A Galeria Municipal do Porto exibiu, entre Março e Maio passados, Desejos Compulsivos: a extracção do lítio e as montanhas rebeldes, comissariada por Marina Otero Verzier e Filipa Ramos, uma exposição certamente muito atenta aos planos de extracção de lítio no Norte de Portugal — e que tem agora neste livro uma expressão panorâmica do impacto social e ambiental de extensas explorações do “elemento leve” que de estabilizador do humor humano sob a forma de comprimidos passou a um dos principais recursos da autoproclamada “energia verde” enquanto combustível para baterias, já rotulado de “petróleo branco” ou de “ouro cinzento”. Estados de Exaustão, no título, é justificado na “constatação, talvez tardia, de que a nossa exaustão literal e do planeta estão inextricavelmente interligadas; e que as nossas tentativas para superar a exaustão sem lidar com as suas causas são apenas uma fuga para a frente”, diz Marina Otero Verzier, que “reclama uma reavaliação dos valores de uma sociedade baseada no extractivismo e no consumismo”, pois “a dependência crescente da sua extracção tem como consequência a degradação e colapso de ecossistemas”, lê-se na contracapa. “Embora este não seja o único território afectado pela extracção do lítio, penetrar nas profundezas do [salar de] Atacama [no Chile] permite revelar o alcance dos efeitos dos sonhos energéticos ocidentais” (Otero Verzier, p. 9). “À medida que se esgotam os combustíveis fósseis na Terra, o elemento promete uma redenção “verde” da crise climática, quando na verdade apenas desloca a deficiência” (Kubrack, p. 29).

Lítio: Estados de Exaustão propõe-se, por tudo isso, “incentivar visões alternativas das noções de energia, progresso e qualidade de vida” (pp. 8, 9), embora verdadeiramente não aponte para nenhuma em concreto. Não é esse o seu ponto, no final das contas. Entre comprimidos e baterias, mais estas que aquelas, “a obsessão pela energia, crescimento e (auto)desenvolvimento […] transcende os nossos corpos, para se infiltrar e afectar todo o meio ambiente”, lê-se algumas páginas adiante, contaminando também a nossa percepção das coisas, facilmente deslumbrada, aliás, pela extravagante beleza das coloridas piscinas de evaporação criadas em grandes áreas de exploração fotografadas com drone, de que o livro dá convincente portefólio sob o título de “Aguarelas” (“uma manta de retalhos de verdes brilhantes, verdes-azulados e dourados”, correspondentes a diferentes estádios da salmoura de lítio, resultando numa “corrente de pedras preciosas disposta sobre uma pele de porcelana”, p. 19).

O salar de Uyuni é um vasto e antigo deserto de sal acima da maior reserva de lítio do mundo, na região altiplana conhecida como Triângulo do Lítio, do Chile à Bolívia e à Argentina, junto a montanhas tidas como sagradas pela mitologia de Atacamenhos, Aimarás e Quíchuas, o que coloca sob grande perigo a autonomia territorial destes povos indígenas. Desde o último quartel do século XIX que a mineração chilena — dos nitratos ao cobre, e depois ao lítio — amplia a sua área de exploração, fazendo da Sociedade Química y Minera (QSM) “o maior produtor de nitrato de potássio, iodo e lítio”, com 10 mil toneladas de iodo e 1200 toneladas de nitratos (p. 60). O lítio é actualmente a extracção “mais rentável”, e o deserto de Atacama, tido como “anomalia planetária” (sic) por ser “muito raro que um único sistema geográfico albergue tal quantidade e diversidade de minerais ou elementos” (p. 93), um património de excelência do país. O “contencioso ambiental que opõe companhias de mineração, grupos ambientalistas e comunidades indígenas” (p. 80) —  se capaz e autonomamente organizadas estas, ou não, não nos é dito — é a mola pretendida, pelo juízo politicamente radicalizado de Pereira e Barros, para “articular as lutas ambientais com uma crítica ao capitalismo, especialmente com a linha neoliberal chilena” (p. 66), pois “se o futuro da extracção de recursos é debatido em fóruns da transição energética, os actuais “novos acordos verdes” continuarão a depender excessivamente dos modos capitalistas de apropriação, exploração e pilhagem de recursos”, permitindo “a violência destrutiva do capitalismo” (p. 67 e frase final do artigo). A figura económica e política de Julio César Ponce Lerou, “o rei do lítio” e “o segundo homem mais rico do Chile” (p. 122), é escalpelizada numa dezena de páginas por Daniel Matamala. “O ex-genro de Pinochet, que privatizou a SQM e ficou com ela, que se apoderou da riqueza do lítio, que financiou ilegalmente políticos, não passou um único dia na prisão” (p. 130).


Título: “Lítio: Estados de Exaustão”
Organizadores: Marina Otero Verzier, Anastasia Kubrak, Francisco Díaz
Editores: Galeria Municipal do Porto e Dafne Editora
Design: Joana Pestana
Páginas: 228

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Mais abrangente — e moderada — é a perspectiva dada por Cristina Dorador, que aponta o facto de que, “a nível mundial, o discurso da perda de diversidade não leva em consideração a perda de micro-organismos”, e os salares serem sistemas microbianos com tapetes visíveis, cuja protecção ambiental específica foi já exigida judicialmente naquele país sul-americano, e à ciência interessa perceber “quais são os mecanismos que estes micro-organismos, sobretudo as bactérias, usam para lidar com condições tão hostis”, “nestas salmouras de cloreto de lítio que têm as concentrações salinas mais altas do mundo” (p. 96). Por outro lado, “a extracção contínua de água dos salares para obtenção de lítio resulta, a longo prazo, na diminuição do nível de água das lagoas” numa região já por si extremamente seca, e, por consequência, “haverá perda de património genético, biológico e até evolutivo da humanidade” (p. 97), além de escassez de água para o quotidiano das populações locais, por reduzidas que sejam ou são. Nunca quantificadas neste livro, verdade seja dita, surgem como entidades abstractas, instrumentalizadas, quando é a sua humanização que supostamente se pretende salvaguardar.

