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Tudo começou em 1972, quando um grupo de jovens atores profissionais do Porto, entre os quais António Reis, Estrela Novais e Júlio Cardoso, resolveu pôr em prática uma ideia que já tinha há vários anos: criar uma companhia de teatro. “Durante um ano reunimo-nos em cafés da cidade todos os dias, era quase um vício”, começa por contar ao Observador Júlio Cardoso.
Naquela época, recorda o ator de 83 anos, o teatro era “amordaçado” pela censura, o que afastava o público das salas, estavam proibidas as cooperativas e as associações e na cidade existia apenas o Teatro Experimental do Porto (TEP), companhia fundada em 1953. “O TEP saía pouco à rua, desenvolvia um trabalho mais conservador nesse sentido”, sublinha Júlio, acrescentando que a intenção do grupo se resumia em aproximar o teatro independente do público, “criando uma fábrica do saber”.
“Se o público não ia ao teatro — e mesmo assim ia mais do que hoje — tinha de ser o teatro a ir até ele, daí termos decidido o nome trupe. Depois tínhamos de apostar em atores que estivessem constantemente a interrogarem-se, algo que parece muito simples, mas que é tremendamente difícil, e, finalmente, fazer com que o espetador saísse da sala melhor do que encontrou.”
Baseados nestas premissas, a 11 de setembro de 1973, Júlio Cardoso, António Reis e Estrela Novais, “de carteira profissional na mão”, fizeram a escritura de uma sociedade artística no Cartório Notarial do Porto, situado no primeiro andar do famoso café “A Brasileira”. “Enquanto Pinochet derrubava Salvador Allende num golpe de Estado no Chile, nós fazíamos outra história no outro lado do mundo”, recorda um dos fundadores da Seiva Trupe. Nesse mesmo ano, a companhia encenou a primeira peça, “Musicalim na praça dos brinquedos”, de Stella Leonardos, e alugou um armazém na rua do Bonjardim, que funcionou durante vários anos como sede.
A formação de novos públicos e artistas e o legado na cultura da região
A intenção sempre foi integrar a companhia num projeto cultural mais amplo capaz de trazer dinamismo à cidade através de atividades paralelas, como conferências, recitais de poesia, concertos ou ciclos de cinema. “O primeiro concerto de rock em português foi promovido por nós em 1977. Era uma banda de uns alunos do conservatório de música, fomos muito criticados na altura e até nos quiseram bater”, conta Júlio Cardoso, realçando que o grupo atuava em “vilas, aldeias ou cidades” a convite de “presidentes da junta, professores ou padres”.
“Fazíamos essencialmente clássicos da dramaturgia, mas com uma leitura atual, havia uma curiosidade e uma ebulição nas pessoas. Chegámos a ter em cena a “Casa de Bernarda Alba”, do Frederico García Lorca, durante dois anos, tínhamos apoios financeiros de empresas e até de bancos, os nossos espetáculos esgotavam com 15 dias de antecedência.”
Depois de “muitas conversas com amigos espanhóis” e de muitas viagens a Madrid, a Barcelona e à vizinha Galiza, em 1978 o grupo de atores cria o FITEI – Festival Internacional de Teatro e Expressão Ibérica, uns anos mais tarde, em 1983 instituem o prémio bienal Seiva Trupe, que distinguiu personalidades do Porto nas áreas das artes, ciências e letras, como Manoel de Oliveira, Eugénio de Andrade, Júlio Resende, Álvaro Siza Vieira ou Ilse Losa.
Se por um lado a companhia enaltecia o talento local, por outro estava atenta a projetos emergentes e à formação de novos públicos, mas também de novos atores. Foram muitos os cursos intensivos de iniciação à prática teatral que a companhia impulsionou na Escola Artística da Seiva, local que funcionou até nascer a ACE — Escola de Atores, em 1990.
