– A Rosalía tem razão, a fama é uma má amante?
– É uma má amante se não souberes conviver com ela. Mas posso entender perfeitamente que no final do túnel possa existir depressão.
– Porquê?
– Eu fluo e faço o melhor que consigo, o melhor que sei fazer, que é jogar futebol. Mas nunca escolhi ser uma referência, são as pessoas que te colocam nesse lugar. A fama, ou ser famoso, pode condicionar a tua forma de ser pelo que as outras pessoas pensam ou dizem. Isso é que pode ser perigoso…
Numa entrevista ao El País em março, após ganhar duas Bolas de Ouro como melhor jogadora do mundo na fase em que estava a recuperar de uma grave lesão nos ligamentos do joelho, Alexia Putellas colocou-se onde o destino a quis premiar. Neste caso, foi mesmo destino. Melhor, uma conjugação cósmica, daquelas que dão a provar numa espiral de altos e baixos tudo o que o futebol pode trazer de bom e de mau. Chorou porque foi pela primeira vez campeã europeia de clubes, chorou porque um treino fez com que saísse de muletas e não em ombros do Europeu, chorou porque ficou sem poder fazer o que mais gosta, chorou porque foi premiada mesmo não podendo fazer o que mais gosta. Chorou ela, choraram muitos e muitas que sofriam como ela. As diferenças de realidades podem ser muitas mas ganhou o estatuto pelo qual há muito a tratavam: Rainha.
Há uma comparação com Robert Lewandowski, o Bola de Ouro masculino quando ganhou o primeiro troféu da France Football, que ainda a faz rir depois de tantas lágrimas. O que aparece quando se procurava então no Google pelo nome de Alexia Putellas? “Parceira, namorado, salário” – coisas que não apareciam numa procura pelo avançado polaco. “Há uma dupla leitura nisso, talvez saibam tudo sobre o Lewandowski e não sobre mim, com quem tenho relação ou quanto ganho. No final, na verdade, não acho que as pessoas tenham assim tanto interesse em saber quanto cobro ou com quem namoro, o que sinto mesmo é que as pessoas nos dão valor por aquilo que fazemos em campo”, atirou. Durante anos, a catalã só queria jogar; agora, quer ser reconhecida pelo que joga. E é por isso que, nas dezenas e dezenas de entrevistas que deu nos últimos anos (sobretudo nos últimos dois), acaba sempre a dizer que sonha com o dia em que fale só de futebol.
“Para mim sempre foi algo normal jogar futebol. Desde pequena que foi assim. Mas afinal havia sempre uma diferença quando éramos mais novos: os rapazes que começavam podiam ter o sonho de chegar depois a profissionais, eu não. Fazia tudo aquilo como um hobby, tal como eles, mas a saber que eles sim, podiam chegar a profissionais. Quando te perguntam o que queres ser quando fores grande, os rapazes diziam que queriam ser futebolistas mas as raparigas não porque isso não existia. Essa é a grande diferença”, contou numa entrevista à GQ. A esperança nem chegava a esfumar-se porque simplesmente era utópica. Mas Alexia tinha outro “fardo” além da frustração, que passava pelo perfecionismo que aprendeu a fintar.
“Sobretudo quando era mais nova, há uns dez anos, essa parte de mim afetava-me de forma negativa. Até começar a perceber que o futebol é um desporto de erros e que os erros fazem parte do jogo, as críticas que fazia a mim própria tornavam-se prejudiciais porque era incapaz de assumir essa vertente do erro. Hoje vejo que é impossível não falhar, que só há golos no futebol porque se cometem erros, que se fosse tudo perfeito não havia golos. Até interiorizar, era um problema para mim. Se a vida também é um desporto de erros? Sim, claro. É por isso que as pessoas que mais me inspiram são as que sentem mais paixão pelo que fazem, nem que seja dobrar um guardanapo. Alguém que faz o que quer e com paixão, isso inspira-me”, diz.
Foi com esse princípio simples que Alexia Putellas chegou ao patamar em que a comparam com Jimi Hendrix por fazer magia de forma indistinta com guitarras para destros e canhotos, com Diego Armando Maradona por jogar de pé esquerdo e escrever com a mão direita e com Lionel Messi por fazer a diferença com o pé que está mais à mãos sendo alguém reservada que fala pouco mas faz-se sempre ouvir quando assume o discurso. No fundo, o que faz em campo, tendo mais ou menos bola. E o que fez ao longo da vida desde os três anos até aos atuais quase 30 ou da altura em que queria ser a melhor na rua até se tornar a melhor do mundo.
