Um Parlamento dividido em relação ao que fazer com o legado, ou os legados, do 25 de Abril. Foi o que se viu nesta sessão solene de comemorações: apesar de Marcelo Rebelo de Sousa não se ter pronunciado sobre as reparações históricas que poderão ser devidas às ex-colónias, como tinha feito na véspera, o tema mostrou-se divisivo e entrou, tal como a comemoração do 25 de Novembro, nos discursos de vários partidos de direita. À esquerda, falou-se do perigo de retrocessos, populismos e “saudosismos” em relação ao Estado Novo. E o Presidente da Assembleia da República, José Pedro Aguiar Branco, acabou a fazer um discurso sobre a necessidade de privilegiar a moderação e as soluções concretas, em vez de cavar trincheiras.
As declarações de Marcelo sobre os efeitos do colonialismo sobre as ex-colónias e os pagamentos devidos por Portugal, que já vinham desta quarta-feira, fizeram eco na sala e levaram até a acusações de “traição” ao Presidente da República. A primeira referência aconteceu durante a intervenção de Paulo Núncio, do CDS, que começou logo por disparar contra Marcelo, lamentando o “desastroso processo de descolonização”: “No CDS não sentimos necessidade de revisitar heranças coloniais, não queremos controvérsias históricas, nem deveres de reparação que parecem importados de outros contextos. A História é a História. E o nosso dever é o futuro”, disparou, antes de falar na importância “fundamental” do 25 de Novembro e da sua celebração.
Marcelo Rebelo de Sousa defende pagamento de reparações por crimes da era colonial
Não seria o único: André Ventura, que já se tinha atirado a Marcelo Rebelo de Sousa com acusações de “traição à pátria”, voltou à carga e acusou Marcelo de “trair os portugueses”: “O senhor foi eleito pelos portugueses. Não foi eleito pelos guineenses, pelos brasileiros. Pagar o quê? Pagar a quem? Eu tenho orgulho na nossa história, eu amo este país.” Depois, falou aos “desiludidos” com Abril, que diz que foram perdendo “dignidade” nestes 50 anos de democracia, e passou a denunciar os vícios da “oligarquia” que, segundo Ventura, tem dominado o regime nos últimos 50 anos. E referiu-se mais concretamente à queda de António Costa e de como “uma parte” desse regime quis atacar quem investigou. “Uma grande parte nunca quis uma Justiça independente. Quis a Justiça nas suas mãos.”
Ainda sobre a questão das reparações históricas, a Iniciativa Liberal guardou também palavras duras para Marcelo. “Não somos menos livres porque temos uma longa História de quase 900 anos. E não, Senhor Presidente, História não é dívida. E História não obriga a penitência”, atirou Rui Rocha. “Quem declara ser nossa obrigação indemnizar terceiros pelo nosso passado, atenta contra os interesses do país, reduz-se à função de porta-voz de sectarismos importados e afasta-se do compromisso de representar a esmagadora maioria dos portugueses”.
Num discurso em que atacou o “wokismo desnaturado em que tudo se infiltra”, os que querem retirar liberdade às mulheres ou um Estado que “tira mais do que devolve”, Rocha também anunciou que a IL apresentará já uma deliberação para que o programa das comemorações do 25 de Abril passe a incluir uma cerimónia solene nos 50 anos do 25 de Novembro, lembrando que Ramalho Eanes diz que é “um erro” separar as duas datas. E acabou com recados a um Governo, que quer ver com mais “ambição”.
O próprio PSD recusou, ao contrário do resto da direita, pegar em temas mais divisivos e discursou precisamente contra “extremismos” e os que querem “dividir o país”. A intervenção coube a Ana Gabriela Cabilhas, a antiga presidente da Federação Académica do Porto que Luís Montenegro foi buscar para integrar a lista de candidatos a deputados, e que começou por falar do futuro. “Hoje, mais do que um justo elogio ao passado, que agradecemos e admiramos, importa renovar um compromisso com o futuro”, defendeu. “Não podemos admitir que a melhor versão da nossa democracia tenha ficado no passado, cristalizada na Revolução dos Cravos. Abril não é apenas um marco na história, é um Revolução contínua.”
Depois, recusou soluções “extremistas” que dividam a sociedade entre os políticos e o povo — “os políticos são também eles o povo” — e ofereçam “soluções simplistas para desafios complexos”. E rejeitou também “revisionismos históricos”, “populismo” ou “vagas wokistas, a nova censura do bem”. Já fora do plenário, Hugo Soares recusaria comentar as declarações de Marcelo Rebelo de Sousa, preferindo focar-se no facto de o PSD ter ido buscar uma independente para fazer um discurso desta relevância.
