O acórdão do Tribunal Central Administrativo do Sul (TCAS) visa diretamente o Chefe de Estado-Maior da Armada (CEMA), o almirante Gouveia e Melo, na anulação do castigo aplicado aos marinheiros que recusaram embarcar no navio NRP Mondego. A Marinha reagiu ainda na quinta-feira à noite a tentar distanciar o CEMA do caso, mas os juízes consideraram que Gouveia e Melo validou “atos ilegais” na aplicação do castigo agora anulado.

Na base desta análise do tribunal está o facto de Gouveia e Melo, enquanto chefe do Estado-Maior da Armada, ter indeferido os recursos hierárquicos dos 13 marinheiros relativamente às sanções aplicadas — que vão dos 10 aos 90 dias de suspensão por insubordinação por desobediência. Com essa rejeição dos recursos, que se verificou em julho deste ano, o almirante confirmou as punições disciplinares dos marinheiros.

Tribunal anula castigo a militares que recusaram embarcar em navio. Marinha vai recorrer da decisão

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

O tribunal encontrou duas nulidades nessas sanções: o facto de os marinheiros terem sido inquiridos sem que lhes tivessem sido comunicados os seus direitos; e a participação do comandante de Mar e Guerra Rodrigues Teixeira como instrutor do processo disciplinar.

Segundo o acórdão, a que o Observador teve acesso, Rodrigues Teixeira fazia parte da cadeia de comando envolvida nos acontecimentos de 11 de março de 2023 e estava em condições de ser testemunha no âmbito de processo disciplinar, pelo que não poderia ser responsável pela instrução.

Os juízes entenderam que só havia duas opções para o comandante Rodrigues Teixeira:

  • Ou se declarava impedido de intervir em sede de processo disciplinar;
  • Ou podia ter declarado não ter conhecimento dos factos que podiam influir na decisão desse procedimento;

“Não o tendo feito, todos os atos de instrução e subsequentes, como a acusação e o relatório final do processo disciplinar em apreço, consubstanciam atos praticados por oficial impedido no caso concreto”, lê-se no acórdão. Daí que, continuam os desembargadores do TCAS, tais atos, por não cumprirem o Regulamento de Disciplina Militar da Marinha, são inválidos.

O mesmo se diga do “ato sindicado, na exata medida em que manteve, em sede de recurso hierárquico, tais atos ilegais“, lê-se no acórdão.

Marinha avança com processos disciplinares e remeteu informação à Polícia Judiciária Militar

Ou seja, ao manter os castigos, Gouveia e Melo acabou por dar cobertura às ilegalidades apontadas pelo tribunal à intervenção do comandante Rodrigues Teixeira no processo disciplinar.

Marinha procurou afastar Gouveia e Melo do caso

Cerca de duas horas depois de ser conhecida a informação da anulação das sanções aos marinheiros, a Marinha emitiu uma nota a salientar que o castigo não tinha sido aplicado por Gouveia e Melo e sim pelo comandante naval Chaves Ferreira. Contudo, não indicava que os castigos tinham sido confirmados pelo Chefe do Estado-Maior, com a rejeição dos recursos hierárquicos.

“Considero (..) que os atos recorridos não merecem qualquer censura à luz do direito aplicável, devendo, por isso, manter-se na ordem jurídica e, consequentemente, produzir todos os efeitos jurídicos”, pode ler-se no despacho de 1 de julho no qual indeferiu os recursos.

Por outro lado, a Marinha destacou também que vai recorrer da decisão, lembrando que o acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul “ainda não transitou em julgado”. E acrescentou que existe um histórico favorável neste processo contra os marinheiros que se recusaram a embarcar no NRP Mondego por alegada falta de condições.

Um almirante de braço dado com D. João II e “3 anos de transformação”: última Revista da Armada do mandato só fala de Gouveia e Melo

“A maioria dos processos relacionados com este caso tem tido desfechos favoráveis à Marinha, com decisões proferidas tanto por este tribunal como por outras instâncias”, referiu a Marinha.

Defesa de marinheiros aponta “paternidade” dos castigos ao almirante

Em declarações ao Observador, o advogado Paulo Graça, que representa os marinheiros neste processo, defendeu que a “paternidade” das sanções aplicadas pertence a Gouveia e Melo e criticou a Marinha por divulgar “uma falsidade” na sua reação pública.

“A posição da Marinha contém uma falsidade na medida em que, tendo os militares sido punidos pelo comandante naval, foi interposto recurso hierárquico necessário para Gouveia e Melo, o qual tinha o poder de confirmar ou revogar o ato. O almirante não só confirmou esse ato, como o fez num despacho longo. Ao confirmar, assumiu a paternidade do ato jurídico“, afirmou.

Advogado dos militares que se recusaram a embarcar admite processar Gouveia e Melo por “cerimónia de humilhação e vexame público”

Aliás, Paulo Graça esclareceu que o recurso ao qual o Tribunal Central Administrativo Sul deu agora razão só foi possível face à intervenção do CEMA no recurso hierárquico dos processos disciplinares. “Não seria possível impugnar diretamente o ato do comandante sem passar pelo almirante Gouveia e Melo. A natureza do recurso assim o impõe”, finalizou.

Uma recusa que agitou a Marinha portuguesa

Em março de 2023, o NRP Mondego não realizou uma missão de acompanhamento de um navio russo perto da ilha do Porto Santo, depois de vários militares se terem recusado a embarcar. A Marinha participou então o incidente à Polícia Judicial Militar.

Gouveia e Melo: recusa dos militares vai ser algo “notado pelos nossos aliados”

Na sequência desse episódio, Gouveia e Melo fez questão de subir ao navio para dizer “olhos nos olhos” aos marinheiros que não cumpriram a missão que “a Marinha não pode esquecer, ignorar, ou perdoar atos de indisciplina”.

Argumentando que a disciplina é um “valor imutável”, Gouveia e Melo criticou ainda alguns destes militares por terem feito e enviado “uma lista das avarias e problemas do navio” para entidades externas à Marinha, “com um intuito” de poder encontrar “apoio para os atos de insubordinação”. E atirou: “Comprometeram a reserva necessária sobre o estado dos equipamentos militares, aparecendo esses relatos na rede Whatsapp, aberta a todo o mundo.”

No despacho de indeferimento dos recursos, o CEMA voltaria a insistir na gravidade da conduta dos marinheiros por não terem seguido as ordens.

“Atendendo a que a disciplina e a hierarquia militares são valores essenciais para a coesão das Forças Armadas e para o cumprimento das suas tarefas e missões, e que a conduta dos recorrentes e as infrações disciplinares cometidas são suscetíveis de gerar um efeito negativo para a instituição e para os seus camaradas, as penas aplicadas mostram-se adequadas e proporcionais à gravidade das infrações”, concluiu.

(artigo atualizado às 22h40)