Quando a economia arrefece e as empresas sentem mais dificuldades no acesso a crédito e a garantias para investir ou exportar, o projeto de um banco do fomento parece sair da gaveta dos ministros como resposta à falta de respostas da banca comercial.
Foi assim na recessão de 2009, ainda com Sócrates na liderança do Governo, repetiu-se em 2012 no pico da crise das finanças públicas e da troika, e volta como prioridade agora, em 2020, no Programa de Estabilização Económica e Social (PEES) para combater os efeitos económicos da pandemia. Aliás, como outros projetos de relançamento da retoma testados na última grande crise, como o crédito fiscal ao investimento e a exploração dos recursos minerais do país.
Esta quinta-feira, o Conselho de Ministros aprovou um passo fundamental para a concretização do Banco do Fomento: a fusão da Instituição Financeira de Desenvolvimento, da Sociedade Portuguesa de Garantia Mútua e PME Investimento, que darão lugar a “um verdadeiro banco de fomento, que possa apoiar diretamente as empresas sem necessidade de intermediação do sistema bancário”, afirmou António Costa na votação do Orçamento Suplementar.
A ideia já estava em movimento, mas é agora relançada como um instrumento fundamental para fazer chegar o apoio das linhas de crédito às empresas, depois de muitas queixas sobre o estrangulamento das candidaturas e a burocracia que a empresas tiveram de enfrentar durante as primeiras semanas em foram disponibilizados os instrumentos de apoio.
Um inquérito da CIP (Confederação Empresarial de Portugal), divulgado esta semana, indica que mais de 50% das empresas que pediram financiamento bancário ao abrigo dos programas de apoio do Estado para o combate à Covid-19 ainda não o receberam. O processo de concessão de garantias do Estado aos financiamento é outro dos aspetos que o Governo pretende dinamizar com a nova instituição.
O Banco do Fomento que agora renasce ainda aguarda pareceres da Comissão Europeia – um dos pontos que tem de ser autorizado é a faculdade para operar como banco de retalho – e do Banco de Portugal. Só depois poderá ter luz verde. E só deverá ser lançado no início de 2021.
O ministro da Economia, Pedro Siza Vieira, reconheceu que Portugal está em desvantagem face a outros países europeus, por ser um dos únicos que não dispõe de um banco de fomento. E lamentou a decisão de privatizar o Banco do Fomento Externo e a Cosec, prestadora de seguros de crédito.
Siza Vieira lamentou privatização do Banco do Fomento… que foi vendido por um Governo PS
O processo de fusão aprovado estava previsto há cerca de oito anos, quando o projeto foi relançado pelo então ministro da Economia, Álvaro Santos Pereira. Mas apesar de a ideia de um banco do fomento público ter sido apoiada tanto por governos socialistas como do PSD/CDS, o projeto não foi consensual e teve alguns opositores de peso.
Álvaro queria um banco, Gaspar queria outro
A ideia original de relançar um banco do fomento nasceu ainda no Governo de José Sócrates, com Teixeira dos Santos nas Finanças, mas não avançou por causa da crise económica e financeira e da instabilidade política que levou à queda do Executivo e ao pedido de ajuda internacional.
O projeto renasceu em 2012 pela mão de Álvaro Santos Pereira, com a ideia de reforçar os mecanismos para apoiar a internacionalização das empresas e numa altura em que a banca comercial estava a dar os primeiros sinais de fraqueza. Na altura vivia-se uma situação de credit crunch (um “apertão” no acesso ao crédito por parte das empresas), sobretudo para as pequenas e medias empresas, a economia portuguesa mergulhava na recessão e o país estava sob a tutela dos credores internacionais.
O objetivo era alavancar os fundos comunitários disponíveis para Portugal, por forma a tornar acessível o acesso a financiamento e liquidez, numa altura em que a banca estava a fechar a torneira, até por imposição do Banco Central Europeu. O primeiro passo foi a criação de Portugal Ventures, empresa de capital de risco para financiar projetos de empreendedorismo e startup. Mas ambição do ministro da Economia era ir mais longe e desde logo esteve prevista a fusão das instituições do Estado que já cumpriam este papel, como a PME Investimentos e a SPGM.
Mas nem todos os ministros do Governo de Passos Coelho estavam entusiasmados. Pelo contrário, existiam plo menos duas visões distintas e conflituantes sobre o projeto. Do lado das Finanças, Vítor Gaspar queria criar um banco à imagem do modelo alemão, ao mesmo tempo que assumia através da tutela setorial, o controlo dos fundos comunitários (a única fonte de financiamento disponível para investir), de forma a poder também beneficiar a consolidação orçamental.