Em 1993, o coletivo é declarado Instituição de Utilidade Pública, um reconhecimento não apenas da sua obra no teatro, mas também de debates e outras iniciativas que contribuíram para a formação de massa crítica cultural da região norte, já em 2010, no Dia Mundial do Teatro, foi condecorado com o de Membro Honorário da Ordem de Mérito. “Durante muitos anos fomos considerados a principal companhia de teatro do país, disso não tenho dúvidas nenhumas”, enfatiza um dos fundadores.
A itinerância que “faz sentido” e o despejo polémico
O lado itinerante da Seiva Trupe foi sempre uma das suas principais características e, nas palavras do fundador, “até fazia sentido” quando a intenção era aproximar o público do teatro independente. “Fomos sempre nómadas, passámos por várias salas de ensaio e atuamos em vários locais, como a Cooperativa do Povo Portuense, a Cooperativa Árvore, o Museu Nacional da Imprensa, a Casa Allen, a sala do Cineclube, a Fundação Escultor José Rodrigues ou a Casa Comum, na Universidade do Porto.”
Em fevereiro de 2000, o grupo celebrou um contrato com a Fundação Ciência e Desenvolvimento que previa que se tornasse a companhia residente do Teatro Campo Alegre até dezembro de 2014, mas tal não chegou a acontecer. Em outubro 2013, a Seiva Trupe foi despejada pela Câmara Municipal do Porto do teatro por ter falhado o pagamento de prestações, devido a dificuldades financeiras, acumulando uma dívida superior a 121 mil euros.
Segundo noticiou o Público na altura, o despejo aconteceu de madrugada e, segundo um elemento da Seiva Trupe, funcionários do município e da polícia municipal retiraram todo o material das várias salas, incluindo computadores e o próprio cenário que estava a ser montado para uma peça. Ao chegarem de manhã, as fechaduras tinham sido trocadas e um aviso informava que havia sido dado cumprimento a uma ordem de despejo.
A companhia classificou a desocupação do Teatro Campo Alegre como o “culminar de uma perseguição política” por parte do antigo presidente da autarquia, Rui Rio, e instaurou uma providência cautelar para suspender a ação. Após um longo período de negociações com o município, a Seiva Trupe queria regressar ao teatro nas mesmas condições e como companhia residente, o que acabou por não acontecer.
Jorge Castro Guedes tem 68 anos, estreou-se como ator no núcleo fundador da Seiva Trupe, mas em 1989 abandonou o Porto. “Estive uns anos em Viana do Castelo, Lisboa e Paris, fiz várias coisas como ator, encenador e dramaturgo, até que no final de 2018 o Júlio Cardoso telefona-me a convidar para assumir a direção artística da companhia”, recorda ao Observador.
O convite para dirigir o coletivo que viu nascer era irrecusável e tinha tanto de motivador como de complexo. “Um dos meus grandes objetivos era encontrar um espaço próprio onde pudéssemos ensaiar e mostrar o nosso trabalho. São nove anos de trouxe às costas e isso faz perder muita gente, o público não sabe onde a Seiva Trupe está ou deixa de estar.”
“A Seiva quis, o Porto quis: aconteceu”
De regresso ao Porto, Castro Guedes estava consciente da dificuldade em encontrar na cidade um espaço que reunisse todas as condições técnicas para a companhia se instalar e foi num passeio a pé pela rua Costa Cabral que, no final do ano passado, parou no número 128. “Bati à porta da Sala Estúdio Perpétuo que tinha acabado de reabrir e fui recebido de braço abertos”, conta.
A fachada composta por tijolos barro, as cadeiras em tom azul-escuro geometricamente alinhadas, as fotografias a preto e branco, os cartazes e as bobinas de filmes expostos em vitrinas compõem o antigo Cinema Estúdio, inaugurado em 1966 e desenhado por Luís Cunha, arquiteto portuense conhecido pelo seu estilo pós-modernista.
