Existe uma fórmula nas narrativas de Alfonso Cuáron, mais ou menos evidente, dependendo da obra, e que já não deveria causar surpresa. Ela repete-se em Disclaimer e talvez o maior spoiler desta série é dizer precisamente isso. Ao mesmo tempo, se não é novidade, não configura a figura de um spoiler. No meio desta exploração filosófica (e apesra dela), uma certeza resiste e afirma-se: a aposta na Apple TV+ em Cuáron é certeira.
Já estão disponíveis dois episódios e os restantes chegarão todas as sextas-feiras, à maneira de um por semana. E mesmo que a frase seguinte pareça vazia de atitude, é mesmo factual e verídica: esta é uma daquelas séries que compensa muito ver aos bocadinhos. Para saborear ao poucos e, sobretudo, para apreciar e pensar naquilo que o realizador e argumentista nos propõe. Para lá da ideia de história, Disclaimer vive de ser um exercício para nos levar ao limite: em que ponto é que cedemos no engano? Nunca vemos Indira Varma, apenas a ouvimos enquanto narradora, e este é um elemento fulcral para que Disclaimer funcione e em nenhum momento questionemos a razão de ser daquilo que estamos a ver. A narração tem pouco de transcendente, mas leva-nos para a cabeça das personagens naquele momento. Retira dúvidas e, sobretudo, remove-nos de qualquer julgamento moral que possa estar a existir naquele momento. Aproxima-nos e, em diversos momentos, sentimo-nos como elas, enfiadas naquela gaiola. Cada personagem tem a sua.
[o trailer de “Disclaimer”:]
Se calhar íamos à história, não era? Muito bem. Catherine Ravenscroft (Cate Blanchett) é uma documentarista muito respeitada que conhecemos num momento em que está a receber um prémio. Vive uma vida bastante confortável, tem uma casa incrível em Londres, que partilha com o marido Robert (Sacha Baron Cohen) e, até há pouco tempo, com o filho Nicholas (Kodi Smit-McPhee), que tem vinte e cinco anos e só agora saiu de casa dos pais. O que vai perturbar o conforto desta família é algo bizarro: nesse dia chegam a casa e Catherine depara-se com um livro que lhe foi enviado. Ao lê-lo, apercebe-se que relata com grande detalhe um episódio da sua vida. É um romance que acaba de ser autopublicado e que a expõe de uma forma imprevista. Das duas, três: ou é um ataque à sua pessoa, uma vingança ou um golpe muito baixo.
E já agora: como é que é possível que a pessoa que escreveu a carta saiba tanto e com tamanho detalhe sobre o que se passa na vida de Catherine? É uma pergunta que se mantém ao longo da série e que apenas acrescenta (em bom) A tudo o resto que vamos vendo. Não é uma história dentro da história, não é um sub-aluguer: é omnipresente.
Em paralelo, há cenas que mostram a viagem de dois jovens adultos em Itália e de um antigo professor (interpretado por Kevin Kline) que está preso a uma vida do passado. É muito rancoroso. Kline é também um dos narradores de Disclaimer, mas, ao contrário da voz de Varma, a sua atitude pesa de forma diferente na interpretação geral: é desde o início emocionalmente manipulativa e muito condicionada. O balanço entre as duas é eficaz, a forma como, ao longo do primeiro episódio, estes três momentos diferentes (a família Ravencroft, a viagem a Itália e o professor) vão fazendo sentido é notável. E o que mais gozo dá é perceber o artifício narrativo de Cuáron.
Isto quer dizer que o formato minissérie serve o realizador? Não necessariamente, o que há aqui é uma história — a série é baseada no romance de Renée Knight — que contorna as grandes evocações e a tentativa de grandes temas dos seus filmes. Não é que os eventos de Disclaimer sejam banais, mas em nenhum momento a série nos tenta ensinar algo ou dizer-nos como nos devemos sentir, ou esperar qualquer tipo de elevação. É bastante terrena, até. Nos episódios mais manipulativos (o terceiro e o último), há uma contenção inesperada causada pelas palavras que ouvimos ao invés das imagens que vemos. É como se Cuáron se removesse da sua Cuáronzisse (perdão). E, vamos arriscar: é capaz de não agradar tanto a quem gosta muito do realizador.
Isto é positivo. Para fãs e não fãs. Porque se há qualquer coisa de exercício formal nos primeiros dois episódios, depois o drama toma conta de tudo. A história raramente é confortável e há qualquer coisa de abominável latente em algumas personagens. Tem um monte de buracos no argumento e coisas que deixam os mais atentos exasperados, mas vale a pena saltar por cima disso e (tentar) admirar o jogo narrativo de Disclaimer. Porque é contínuo, cabe bem em sete episódios e guarda uma mão cheia de boas interpretações: além das mencionadas, faltou referir Leila George, que interpreta uma Catherine mais nova e que é uma peça essencial para a manipulação da série funcionar tão bem.