Foi na Plaza del Ayuntamiento de Mollet, onde nasceu em 1994, que Alexia começou a jogar futebol com os rapazes da rua – muitos deles ainda hoje dos amigos mais próximos que tem fora dos holofotes mediáticos. Chegou a assinar mais tarde, em 2001, com o Mollet, mas o gozo que ia sentindo por parte de alguns dos seus novos companheiros fez com que se queixasse aos pais e passasse para o Sabadell, neste caso já numa equipa feminina. No entanto, e mesmo neste contexto, o verdadeiro “jogo” que tinha de vencer passava pela força de se levantar no dia seguinte a chegar a casa muitas vezes depois das 23h e deitar-se por volta da 1h/2h. No verão era menos mau, no inverno tornava-se às vezes um “terror”. Nem por isso deixou de fazer o que mais queria, custasse o que custasse. E a figura do pai, que passava por casa depois de sair da fábrica da Honda e ia depois buscá-la, foi sempre a gasolina que lhe manteve o motor de um sonho incerto.
“Sinto que este é um prémio individual mas que premeia o êxito coletivo. Se me permitirem… Queria dedicar este momento a alguém muito especial, espero não emocionar-me… É para alguém que foi, é e será sempre muito especial para mim. É por quem faço tudo. Espero que estejas muito orgulhosa da tua filha, aí onde estás. Este é para ti, papá”, agradeceu em lágrimas em 2021, quando recebeu a primeira Bola de Ouro. Na altura da morte do progenitor devido a problemas cardíacos, o que fez com que ponderasse entrar em medicina na Faculdade, Putellas jogava no Levante mas a ir todas as semanas à Catalunha e estava prestes a arrancar o Campeonato da Europa Sub-19 de 2012, que iria perder no prolongamento com a Suécia.
Por alguns meses, Jaume não chegou a ver o primeiro dos muitos sonhos que a filha viria a realizar, neste caso o regresso ao Barcelona. Seguiram-se os títulos pela seleção (Sub-17) e pelo clube, num leque de troféus entre sete Campeonatos, sete Taças, duas Supertaças e duas Champions. Os prémios individuais, como duas Bolas de Ouro, dois The Best da FIFA e dois Melhor Jogadora do Ano da UEFA que nunca ninguém ganhara de forma consecutiva. O reconhecimento de elogios que valem tanto como as inúmeras medalhas que tem como a ideia de que “a dedicação de Alexia ao desporto revolucionou o jogo feminino”, escrito pela jornalista Asif Burhan, que trabalha com várias publicações incluindo a Forbes sobre futebol feminino.
Mas o que faz que Putellas especial? Em resumo, é o exemplo paradigmático do médio made in Barça, com um talento invulgar com bola, com uma visão acima da média e com o privilégio de poder jogar pelo clube de quem sempre foi adepta (daquelas de ir aos jogos). Quando era mais nova, a esquerdina seguia jogadores como Rivaldo, que jogava com o “seu” 11, Ronaldinho e Iniesta, até mais do que Louisa Nécib, jogadora do Lyon, a referência no futebol feminino quando era mais nova a par de Nadine Kessler y Camille Abily. Anos mais tarde, Iniesta mostrou-se rendido a Putellas “por ser um exemplo e um símbolo do Barça”.
A mentira para começar, a desilusão pelo meio e o regresso ao Barça em memória do pai
Como um dia escreveu no seu Twitter citando o alpinista e explorador Edmund Hillary, “não é a montanha o que conquistamos mas sim a nós mesmos”. Numa frase, esse foi o seu caminho de mais de duas décadas, no futebol e na vida. E sempre com o Barcelona, o clube de toda a família entre pais, irmã, tios e primos (só um é do Real Madrid), como o centro do universo numa ligação que começou com as idas ao café para ver o futebol na TV às romarias de meia hora de casa a Camp Nou para assistir aos seus ídolos ao vivo. Se os blaugrana se definem como més que un club, Alexia Putellas tornou-se desde cedo més que un jugador. E pouco ou nada interessava o contexto onde tinha de superar as dificuldades para fazer aquilo que melhor sabia.
Do pai ganhou o gosto pelo futebol, da mãe chegou a paixão pelo basquetebol, pelo meio ainda havia duas outras modalidades muito queridas na Catalunha como o hóquei em patins e o ténis. Entre todas, ganhou o futebol. Ainda mais quando teve a oportunidade de participar em dois campos de treinos que eram geridos por Xavi Hernández, antigo capitão e atual treinador do Barça. A família ajudou. A maioria dos pais pede apenas aos seus filhos para nunca deixarem os estudos; com Alexia, a mãe disse apenas que poderia jogar futebol se o deixasse de fazer na escola. Não deixou. E não deixou porque se hoje consegue perceber que era uma mera forma de tentar proteger a filha, na altura encarou como algo prejurativo, como se existisse quase vergonha de jogar com os rapazes. Após a curta passagem pelo Mollet, foi para o Sabadell, fintando o limite mínimo dos oito anos. Ali conheceu as futuras companheiras Vicky Losada e Marta Corredera.
