro valeu-lhe de imediato o Prémio Somerset Maugham de ficção. A partir daí, foi crescendo uma obra coesa, surpreendente e incisiva.

Morreu Martin Amis. Celebrado autor britânico tinha 73 anos

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Em Portugal, a sua obra foi publicada pela Teorema, estando agora nas mãos da Quetzal. Há ainda um romance (Os outros) publicado pela Cotovia em 1989, com o qual o autor chegou a Portugal. A extensa produção de Amis, que conta com 14 romances e vários livros de não-ficção, marca-se sobretudo pela “trilogia de Londres”: Dinheiro (1985), London Fields (1990) e A informação (1995). Em Dinheiro, que a Teorema publicou em Portugal com o título original e que a Quetzal publicou, posteriormente, com o título em português, temos a história da ascensão e do declínio de John Self: primeiro, o sucesso no mundo publicitário; depois, a ida ao charco, sendo o charco a venda de gelados no Hyde Park. No meio das pressões do capitalismo, o dinheiro aparece como uma droga: é difícil que alguém se liberte dele, é difícil fugir do vício. Antes da queda, o sucesso de John Self leva-o ao consumo desenfreado – seja de pornografia, de prostitutas, de álcool ou de comida rápida. A voracidade mostra o carácter viciante da ganância, a imposição da pressa pela acumulação e a suspensão de valores morais. O dinheiro aparece como salvação – a falta dele é um terror. O Guardian viria a considerar este o grande romance inglês da década de oitenta – no seu cerne, estão os anos de ouro do capitalismo; na sua periferia, as sombras da ilusão. Dentro da obra de Martin Amis, é um perfeito exemplo da comédia negra.

Em London Fields, temos um thriller sobre um assassino e uma pista. Numa peça em que Amis mostra a sua capacidade de manipular os tempos da narrativa, o humor negro mantém-se como elemento fulcral que não apenas pinta como possibilita o romance. Assim, a ironia com que Amis permeou a escrita é mais matéria de facto do que mero recurso estilístico. O livro acabou por ser afastado do Booker Prize devido a acusações de misoginia.

Em A informação, temos duas personagens que, por si só, já são ironia em bruto. Gwyn Barry e Richard Tull são dois amigos quarentões, amigos desde os tempos em que andavam na Universidade. Richard aparece como o mais talentoso: era-lhe adivinhado um futuro brilhante, mas a carreira estagnou, restando-lhe um emprego num pequeno jornal literário, onde fazia recensões críticas. Por seu lado, Gwyin, a quem falta o talento que o outro tem, teve grande sucesso com um romance. Com esse romance, além de dinheiro e de um prémio, veio outra vida. O talento de Richard, já se adivinha, perdido no cinzentismo do fracasso, dá espaço à inveja – seja pelos resultados, seja pela facilidade da vida de Gwyn. A partir daí, são dois passos até à tentativa de destruição da reputação. Ao transformar-se a admiração em inveja, a amizade transforma-se ainda em inimizade – e, em cima disso, em inimizade literária.

Pela breve amostra, entende-se a prosa de Amis como capaz de explorar cenários, situações, sensações e personagens. O autor nunca vai à fórmula e gosta de esventrar. Outro bom exemplo será Zona de interesse, o seu penúltimo romance. Aqui, saímos de Inglaterra e eis-nos no campo de extermínio de Auschwitz, em cujas imediações vive um comandante nazi. Polémico, o romance viria a ser adaptado ao cinema, tendo a versão cinematográfica estreado no Festival de Cannes. Além da descrição das atrocidades, ainda há a exploração da psique de quem as comete, com as possibilidades de acção, os potenciais de pensamento, as lutas pela sobrevivência, independentemente do que há à volta. Aqui, três personagens narram a vida: Angelus Thomsen é um oficial SS, Paul Doll é comandante de campo e Szmul é um judeu a chefiar uma equipa de prisioneiros. A partir daí, nada é a preto e branco, tudo é perspectiva: Thomsen deseja a mulher de Doll; Doll quer matar a mulher e contrata Szmul para isso. O poder está sempre no centro, mas a mesquinhez também, o pequeno rancor a contaminar tudo, a pequena dor a fazer com que se perca a perspectiva, num exercício de exploração da moral humana.

Com isto, não espanta que Amis seja um dos escritores mais fortes da produção literária inglesa das últimas décadas. Pertencendo a uma geração em que se incluem autores como Salman Rushdie, Julian Barnes ou Ian McEwan, compôs uma obra que marcou uma era, com livros que não só não têm medo de mergulhar no escuro como servem para isso mesmo. Escrito o obituário, vários são os órgãos de comunicação social a lembrar o que o autor disse: que queria deixar uma prateleira em relação à qual pudesse dizer onde ele mesmo começava e terminava. Deixa-nos uma prateleira e a possibilidade do desconcerto permanente. Em vez de ser coisa pouca, para um escritor, é mesmo quase tudo.

A autora escreve de acordo com o antigo acordo ortográfico.