Esquerda contra “populismo” e “saudosistas” do Estado Novo
À esquerda, foram muitos os medos agitados em relação também aos populismos, e aos riscos que trazem para a democracia. Após alguns discursos de desilusão com alguns resultados da democracia, Pedro Nuno Santos quis trazer uma nota positiva e lançou: “É verdade que a concretização dos sonhos de abril é um trabalho imperfeito e ainda inacabado. Mas os portugueses venceram”, por terem construído em conjunto o SNS, a escola pública, o sistema de segurança social e a proteção laboral.
Os problemas que hoje existem, defendeu, não se defendem com “mais liberalismo e um Estado ao serviço da minoria”, nem com populismo, “uma política que explora os nossos sentimentos mais negativos, uma política dura com os fracos porque lhe falta a coragem para ser dura com os fortes, e que se alimenta da angústia e da incerteza vivida pelo povo”. E recusou soluções de desse tipo na questão da imigração — usada em parte para promover “o ódio e a divisão” — ou nos direitos das mulheres e das minorias: “A partilha do poder e o fim da hegemonia do homem gera resistência e há quem, na direita radical, a promova e a explore. Mas já não há recuo possível”.
“Sim, os avanços sociais e culturais geram muitas vezes reações de incompreensão e até de rejeição”, prosseguiu. “O PS aqui estará para defender a democracia política e a democracia social e cultural dos ataques dos seus novos e velhos inimigos. Foi uma e outra que Abril construiu. Uma e outra estão sob ataque. E uma e outra terão a nossa proteção”.
Já Mariana Mortágua discursou contra as “carpideiras do salazarismo”, que garantiu terem “saído do armário ao fim de 50 anos”. “Os saudosistas são perigosos porque culpam a democracia e a Constituição pela pobreza que persistiu, pelo amargo das promessas não cumpridas e pela corrupção que grassa nas privatizações, nas portas giratórias, no financiamento dos próprios partidos da oligarquia. Os saudosistas são perigosos porque vivem para a mentira”, continuou. “Saibam então que nenhuma mentira ocultará que, para Portugal, Abril foi o começo. Abril foi a torrente de alegria, a beleza de vencer o fascismo. Abril é a vida cheia contra o sonambulismo e a maldita guerra.”
Para Mortágua, o que “assombra” Portugal agora chama-se “capitalismo”, prosseguiu, agitando as bancadas à direita. “É o capitalismo que faz da casa um ativo financeiro e um lugar inatingível, que ataca a democracia com discursos de ódio, que chama mérito à injustiça social (…)”, defendeu. “Contra o medo e os rancores existenciais, afirmamos a certeza de que aqui cabe o mundo todo, todos temos o direito a viver em condições iguais e a ter o que precisamos para uma vida boa”.
No PCP, uma ideia semelhante contra uma minoria que, disse Paulo Raimundo, está a tentar “recuperar poder”, “destruir conquistas” e “falsificar a História”. Para o partido, a “contra-revolução e a política de direita” tentam negar os valores de Abril. A prova, defende, são os jovens que ganham menos de mil euros de salário ou que não têm condições para viver em Portugal.
“Abril libertou o país do fascismo e desse regime da corrupção organizada e silenciada. Abril retirou o país das mãos de uns poucos que distribuíam entre si a riqueza criada e condenavam o povo à pobreza. Abril é combate ao poder em grande medida restaurado dos grupos capitalistas e das multinacionais sobre a vida nacional”, prosseguiu. E defendeu que há um caminho a “retomar”, “pondo fim ao ciclo da política de direita que tem conduzido o país a crescentes desigualdades. Este é o grande desafio que está colocado aos democratas e patriotas”, mas é sobretudo uma “tarefa da juventude”.
“Podem decretar o fim de Abril que isso é como decretar o fim da esperança e é essa esperança nesse Abril que é preciso retomar, é tal como a música, uma canção sem final”, rematou, citando uma canção d’A Garota Não.
Rui Tavares, do Livre, conseguiu aplausos de pé na bancada do PS ao fazer um discurso em que recordou como a sua mãe, empregada doméstica numa “casa de família”, tinha “pesadelos com o ditador” e ouvia como resposta do patrão que se tivesse mais educação já estaria presa. “Até os defensores do regime sabiam que o medo era o que os sustentava. E contavam que os portugueses tivessem muito medo e pouca imaginação”, atirou. Depois, como Pedro Nuno Santos já tinha dito que o 25 de Abril é uma data única, Rui Tavares foi recuperar as outras datas importantes na revolução para hierarquizar: “Todos esses dias nos dizem muito, mas são incomparáveis com o dia que os estreou e permitiu”, frisa.