Embora o contexto histórico, geográfico, antropológico — e até o método ou procedimento industrial e o processo político — da extracção de lítio em Portugal e na Galiza seja totalmente diferenciado daquele que é o principal tema deste livro, lá vem (começa na p. 151!!!) a já esperada pastilha do “Sul Global”, “seus conflitos e perspectivas” (p. 205), e um pretenso ou equivocado internacionalismo da solidariedade (completamente fantasioso, ao nível do velho teatrinho de marionetas de praia, e de efeito efectivo nulo), em que activistas de última hora e de todas as proveniências são confundidos com “agentes sociais” (p. 99). Antes do mais, num lugar há “a maior mina de cobre a céu aberto do mundo, enormes aterros de resíduos da mineração, erosão da superfície do deserto [de Atacama] devido à exploração do salitre, assim como as intervenções mais recentes de grandes estações astronómicas e centrais termossolares” (Alonso, p. 177), e no outro lugar a presença de minério e de nascentes mineromedicinais “alimentou o desenvolvimento de uma indústria da saúde”, “nascentes de água quente foram formalizadas em fontes, e estas integradas em sofisticadas arquitecturas termais, como as de Verín, Vidago e Pedras Salgadas, onde convergiram turismo, vida social e saúde, transformando a região numa referência do termalismo europeu” (Otero Verzier, p. 2o3), que já teve melhores dias, é certo, mas tem tudo para ressurgir com sucesso, como já está a suceder.

O que inquieta estes autores é que, “em nome de uma economia verde e de uma energia renovável”, a União Europeia esteja a produzir um quadro “jurídico, político e ideológico” que oferece “às multinacionais e seus representantes locais” condições de prosperar e extrair até à exaustão dos recursos, legitimando “a consequente destruição de ecossistemas” (pp. 198, 199). Em síntese, “as relações desiguais e as formas de despossessão estipuladas pela União Europeia, os Estados e as empresas” (p. 208). Em nenhum momento são valorizados um efectivo ordenamento do território que seja capaz de restabelecer actividades agropastoris e comunitárias e de recolonizar regiões já tendencialmente despovoadas, a reposição da biodiversidade reclamada por grandes naturalistas como Sir David Attenborough ou o produzir e consumir menos, o reutilizar e reciclar muito mais e a mobilidade partilhada enquanto práticas socialmente assumidas por largas maiorias conscientes. Arquitectos paisagistas e geógrafos, e o seu mosaico de diagnósticos e soluções, tão-pouco são convocados uma só vez que seja, e o contexto local ou regional pouco ou nada importa. À sua maneira, até inadvertidamente, admito, Marina Otero Verzier e os seus autores também estão a fazer com que a energia magnetize todo o debate que importa fazer sobre o nosso devir, ou sobre “a falácia do desenvolvimento e a imposição da modernidade” (Dussel, cit. p. 205), ao mesmo tempo que as complexas identidades locais são obliteradas em favor dum internacionalismo de um outro tipo (mas benigno, claro!). Por isso, não conseguem ir além de postulados como “A extracção e a crença no desenvolvimento, no crescimento infinito e no lucro operam em diferentes escalas e através dos corpos, gerando devastação social e ecológica” e “a instrumentalização do planeta” (pp. 204, 205).

A demonização do lucro, de qualquer lucro — esse monstruoso ícone do terrível capitalismo… —, é que nunca fica de fora da sua equação, num vale tudo que chega a ser delirante: em Agosto de 2022, um acampamento internacional contra a mineração do lítio “terminou com uma marcha até Boticas que abraçou o espírito do entrudo — uma tradição firmemente enraizada na comunidade de Covas do Barroso”. E o que nos é dito de seguida? “Encarnando o animalesco e a força bruta das montanhas em máscaras, fatos e rituais, o entrudo […] invade tudo o que é “civilizado”; tudo o que foi corrompido pelos desejos compulsivos do capitalismo” (p. 206). A própria bipolaridade humana, que o lítio ajuda a regular, é usada como argumento para fixar “um diferencial de poder — um potencial — que alimenta uma rotação permanente. Riqueza e pobreza. Norte e sul. Direita e esquerda. Mania e depressão”; mais: “a actual febre do lítio pode ser entendida pelo prisma da história do capitalismo: energia animal, carvão, petróleo, rede eléctrica, e agora o lítio”, que “chegou para lubrificar de novo o sistema, gerando novas vias para a acumulação de capital”, energizando “os mercados, que vêem neste elemento o potencial de ocultar a próxima fase do capitalismo, por trás da fachada das energias verdes, e um aparente compromisso com as preocupações ecológicas” (Díaz, pp. 147, 148).

O verdadeiro conservadorismo ambiental não é este — longe disso, até —, e muito mal estaremos se as preocupações e as práticas por melhores habitats dependerem desta instrumentalização ideológica. A mais eficaz recusa da mineração de lítio no nosso país passa por investimentos pela revitalização de regiões interiores despovoadas ou quase, que as preservem ou as qualifiquem para qualquer outra coisa, e que não continuem a ser enfraquecidas e abandonadas por causa da míngua de eleitores locais, úteis a políticas afinal centralistas. Sem estas mudanças, é que não haverá comprimidos de carbonato de lítio que cheguem por nos conseguirmos aturar uns aos outros e a nós mesmos…