Foi um começo logo atribulado, como recorda o ex-ministro Álvaro Santos Pereira no livro “Reformar sem medo” de 2014, publicado pela Gradiva, onde relata a sua passagem como independente pelo Governo do PSD/CDS entre 2011 e 2013.
“No início, quando esta questão começou a ser abordada, Finanças e Economia partiram de modelos quase antagónicos. As Finanças tinham por principal objetivo que os fundos estruturais tivessem uma única porta de entrada que fosse controlada e, de preferência tutelada, pelo próprio Terreiro do Paço. (…) Por outras palavras, o Ministério da Economia queria um Banco de Fomento para as PME e o Ministério das Finanças queria mais fundos para o Orçamento de Estado. Modelos obviamente antagónicos. Por isso, após meses e meses de discussão, estava tudo a postos para o caso de os Ministérios não conseguirem chegar a um acordo sobre esta matéria”. O que acabou por resultar “não foi exatamente aquele que tínhamos preconizado” na Rua da Horta Seca, admite ainda o ex-ministro.
No entanto, Santos Pereira considerava que o Banco de Fomento, na sua versão possível, poderia desempenhar a função essencial de promover uma maior diversificação das fontes de financiamento das nossas PME, permitindo o acesso instrumentos financeiros a taxas mais favoráveis, como acontece em países como a Alemanha ou a França, cujos bancos de investimento públicos KFW ou o Banque Publique d’ Investissement estão amplamente envolvidos no programa de ajuda destes países às empresas.
As reservas de Bruxelas
O principal defensor do projeto, Álvaro Santos Pereira, viria a abandonar o Governo em julho de 2013. A orgânica do Executivo também não ajudou, com vários ministros envolvidos no dossiê que ninguém sentia como seu — Economia liderada por Pires de Lima, Fundos Comunitários com Poiares Maduro e Maria Luís Albuquerque nas Finanças. E foi Maria Luís Albuquerque quem teve de lidar com a primeira grande crise bancária resultante da queda do Banco Espírito Santo em 2014.
Os maiores obstáculos vieram, contudo (e desde logo), de Bruxelas. A Comissão Europeia, refere uma fonte do Governo da altura, dificultou o processo ao máximo. Não queria, porque se tratava de um banco público e que supostamente iria colocar em causa as regras da concorrência. E na altura estávamos em protetorado, sob a troika. Por isso foram empatando o mais que puderam.
O modelo inicial previsto não passou na Comissão Europeia, que só autorizou a primeira fase da IFD em outubro de 2014. O grande problema para a DGCom (direção-geral da concorrência europeia) em 2013 e 2014 eram as ajudas de Estado e a preocupação de que Portugal pudesse usar este banco para financiar empresas zombies, sem viabilidade económica. Também havia o receio de que o Banco de Fomento fosse usado para comprar dívida pública, como aconteceu com os bancos privados, numa altura em que Portugal tinha um acesso condicionado ao financiamento em mercado.
A DGCom limitou o Banco de Fomento a usar empréstimos de instituições como o BEI (Banco Europeu de Investimentos) para repassar esse crédito para as empresas, e tudo tinha de ser tudo autorizado pela Comissão Europeia. Estes entraves limitaram quase à nascença a ambição do projeto, o que se percebe no próprio nome. De Banco de Fomento passou a Instituição Financeira de Desenvolvimento (IFD), uma entidade que não se podia financiar nos mercados nem emitir dívida. Portanto, não era um banco.
Em declarações feitas em 2018, o então presidente do conselho de administração da instituição, com sede no Porto, Alberto Castro, admitiu que o projeto não tinha ido tão longe como se pretendia.
“Ficámos aquém do que queríamos. Queríamos certamente mais. Fomos demasiados ambiciosos”, afirmou no final do seu mandato, que se iniciou em 2014. E uma das dificuldades apontadas foi a necessidade de reporte a “múltiplas entidades”, desde o incontornável Banco de Portugal até ao Tribunal de Contas, cujas boas intenções têm implicações práticas difíceis de explicar ao mercado obrigando a tutela a diligências e esforços, com custos de oportunidade não negligenciáveis”.
Estas vicissitudes atrasaram a fusão das várias entidades — como a PME Investimentos e a Sociedade Portuguesa de Garantia Mútua (SPGM) – um processo que só agora vai avançar.
Muitas tutelas e resultados lentos
Com a chegada dos socialistas ao poder, em 2016, o projeto, que estava em fase de comissão instaladora há dois anos, prosseguiu o seu longo processo de arranque. Não existia, à data, qualquer instrumento colocado no terreno para apoiar as empresas. A instituição não estava autorizada a funcionar como grossista na distribuição de crédito, mas foram canalizados fundos do, então, novo quadro financeiro da União Europeia, no valor de 1.700 milhões de euros para a Instituição Financeira de Desenvolvimento. E foi logo identificada, outra vez, a necessidade de integrar instituições que prestavam garantias do Estado.
