887kWh poupados com a
i

A opção Dark Mode permite-lhe poupar até 30% de bateria.

Reduza a sua pegada ecológica.
Saiba mais

Rita Lello e a mulher que ousou imaginar a dança contemporânea

Este artigo tem mais de 1 ano

"Isadora, fala", peça a partir de Isadora Duncan, está prestes a estrear-se no Teatro São Luiz, em Lisboa. O Observador falou com a atriz que volta àquela que foi a sua “casa” durante 15 anos.

Voltar a “casa”, à Sala Mário Viegas, é especial para Rita Lello: “Foi onde trabalhei cerca de 15 anos. Não naquela sala, mas com a Companhia Teatral do Chiado e com o Mário, no primeiro estúdio do São Luiz”, conta
i

Voltar a “casa”, à Sala Mário Viegas, é especial para Rita Lello: “Foi onde trabalhei cerca de 15 anos. Não naquela sala, mas com a Companhia Teatral do Chiado e com o Mário, no primeiro estúdio do São Luiz”, conta

ANDRÉ DIAS NOBRE / OBSERVADOR

Voltar a “casa”, à Sala Mário Viegas, é especial para Rita Lello: “Foi onde trabalhei cerca de 15 anos. Não naquela sala, mas com a Companhia Teatral do Chiado e com o Mário, no primeiro estúdio do São Luiz”, conta

ANDRÉ DIAS NOBRE / OBSERVADOR

Rita Lello começa por dizer que é preciso ter coragem. No rescaldo do ensaio e depois de uma breve entrevista, senta-se nas cadeiras dispostas fora da sala, em paralelo a uma grande janela onde se espera uma visão longínqua e uma sensação de queda em ápice, entre caixas e arrumações, no chão da antiga junta de freguesia de Marvila, em Lisboa. Estamos no corredor do Polo II do Teatro Meridional e ao fundo reserva-se uma mesa de pequenos doces e café.

Enquanto fuma o seu primeiro cigarro, depois do ensaio, Rita Lello continua a falar sobre a coragem do jornalismo e de ser jornalista. Conhece muitos. A avó era jornalista, os tios são jornalistas e a certa altura ainda pensou enveredar pela área, mas “meteram-se outras coisas”. “É uma profissão muito bonita, muito importante e muito séria”, começa. “Mas parece que desrespeitamos as profissões mais sérias.” Fala das instituições portuguesas e, depois, por acréscimo o povo, as pessoas e os cidadãos.

É também sobre respeito e coragem que a peça “Isadora, Fala!” — ainda que Rita Lello, criadora e intérprete desta histórica sobre a bailarina norte-americana, diga que se tivesse de resumir Isadora Duncan numa palavra seria em “liberdade”.

Este não é um espetáculo biográfico nem cronológico. Tem uma cronologia própria que ousa ser volátil e que percorre uma narrativa de gestos intemporais e “distúrbios de vigor”, mesmo que repleta de memórias. Passa pela infância, a pré-adolescência, a adolescência e segue-se o despertar da vivência e da liberdade do corpo, “que foi também uma das suas lutas” recorda a atriz.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

O seu peito abre-se. O movimento é claro e intensifica-se no vermelho gritante do macacão que veste. Gesticula uma e outra vez. Mas há uma questão que não nos larga do início ao fim: quem está à nossa frente, em palco? É uma voz. É uma mulher. São várias. É a distinta Isadora Duncan através de Rita Lello. Ou o oposto. São muitas respostas para uma questão a que Rita Lello continua a não saber responder. “Não sou sempre eu.” Mas o que é que acontece? “Acontece uma mulher a falar de vários momentos da vida de uma outra pessoa [risos]”.

Tinha a certeza de uma coisa: “Não queria dançar”

“Isadora, Fala!” é um monólogo que decorre a grande velocidade e vai crescendo. “Há muitos momentos que são uma espécie de delírio.” Para Rita Lello é “uma espécie de comboio em que entro e só saio no fim da viagem”. Uma viagem que assiste a tantas outras que Isadora Duncan fez até chegar à Europa.

De América até França fala-nos do ballet e daquilo que o professor lhe pedia. “É clara a sua preocupação com a formas como as crianças aprendiam e a importância da pedagogia, mas é difícil encontrar em concreto um ponto de partida”, continua a atriz.  Não há ponto de partida nem de chegada, mas há um certo momento em que a atriz sai da secretária onde leu, refletiu e interpretou a vida de Isadora e leva esta peça a palco “melhor ainda do que tinha pensado”.