Hoje, prosseguiu Tavares, há uma situação “paradoxal” para os amigos do 25 de Abril, para quem a fasquia “está muito alta”, e uma “brecha” para os inimigos da data, frisa: os que querem chegar à “fama e ao poder e chamar a atenção”, e a melhor forma é “menosprezar ou profanar o 25 de Abril”. “Não lhes demos esse prazer. Enchamos as nossas conversas de desejo político”, com novos projetos sobre a Habitação, a economia ou o Ambiente, defendeu. “É enchendo o país de objetos de desejo político que evitamos os pesadelos do passado e continuamos a sonhar”.
Pelo PAN, Inês Sousa Real falou contra os que “procuram silenciar o progresso” e garantiu que há direitos conquistados que estão a ser “postos em causa”, falando numa realidade “que se espalhou pela Europa, e que hoje, se espalha por Portugal”: “Os direitos conquistados, aos poucos, e subtilmente, estão a ser postos em causa, não apenas os direitos humanos, das mulheres, dos mais vulneráveis, mas também os direitos dos animais e o respeito pela natureza. A revolução da empatia exige que nos ergamos em defesa desses direitos”.
Pediu que Abril se cumpra agora com mais foco no Ambiente e prometeu erguer-se contra “os que procuram silenciar a voz de Abril” ou o “caminho do progresso”, os mesmos que, disse, querem “incutir novamente a cultura do medo”, seja pelos direitos das mulheres ou da inclusão no geral. “Não podemos permitir que construam trincheiras e alimentem a ideia de que temos de ser uns contra os outros”, avisou.
Aguiar Branco pediu resposta para portugueses “zangados”
Com intervenções em tons diferentes da parte dos partidos, coube a José Pedro Aguiar Branco fazer um discurso em defesa da moderação — e para isso até foi buscar a memória de Mário Soares, arrancando um aplauso à bancada do PS. O Presidente da Assembleia da República começou por lembrar um dos “grandes mitos” do 25 de Abril sobre ter sido um dia sem sangue, e as “quatro famílias que discordam desta ideia” (das quatro vítimas mortais que foram apoiar a revolução e foram mortas pela PIDE). “Foram as últimas vítimas da polícia política, do regime, e é tempo de dizer os seus nomes nesta sala: Fernando Giesteira, Fernando Barreiros dos Reis, João Arruda e José Barneto”. E revelou que pela primeira vez tomou a iniciativa de convidar as famílias para que estivessem nesta sessão, tendo todos os deputados ficado de pé para aplaudir para a família de Fernando Barreiros dos Reis, que está presente, e todos os deputados se levantaram para aplaudir.
Depois, Aguiar Branco passou a falar dos princípios que o 25 de Abril trouxe e que por vezes são menos celebrados, como o direito e o dever de exigir mais de quem nos governa e de concretizarmos os nossos sonhos individuais. Alguns, prosseguiu, podem dizer que “Abril está por cumprir”; mas o PAR defende que Abril “mudou” e por isso “o país quer mais, exige mais”, seja na Saúde, Educação ou Habitação. “E o país tem razão. Continuamos a querer concretizar os nossos sonhos. Temos é mais sonhos. Temos é sonhos maiores”. Essa é a pesada herança que os capitães de Abril deixaram, sobretudo aos políticos, frisou.
E é essa herança que explica que “tantos e tantos portugueses desiludidos, tantos e tantos portugueses zangados, tanta e tanta polarização, tanta radicalização e tanto populismo”, prosseguiu. E, questionando se se deve “culpar” os portugueses por isso e pelas suas escolhas nas urnas, disse ter “genuínas dúvidas de que a resposta a isto seja mais ideologia, mais guerras culturais, mais partidarização, mais tática política, mais jogos parlamentares”, tentando deixar uma espécie de guião ao Governo e aos partidos para lidar com o populismo e não entrar no mesmo jogo, nem culpar os eleitores.
“A desilusão de uns resolve-se com boa governação. A polarização de outros resolve-se com soluções”, e não com “discursos mais ou menos inflamados”. É preciso, sublinhou, “resolver” e não “combater”. Por isso, foi buscar o exemplo de Mário Soares, a personificação maior de “bom senso e sabedoria” que hoje se descreve como “moderação”, disse, recordando que Soares tanto combateu o PCP nas ruas como combateu a sua ilegalização, que foi exemplo de “reconciliação” e de “respeito pela diferença”. “A diferença soma e acrescenta. Isso é sabedoria. É bom senso”.
A sessão acabaria com as bancadas da esquerda a começar a cantar a Grândola, de cravos na mão (com parte da bancada de PSD e IL a ficar para o momento), e o Chega a abandonar a sala (o partido justificaria que o programa das cerimónias dita que o fim da sessão acontece quando se canta o hino nacional). Marcelo saiu, de acordo com o protocolo, mas também a cantar.