O edifício está inserido no complexo da IPSS Perpétuo Socorro, fechou portas há mais de 40 anos e reabriu-as em outubro de 2021 como Sala Estúdio Perpétuo, pronta para receber sessões de cinema, concertos, exposições e oficinas, sem esquecer a vertente educativa que está na sua génese, numa programação feita com base em parcerias. “Quando cá cheguei, a Opium [empresa com sede no Porto que trabalha a dinamização cultural e territorial] já estava a programar cinema e música, falámos com eles e incluímos também o teatro.”
A Seiva Trupe ocupa agora três espaços do edifício – uma sala de ensaios, um armazém para guarda roupa e adereços e ainda uma zona de escritório – e partilhará a sala estúdio, com 400 lugares disponíveis, duas a três vezes por ano com espetáculos de maior dimensão, mas a intenção é continuar a ter uma programação regular noutras moradas da cidade, tendo já iniciativas agendadas até agosto.
“Todos os meses queremos apresentar na Universidade do Porto, no Museu Nacional de Imprensa, no Museu Nacional Soares dos Reis, na Universidade Católica ou na Cooperativa do Povo Portuense. Não queremos perder esse lado de trupe que nos é tão original e não podemos perder o contacto com o público. A companhia tem uma casa nova, mas continuará a ir à procura das pessoas para recuperar o público que inevitavelmente ao longo de nove anos perdeu, e para conquistar novos públicos que foram surgindo”, explica o diretor artístico.
Símbolo de resistência, a Seiva Trupe tem um legado emblemático e indiscutível na cidade do Porto, perspetiva agora o futuro com otimismo, mas reconhece que ainda há “muito trabalho a fazer”. “Sabemos que em 20 pessoas, da peixeira do Bolhão ao professor universitário, mais de metade conhece o trabalho da companhia, mas a sua reaproximação leva tempo. Não vai ser fácil, temos de divulgar esta sala e esperar que as pessoas se habituem a vir cá.”
O contrato de ocupação tem um prazo de cinco anos renováveis e nos próximos meses o palco irá sofrer uma “obra profunda”, avaliada em meio milhão de euros e inteiramente financiada pela Câmara Municipal do Porto, nada que impeça que a programação aconteça. “Vamos transformar o próprio palco, que passará a ter um avançado de cena, construído de forma a que possa ser um fosso de orquestra, vamos alterar a mecânica de cena para um maior aproveitamento da teia e, sobretudo, temos de apostar em equipamento de luz e som. Prevejo que os trabalhos estejam concluídos em 2023 e iremos fazer tudo isto sem um cêntimo vindo da capital, o que é um motivo orgulho, mas também um motivo de indignação pelo Porto e o Norte serem tão mal tratados”, sublinha Jorge Castro Guedes.
Este domingo, Dia Mundial do Teatro, a companhia estreia a peça “Três Mulheres em Torno de um Piano”, com texto e encenação de Jorge Castro Guedes e interpretações das atrizes Sandra Salomé, Kátia Guedes e Teresa Fonseca e Costa. “A peça fala-nos do lado sexual nos lares de terceira idade, através de uma linguagem muito bizarra, cómica e reflexiva ao mesmo tempo. Como encenador não tenho nada a visão de que o teatro fornece soluções ou respostas, ele provoca reflexões e sentimentos. Neste espetáculo há sempre presente uma interrogação, é como se no fim de tanto nos rimos nos olhássemos ao espelho e víssemos os problemas sociais e o nosso próprio comportamento.”
A peça escrita pelo encenador em 2011, estará em cena até dia 11 de abril e dura 90 minutos. “É exatamente o tempo de um jogo de futebol, sem contar com o intervalo e com o tempo de compensação. Quem nos dera que todas as pessoas que fossem ao futebol fossem também ao teatro. Estamos em negociações com o Futebol Clube do Porto para fazer uma parceria, se calhar não estamos assim tão distantes quanto isso”, revela o diretor artístico da companhia.
Rua Costa Cabral, 128. Segunda e quinta, às 21h30, sexta, sábado e domingo, às 19h. Tel.: 91 351 8401. Bilhetes entre os 6 e os 12 euros.