“Cem anos não foram suficientes para dar resposta às reivindicações de Isadora. Grande parte das coisas que a Isadora diz ainda não estão cumpridas", diz Rita Lello

ANDRÉ DIAS NOBRE / OBSERVADOR

Enquanto encenadora, pensa de forma racional cada espetáculo que faz. Depois põe-se a jogo. “Normalmente, o que acontece é que o caminho de chegada já não é o espetáculo que eu queria fazer na secretária. É melhor”, afirma ao Observador. Cria porque encontrar um discurso é algo que a inquieta. “Encontrar um discurso que vá ao encontro da época em que vivo.” É no processo de experiência que Rita Lello e Isadora Duncan nascem.

O livro de poema de Graça Pires, Jogo Sensual no Chão do Peito, é o princípio do itinerário, recomendado por Eugénia Vasques, professora jubilada da Escola Superior de Teatro e Cinema e crítica de teatro. “Ela [Graça Pires] escreve inspirada pela Isadora”, o que em conjunto com as biografias sobre a bailarina e os seus próprios escritos levam a um entrecruzamento – o texto final. Um monólogo seguiu-se de um outro e isso despertou tantas coisas quanto a atriz perceber que gosta de estar acompanhada em palco, “mas gosta mais ainda de ensaiar acompanhada”.

O texto é frenético, o movimento constante, mas crescente e com ritmo. Pode parecer extenuante, mas Lello garante que é exatamente ao contrário: “É energizante.” E isso tem que ver com a personagem e com a vontade de transportar tudo isto em palavras e movimento. Tudo isto em simultâneo. “Esse é o grande desafio deste espetáculo”.

Sozinha em palco, mas “muito bem acompanhada” na sua construção, a coreógrafa Amélia Bentes foi também uma peça fulcral na composição desta peça de teatro, o que nos leva à icónica frase de Duncan “uso o meu corpo como um meio, tal como o escritor usa as suas palavras. Não me chamem bailarina.”

É então que a encenadora e criadora do monólogo decide usar o corpo como palavra a partir da Língua Gestual. Pediu a uma intérprete de Língua Gestual Portuguesa que traduzisse os textos de Graça Pires, gravados em vídeo e, depois analisou com Amélia Bentes cada poema: “Os gestos que usamos aqui são os gestos que coreograficamente e espacialmente nos pareceram mais interessantes, relacionados com cada excerto que está a ser dito”, explica.

Tinha a certeza de uma coisa: “não queria dançar”, mas este é um espetáculo sobre uma bailarina, e não é “uma bailarina qualquer”. Isadora Duncan (1877-1927) abriu uma “autoestrada” para a dança contemporânea e rompeu com os condicionalismos da dança clássica. “Não é uma pessoa qualquer”, recorda-nos Rita Lello não deixando de reconhecer que pouco conhecia de Duncan antes de agarrar esta peça.

“O que sabia tinha sido o que a minha avó me tinha falado dela”, lembra. “Ela falava sempre com muita admiração e com muito respeito.” Maria Carlota Álvares Guerra foi jornalista e co-fundadora da revista Crónica Feminina. “A minha avó era uma mulher muito inteligente e sempre me habituei a ouvir falar da Isadora assim. Embora à volta as pessoas se referissem a ela como se fosse meio doida.” E não era só porque estava a reinventar os pressupostos da dança para o próximo século. “É uma questão política, francamente. Era uma pessoa de esquerda e foi vítima de uma propaganda brutal norte-americana, que a desacreditou e que fez com que os últimos anos da vida dela fossem um inferno. Ela fala disso em alguns textos.”

Descalça e com apenas um banco. “Aquele banco é o piano, é o banco do comboio que a leva para São Petersburgo, é a cama dela é o chão do estúdio do Gorden Craig, é o caixão dos filhos, é o carro que a matou. Aquele banco é tudo”, afirma. Este é um espetáculo que resguarda um compromisso entre exploração de um espaço neutro e a “instalação de situações posições, posturas que possam evocar determinada coisa”.

“Ela fala de tudo”

“Isadora Duncan fala de tudo.” E é esse lugar que Rita Lello procura nesta peça. Não é por acaso que o espetáculo se chama ‘Fala!’. Para a encenadora, Duncan fala de todos os assuntos que, ainda hoje, são fundamentais, ocupando um lugar de fala e de liberdade de expressão. “Cem anos não foram suficientes para dar resposta às reivindicações de Isadora. Grande parte das coisas que a Isadora diz ainda não estão cumpridas. Os discursos que hoje vemos, as comunidades LGBT, as minorias que estão cada vez mais sozinhas… isto é um caminho para a fragmentação e o que é certo é que passaram cem anos, mas o panorama é muito parecido, ainda que com as suas especificidades.”