A vontade estava lá, as condições não ajudavam. Alexia foi logo escolhida como uma das capitãs pela visível capacidade de liderança (já nos jogos de rua era uma das líderes quando chegava a altura de escolher as duas equipas) mas nem por isso deixava de ser pequena, franzina, fraquinha até na hora de tentar visar a baliza. Fazia a diferença na forma como sem bola procurava o espaço. Muitas vezes ficava frustrada por não conseguir o que outras conseguiam mas com o tempo começou a perceber que tinha coisas que mais ninguém tinha. As coisas que a levaram a entrar em La Masia, no ano de 2005. As coisas que não evitaram que saída de La Masia, no de 2006: no âmbito de uma reformulação do futebol feminino dos culé, quatro equipas deixaram de existir e Alexia foi dispensada. O pai ainda perguntou se poderia ficar apenas a treinar, o técnico Xavi Lorens explicou que nunca é bom não jogar. “Mas sei que ela na hora certa vai voltar”, disse.
Mudou para o rival, o Espanyol. Foi lá que terminou a formação, foi lá que se estreou na equipa principal com apenas 16 anos, foi de lá que se transferiu em 2011 para o Levante. Nesse verão de 2012, quando ainda fazia o luto pelo pai que sempre foi a figura mais próxima que teve, foi o mesmo Lorens que lhe ligou para convidá-la a regressar a La Masia. Aceitou, assinou, voltou para ganhar quase de imediato um lugar cativo na equipa. Mais de uma década depois, assim continua, com a única diferença de ter entretanto deixado a meio o curso de Gestão e Administração de Empresas iniciado em 2013 por se ter tornado profissional em 2015. Afinal, não eram só os rapazes da sua rua que podem sonhar. E foi Alexia que expandiu esses sonhos.
“Para mim, o mais importante é que todas essas raparigas tenham a oportunidade de ver que há jogadoras de futebol, que podem sonhar que um dia serão elas. Nós não tínhamos isso quando éramos mais novas e agora há essa parte, o que é muito importante. Musa? Não me considero uma musa, sou simplesmente uma miúda que adora futebol, que apaixonou e passa 24 horas em sete dias da semana a pensar neste desporto. Treino todos os dias da semana e sei o quanto trabalhei para ter essa oportunidade. Ganhei muitos prémios individuais mas sem as minhas companheiras nada ia ser possível”, comentou à revista Glamour.
A ascensão teve tanto de natural como de inevitável. Menina querida junto dos adeptos do Barcelona, que viam nela uma extensão da história formadora da equipa masculina, Alexia Putellas foi somando temporadas com médias de 35/40 encontros realizados com 12 a 20 golos, assumiu a braçadeira, ganhou protagonismo crescente da Nike que se tornou sua patrocinadora a partir de 2015, tornou-se a cara de tudo com cada vez mais contratos com marcas como a Cupra, a Allianz, a Visa ou a Mango potenciados pelas conquistas de duas Bolas de Ouro, tornou-se apenas a terceira futebolista após Cruyff e Messi a receber a Creu de Sant Jordi, começou a ser desenhada em enormes graffitis com a capa de Super Mulher em ruas da Catalunha. “Não mudes o teu sonho, muda o mundo”, defendia num dos últimos anúncios da Nike. A nível europeu, foi a eleita para protagonizar uma mudança que se mantém lenta ou não ganhasse “apenas” 150.000 euros/ano.
Tímida, reservada, observadora. Alguém que fala pouco mas faz-se ouvir, como Messi
O ligamento cruzado de joelho esquerdo foi mesmo o maior obstáculo ao longo de todo este caminho, com aquela imagem da entrada numa carrinha da Federação de muletas antes de fazer o exame que confirmaria a grave lesão que a afastou durante nove meses dos relvados. “Se tenho medo de não voltar a ser a mesma? Medo, não, mas sim, penso que posso não voltar a ser aquilo que era em campo, na plenitude de todas as minhas capacidades. Estou a trabalhar e a falar com pessoas que também tiveram esta lesão e a maioria só me disse para não colocar metas. É isso que vou fazer, um passo de cada vez”, comentou ao El País. Um dos passos era voltar, outro era jogar, entretanto voltou a ser campeã europeia de clubes. Segue-se o Mundial, depois do período de maior tensão com 15 jogadores (incluindo Alexia) a renunciarem por Jorge Vilda.
