Nunca nenhum português navegou na net sem se deparar com uma frase falsamente atribuída a Fernando Pessoa, uma situação que poderia muito bem constituir entrada de dicionário para ironia, tendo em conta que Pessoa passou a sua vida a dividir-se em heterónimos com personalidades bem definidas, a forma que – especulo – encontrou de ser outro. Pessoa, com os heterónimos, explicitou essa coisa de ser várias coisas, mas estes tempos estão mais próximos do “Je est un autre”, de Rimbaud: hoje reconhecemos que todos comportamos cá dentro múltiplas vidas.
Todos comportamos cá dentro yada yada yada, mas – a bem da honestidade – convém admitir que uns comportam mais do que outros e que uns comportam identidades mais contraditórias do que outros. Roberto Carlos Lange, por exemplo, nasceu no sul da Florida, mas faz música sob o nome Helado Negro e não raro canta em espanhol – os seus pais são emigrantes equatorianos e a sua música tem como centro lírico a identidade; mesmo musicalmente, é um dos mais idiossincráticos criadores do nosso tempo: nas suas canções a música ambiental funde-se com a folk, o indie-rock desemboca na synth-pop como se todos estes elementos díspares coexistissem na natureza e fossem fruto da mesma árvore.
Isto pode levar-nos a concluir que o seu trabalho é profundamente íntimo e pessoal – e Phasor, o seu oitavo e mais recente disco, prova-o – mas depois existe a batida de I Just Wanto To Wake Up With You, com um refrão admirável e cantarolável, levemente evocativo de um Caribou que apontasse mais para o after do que para as duas da manhã, a recordar-nos que o que quer que seja que haja de interior na música de Helado Negro acaba sempre em prenda cujo embrulho dá prazer só de olhar (ou, no caso, ouvir).
[ouça o álbum “Phasor” na íntegra através do Spoitify:]
A primeira vez que o nome Helado Negro chegou às pessoas em letras grandes foi quando Lange editou Young, Latin & Proud, sexta canção de Private Energy; o título pode ser enganador para quem só conhece os clichés da latinidade – nada em Young, Latin & Proud soa ao que por norma associamos à latinidade: não há beats reggaeton, rap, flamenco, euforia ou dança louca; nem uma nota recorda Luis Fonzi ou Daddy Yankee ou J Balvin. Já aí ele manipulava com mestria ritmos de balanço lento, já aí extraía calor dos sintetizadores: Young, Latin & Proud era Lange a tentar aceitar as suas raízes e a sua condição de deslocalizado no país para o qual os pais emigraram.
Nessa altura, os media descreveram-no como “um nome a ser descoberto”, o tipo de epíteto que se reserva para debutantes a lançar o primeiro single. Mas Lange andava há anos a fazer música, fosse em bandas como La Muerte Blanca, Boom & Birds ou Epstein (todas com destaque mediático menor que médio), e – já como Helado Negro – andava em digressões com Sufjan Stevens (que aliás, o editou) e colaborava com gente da estirpe de Julianna Barwick. É um pouco como na pintura: fala-se muito do génio de Picasso porque cedo mostrou as suas qualidades, mas Cézanne só começou a ser reconhecido em velho e quando o foi já acumulara obras-primas até então incógnitas.
[“I Just Want to Wake Up With You”:]
Depois veio This Is How You Smile e uma semi-explosão: Helado Negro não começou a surgir em letras garrafais nos cartazes dos Primavera Sound deste mundo, mas o tamanho do lettering aumentou ao ponto de até um míope já conseguir encontrar-lhe nome no cartaz. A inspiração para This Is How You Smile surgiu quando Lange assistiu à leitura de Girl, um pequeno conto de Jamaica Kinkaid, datado de 1978; o conto acaba por ser uma série de conselhos que uma mãe emigrante dá à sua filha de modo a ela comportar-se como “uma rapariga decente”: lavar a roupa branca às segundas e a de cor às terças; não andar descalça ao sol; até insinuar que a filha deve comportar-se como uma senhora e não como “a rameira que parece querer ser”.
O conto realçava não só a diferença geracional entre pais e filhos como a dificuldade que estes tinham em ater-se às normas sociais dos pais quando o que era esperado deles (os filhos) no país em que viviam era diferente. Isto é o contexto, o isco que trouxe ouvintes para a música de Helado Negro, a história de fundo – mas o que nos fez voltar às suas canções foi a música, como Running (um dos singles de This Is How You Smile e a canção inspirada pelo conto): um sample de meia dúzia de notas ao piano, um baixo simples, uma melodia simultaneamente melancólica e acolhedora.
[“LFO (Lupe Finds Oliveros)”:]
Lange tornou-se um mestre do suave baloiçar de um ritmo, da aposição da eletrónica e da folk, da passagem do indie para a pop de sintetizadores. Em Wish You Could Be Here, pouco mais há que um beat e voz – o beat, ampliado, podia ser um hino da dança enfurecida às 4 da matina, mas à saída do refrão ele opta por uma melodia de piano descendente até surgir uma pequena figura de sintetizador a adornar e depois, quando já pensávamos que a cortina ia encerrar, o beat regressar.
Esta á parte da vida de Lange em que ele mexe em botões; mas a fechar Phasor está Es Una Fantasia, uma balada à guitarra acústica que vai lentamente levantando vela enquanto Lange canta, quase em falsete, “Em mi pecho / tengo dudas”. Há bateria de escovas e quando estamos a imaginá-lo a cantar isto num bar de sofás de veludo vermelho estragados por marcas de cigarros, entra uma batidinha – suave, cândida, límpida mas que iça a canção e a torna irremediavelmente sedutora.
Agora por favor comparem Es Una Fantasia com Best For You And Me, a segunda canção do disco: de novo temos um piano e um beat discreto – mas basta uma ligeira síncopa para Best For You And Me adquirir um rosto quase pop; não aquela pop que enche estádios, mas a que leva pessoas a clubes médios e a menearem os ombros como futebolistas a fintarem adversários inexistentes – o que me parece uma boa imagem para a música de Helado Negro: o prazer que retiramos destas canções permite-nos, durante breves instantes, fintarmos dores existenciais que nem sabíamos ter.
[“Best for You and Me”:]
Não quero abusar da vossa boa vontade, mas se tiverem 3 minutos e 44 segundos livres, experimentem botar as orelhas em Colores del Mar e assistam ao que este homem faz com um break de bateria de escovas, um jazz suavemente ácido, com notas esparsas de piano, a recordar o ambiente dos discos de Roy Ayers, e alguns coros: é um prodígio de contenção, texturas e desenho melódico. (Mal se nota mas ao fundo há uma guitarra acústica e é bonito que mal se note).
Posso continuar a enumerar canções e descrevê-las e às suas qualidades, falar do ritmo latino de Echo Tricks Me, seguir faixa a faixa, mas a premissa está estabelecida: Helado Negro voltou, mais uma vez, a encontrar a síntese perfeita entre a eletrónica, o jazz, a folk, o indie, a música ambiental e a synth-pop. Os seus refrões não entram para a definição de euforia – antes pertencem àquela galeria de conforto e intimidade em que incluímos coisas tão díspares como a sopa da avó ou as fotos desbotadas da infância.
Lange costuma dizer que não sabe bem quem é e que a sua música é o reflexo dessa exploração de si mesmo. Mas para quem está de fora é claro que ele é um mestre de um tear que usa fios velhos e novos e cria padrões que até então nunca tínhamos visto. Quando olharem para o cartaz do próximo festival, certifiquem-se de que o nome dele está lá, em lettering de dimensão apropriada ao seu talento.