O desenvolvimento da IFD estava nas mãos de vários ministros. Desde logo pela Economia, liderada por Manuel Caldeira Cabral, passando por Pedro Marques – que tinha então a pasta do Planeamento e dos Fundos Europeus – para além das Finanças, que tutelava a empresa de garantias mútuas. Mais tarde viria a juntar-se Pedro Siza Vieira que tinha a seu cargo o programa Capitalizar, cujo objetivo era disponibilizar instrumentos para ajudas as empresas a reforçar o seu capital.
E quando há vários “responsáveis ” pelo mesmo projeto isso é meio caminho para ficar tudo parado, refere uma das fontes contactadas pelo Observador. A relação com o gestor que estava à frente da IFD também não ajudou. Em 2017, José Fernando Figueiredo, o antigo presidente da Sociedade Portuguesa de Garantia Mútua, que tinha sido nomeado ainda pelo Governo de Passos Coelho para dirigir a instituição, demite-se.
Outro obstáculo que demorou tempo a ser ultrapassado foi a impossibilidade de a instituição funcionar como home lending. Podia abrir linhas de crédito, mas não podia aceder a financiamento de longo prazo no mercado internacional. Essa autorização de Bruxelas só foi conseguida em 2018, permitindo à Instituição Financeira de Desenvolvimento tornar-se um canal de distribuição das linhas de crédito do BEI.
Para dar o passo seguinte e permitir que a entidade alavancasse mais financiamento e concedesse diretamente garantias de Estado era necessário um grande aumento de capital, da ordem dos 100 dos cem milhões de euros que acompanharia a fusão já há muito prevista. No entanto, a aproximação das eleições de 2019 parou este processo.
A desconfiança inicial da banca
O Banco do Fomento foi retomado por Siza Vieira, um número 2 de António Costa, que apesar de se manter na pasta da Economia, subiu a ministro do Estado. A ambição nacional para o Banco do Fomento volta a passar pelo crivo de Bruxelas, que terá de dar autorização para instituição funcionar como banco de retalho.
E outro dos sinais de desconfiança face ao projeto logo em 2012 veio precisamente da banca. Os principais banqueiros em funções defenderam que o projeto não fazia sentido, porque a banca não estava a cortar na concessão de crédito. O que faltava, argumentavam na altura, era bons projetos.
“Se quiserem fazer mais bancos, que façam mais bancos, mas vão perder tempo e vão queimar recursos” que poderiam ser direcionados para resolver os problemas da economia portuguesa, referiu o então presidente executivo do BPI, Fernando Ulrich.
O então presidente do BES, Ricardo Salgado, também manifestou dúvidas. “Não consigo pensar um Banco de Fomento que vá para o mercado captar recursos, recursos esses que têm, à partida, um nível muito elevado para fazer algo mais pela economia”. Faria de Oliveira, já na altura presidente da Associação Portuguesa de Bancos, manifestou dúvidas de que “um banco com as características de um Banco de Fomento fosse necessário”. Ricardo Salgado e Faria de Oliveira alinhavam contudo com um projeto que fosse financiado por fundos europeus e que dedicasse à gestão desses instrumentos para dar maior financiamento às empresas.
O Banco de Fomento mais ambicioso de Siza Vieira
O Governo garante agora que a missão “não é a de substituição dos mecanismos de mercado, os quais são a base da intervenção dos bancos comerciais, mas de suporte às empresas e projetos de forte conteúdo inovador e com vocação para os mercados globais, através de uma capacidade acrescida de garantir crédito, de conferir maturidade ao crédito bancário e de participar em operações sindicadas”.
O banco de Siza Vieira pretende ser muito mais do que o banco preconizado por Álvaro Santos Pereira, já que se propõe “apoiar operações de consolidação e crescimento empresarial, projetos mobilizadores de transformação estrutural da base produtiva, setores económicos e empresas fortemente expostos à concorrência internacional de conteúdo estratégico para o desenvolvimento económico nacional. É claro que agora também vão disponíveis muito mais recursos financeiros europeus para executar as missões previstas.
- Desenvolver competências na gestão de instrumentos de seguro de crédito, potenciando as políticas públicas de apoio à internacionalização em colaboração com as entidades, que operam já hoje no mercado português;
- • Ter a capacidade para desenvolver novos mecanismos de apoio e financiamento, em particular num contexto europeu em que se prepara o início da implementação do Programa InvestEU em que os bancos promocionais nacionais terão um papel fundamental na canalização dos recursos para a economia;
- • Dar cumprimento ao compromisso da criação de um banco verde, conferindo capacidade financeira e acelerando as várias fontes de financiamento existentes dedicadas a investir em projetos de neutralidade carbónica e de economia circular