Muito se escreveu quando a bailarina e coreógrafa se mudou para a Europa Ocidental e para a União Soviética. Constantin Stanislavski foi um deles. Conhecido pelo “seu método” na representação escreveu sobre a experiência de assistir aos espetáculos de Isadora. Tem páginas dedicadas a Isadora em A Minha Vida Na Arte (publicado em 1924), último livro que escreveu e em que descreve o processo todo. “Viu como é que era o teatro, quem é que estava, quem eram os intelectuais que lá estavam, qual é que era a reação, qual foi a reação do público que não era tão erudito, como o público mais ou menos erudito vai atrás da validação dos artistas e dos filósofos”, explica a encenadora.

“A liberdade de expressão conjugada com o amor resolve tudo e, no entender dela [Isadora], se as pessoas realmente se amassem e se escutassem dariam lugar à compaixão”

ANDRÉ DIAS NOBRE / OBSERVADOR

Os seus movimentos imitavam a arte grega clássica, assim como danças folclóricas e sociais. Nada de passos en dehors do ballet, nada de plié ou ponta esticada. Isadora defendia que cada movimento estava conectado, um nascia do que o precedia, assim como levava ao próximo de forma orgânica, jamais calculada ou ensaiada. E é este o caminho que Rita Lello quis percorrer.

Representar a decadência pelo qual a própria artista passou, enquanto mulher nos anos 1920, perseguida pela comunicação social, pelas perdas, pela tristeza é também uma exigência constante. Não é que Isadora tenha falado diretamente sobre o suicídio, mas “conseguimos perceber uma consciência degradante”. Rita Lello optou por não inserir isso na peça, porque vai ganhando “um ramo do poético, porque vai abandonando o ramo da narrativa”, explica.

Mas concentrar todas as preocupações, representações e ideias de uma mulher como Isadora é uma responsabilidade que a atriz reconhece ser acrescida, mas extasiante. “Ela [Isadora] tinha um respeito pelas crianças e pelos jovens muito belo. E isso é algo que escreve nos seus textos. Chega a dizer que ‘se começarmos pelas crianças, todos os problemas do mundo se resolvem’”. A educação da época, no seu entender, era muito violenta.

A emancipação da mulher, os direitos da mulher, a escravidão pelo casamento, o patriarcado, o body shaming são questões que estão na ordem do dia e que são importantes e reflexivas para a atriz. “Estas pessoas [artistas] foram martirizadas. Foram grandes corajosos que abriram caminho para a nossa liberdade.” Mas, hoje, Isadora e Rita ainda têm muito para dizer. “A liberdade de expressão conjugada com o amor resolve tudo e, no entender dela [Isadora], se as pessoas realmente se amassem e se escutassem dariam lugar à compaixão”.

Para quem não a conhece, Duncan é muito mais do que a ideia de “uma maluca que morreu enforcada numa écharpe [enrolada na roda de um carro]”. E esse é também o propósito desta peça. “Perceberem que Isadora Duncan é muito mais do que isso”. É também por essa razão que voltar a “casa”, à Sala Mário Viegas, se torna ainda mais bonito para Rita Lello. “Foi onde eu trabalhei cerca de 15 anos. Não naquela sala, mas com a Companhia Teatral do Chiado e com o Mário, no primeiro estúdio do São Luiz”, conta.

A plateia é a mesma, as cadeiras são as mesmas, só mudaram de cor, mas para Rita tudo isto remete para um lado nostálgico. “Esse lado também é giro, também é do coração.” E é de coração aberto que Duncan e Lello nos aguardam entre 31 de maio e 9 de junho.

Ofereça este artigo a um amigo

Enquanto assinante, tem para partilhar este mês.

A enviar artigo...

Artigo oferecido com sucesso

Ainda tem para partilhar este mês.

O seu amigo vai receber, nos próximos minutos, um e-mail com uma ligação para ler este artigo gratuitamente.

Ofereça até artigos por mês ao ser assinante do Observador

Partilhe os seus artigos preferidos com os seus amigos.
Quem recebe só precisa de iniciar a sessão na conta Observador e poderá ler o artigo, mesmo que não seja assinante.

Este artigo foi-lhe oferecido pelo nosso assinante . Assine o Observador hoje, e tenha acesso ilimitado a todo o nosso conteúdo. Veja aqui as suas opções.

Atingiu o limite de artigos que pode oferecer

Já ofereceu artigos este mês.
A partir de 1 de poderá oferecer mais artigos aos seus amigos.

Aconteceu um erro

Por favor tente mais tarde.

Atenção

Para ler este artigo grátis, registe-se gratuitamente no Observador com o mesmo email com o qual recebeu esta oferta.

Caso já tenha uma conta, faça login aqui.