Também na seleção espanhola Alexia Putellas já fez história, tornando-se a primeira jogadora a chegar às 100 internacionalizações. No entanto, mudança de look à parte com o cabelo pintado de rosa por ter de cumprir uma promessa feita no balneário em caso de vitória na Champions, joga o que lhe falta: fazer uma grande competição pelo país. A Espanha, que terminou os últimos três Europeus com derrotas nos quartos, não tem grande história em Mundiais, ficando uma vez pela fase de grupos (2015) e outra pelos oitavos (2019). E não é também este ano que surge como uma das principais favoritas à vitória. No entanto, todos os olhos estarão centrados na médio ofensiva que já ganhou a segunda Bola de Ouro mais pelo estatuto do que pelo que fez em campo (por lesão) e que tem como principal inspiração nos dias que correm Serena Williams.
“Ela tem um legado que transcende a parte do ténis. Ganhou 23 Grand Slams, é um fenómeno. Inspirei-me nela e continuo a fazê-lo. Se a Bola de Ouro me dá superpoderes? Não, sentes que és a mesma pessoa, tens as mesmas condições”, comentou, antes de destacar também a antecessora no troféu da France Football, a também norte-americana Megan Rapinoe. “Leva muitos anos entre a elite e ganhou os principais torneios com a sua seleção. O que posso dizer mais? É muito boa e é um orgulho ser a sucessora no prémio”, referiu, antes de abordar também as diferenças com o futebol masculino em relação à aceitação da homossexualidade como aconteceu com Rapinoe em 2012: “No masculino é muito complicado mas essa é outra das coisas boas que tem o feminino, o nosso balneário normaliza qualquer tipo de família que qualquer jogadora queira criar. Todos respeitam, não há juízos ou insultos. É o caminho natural que o desporto deve seguir”.
Falando sobre os prémios individuais recebidos, garante que continua a ser “a mesma”. “Tenho a energia que tinha antes, é igual. Mas sim, hoje sou mais consciente que pelo menos inspirei muitas pessoas”, frisa, entre confidências como a carta de parabéns enviada pelo Rei Felipe VI e o reforço de que tudo o que ganhou nos últimos anos, entre fama, dinheiro e mediatismo, não se aproxima sequer da paixão pelo futebol. “Hoje sinto que represento muitas pessoas, pessoas que não tiveram estas oportunidades. Sinto essa responsabilidade mas o mais importante é sempre teres prazer naquilo que fazes, o resto é consequência”, disse à Elle, a quem abordou também a parte da saúde mental com um resposta diferente do habitual: “Eu gosto de sentir a pressão, necessito dela para ter mais vontade de ganhar e não acredito que sem ela renda o mesmo mas há dias bons e maus. Quando são maus, temos essa vantagem de ser um desporto coletivo”.
Xavi Llorens, o primeiro treinador que teve no Barcelona (o mesmo que anunciou ao pai a dispensa e mais tarde conseguiu o acordo para regressar), vê algumas semelhanças com outro “miúdo” com quem trabalhou em La Masia: Lionel Messi. “É muito tímida e fala pouco mas quando fala, faz-se ouvir. É concisa, gosta de estar a controlar tudo. Olha muito, observa, fala pouco mas quando fala é clara. O Leo também era assim, as intervenções que tinha era com os companheiros com quem tinha confiança. Hoje é uma referência para todas as companheiras mas gosta de ficar a observar e a mostrar atenção aos pormenores”, recorda. Em campo, a grande mutação, tal como aconteceu com o argentino, foi a forma como começou a perceber todos os momentos de jogo e a ver como podia potenciar os seus pontos fortes escondendo as (poucas) debilidades.
Apesar dos pontos de contacto na maneira de ser e na carreira, há um oceano de diferenças entre Messi e Putellas como aquele que divide Barcelona e Miami, onde o argentino irá representar o Inter a troco de 40 milhões de euros por época até 2026 – fora os milionários contratos de patrocínio que tem e que irão agora ser potenciados com a ajuda da Adidas e da Apple para a concretização da chegada à MLS. No entanto, até a ganhar menos num ano do que o campeão mundial em menos de uma semana, a grande luta de Alexia Putellas é poder chegar a uma das muitas entrevistas que vai continuar a dar para falar apenas de futebol e não de diferenças, de mudanças e de causas. Como diz o anúncio, “não mudes o teu sonho, muda o mundo”.