Não se enganem: isto é um acontecimento, é quase como se um pai ou um tio ou um filho ou um sobrinho tivesse estado emigrado, quando ainda não havia telemóveis nem redes sociais e só soubéssemos dele muito de vez em quando, por carta – e agora aqui está ele de volta, tantos anos depois (seis anos depois), casado, com um filho e feliz: isto é um acontecimento, sim.
Seis anos, caramba, seis anos: há seis anos que o senhor Bill Callahan não se dignava a oferecer-nos um novo disco, desde Dream River, um álbum que juntamente com Apocalypse parece tê-lo colocado no lugar de mestre do cancioneiro americano, uma posição que há vinte anos parecia impossível.
“True love is not magic”, canta Callahan, sobre um dedilhado de guitarra acústica muito, muito bonito, antes de uma espécie de punchline: “it’s certainty”, atira ele, em “What comes after certainty”, a 11ª das 20 canções que compõem Shepherd in a Sheepskin Vest, o seu sexto disco a solo, após quinze anos a editar e atuar ao vivo enquanto Smog. Mais à frente ele canta:
“I never thought I’ld make it this far
Little old house
recent model car
and I got the woman of my dreams”
A canção parece uma brisa que por uns segundos eriça o pelo do cão no alpendre, arrasta ligeiramente umas folhas pelo chão, despenteia um par de formigas, que deixam cair as migalhas – um pequeno instante de agitação antes de tudo regressar à mais plena paz; um pequeno instante de agitação antes de tudo regressar à sua posição natural, antes de a mansidão voltar.
Todo o disco será assim: uma guitarra acústica e a voz, com acompanhamentos ocasionais – uma slide guitar, um contra-baixo, uma harmónica, bateria de escovas, por vezes coros, até mesmo uma flauta – e sempre a mesma temática: a aceitação da vida, seja a placidez da vida doméstica, a redenção que uma mulher e um filho podem trazer, a redenção que procuramos quando os que nos são queridos morrem.
Em “Circles”, uma canção em que descreve a morte recente da sua mãe, Callahan canta “Death is beautifull / we say goodbye to many friends”, naquele seu tom de barítono de quem alcançou, aos 53 anos, uma espécie de sabedoria, a paz possível, o seu lugar entre as coisas do mundo.
Se de alguma forma forem como eu, a ideia de um disco “sábio”, com “verdades” sobre a vida e a morte, assusta um pouco – que é como quem diz: aborrece-me e dá-me vontade de fugir. Mas quem chegou hoje à obra de Bill Callahan pode ficar descansado, que o homem tem humor (não raras vezes negro) de sobra: “The master of reiki said”, canta ele em “Ballad of the Hulk” e, quando estamos à espera de uma verdade profunda sobre a existência, completa: “I eat too much steak”.
Esse humor, que é uma forma de auto-consciência, de se impedir de cair na lamechice, perspassa o disco, cuja peça central é uma simples frase em “What comes after certainty”: “I never thought I’ld make it this far”; e é exatamente por isso que Shepherd in a Sheepskin Vest é um acontecimento – porque para nós que acompanhamos Callahan desde o início não era suposto isto ser assim: nos últimos seis anos aquele que outrora era o enfant terrible do indie-rock, que foi bastas vezes acusado de misantropia e misoginia, casou, teve um filho e assentou numa quinta em Austin.
A melhor forma de se entender o caminho que Bill Callahan percorreu até chegar aqui é reencaminhar-vos para a canção que me fez apaixonar por ele: “Your wedding”, de Julius Cesar, o segundo álbum enquanto Smog. A canção assenta unicamente numa frase de violoncelo eternamente repetida enquanto ao seu redor deambulam duas guitarras acústicas desafinadas, uma delas num solo de três notas; a tensão acumula-se até que se atinge um refrão sujo, que veio a definir o chamado lo-fi: “I’m gonna be drunk / so drunk / at your wedding”, berra Callahan.
Eu tinha 18 anos e com isto acabava de fazer um amigo. Porque nesta simples canção Callahan conseguia, de uma penada, representar a dor de um rapaz novo que acabava de perder um amor e conseguia-o com um tremendo humor ácido – porque ameaçar estar bêbedo no casamento de um ex-amor é uma atitude socialmente reprovável, mas ao mesmo tempo é uma patética admissão de desespero: quem ficaria mal numa situação como a descrita seria sempre ele.
A obra de Callahan, o mais novo de quatro irmãos, três delas mulheres, nunca deixou de ser esta constante desconstrução da ideia clássica de homem, esta demonstração da toxicidade e impotência da masculinidade. Mesmo quando parecia que ele estava do lado errado ele estava do certo.
Os discos iniciais dos Smog (Sewn to the Sky, de 1990, Forgotten Foundation, de 1992, Julius Caesar, de 1993, Burning Kingdom, de 1994) eram manifestos lo-fi, em que munido praticamente só de uma guitarra, muito ruído e uma tremenda capacidade lírica Callahan criava canções que eram pequenas peças de teatro que percorriam o espectro emocional de um rapaz novo e zangado.
A zanga não era gratuita, note-se – tal como David Berman (dos Silver Jews, que para o mês que vem regressa de dez anos de ausência a bordo de uma nova banda, os Purple Mountains), Callahan faz parte de uma geração em que a disfunção emocional era a convenção: pais impositivos, emocionalmente autistas e bullies – mas abastados, o que permitiu que os filhos lessem.
Ler é poderosíssimo, pelo menos para quem foi ensinado que irá sempre fazer pior que os pais, que será sempre menos homem que o pai. Ler ensina-nos a entrever as nuances da humanidade e quando isso se une ao talento de escrita e à curiosidade natural pela música do passado e à capacidade de manter uma melodia mais ao menos no tom – então aí reside um criador.
Um criador que, quando chega a Wild Love (1995) já está no topo do jogo: em “Bathysphere”, a canção que abre o disco, uma tuba e um riff de guitarra criam um cenário angustiante em que um rapaz recorda quando tinha sete anos e pediu à mãe para o colocar num batíscafo no fundo do mar e o deixar lá, longe dos humanos, a observar os peixes. “And if the water should cut my line”, canta Callahan:
“Set me free
I don’t mind
my home is the sea”
A canção terminava com:
“When I was seven
my father said to me
‘But you can’t swim’
And I never dreamed of the sea again”
Os pais, nas canções de Callahan, eram isto: quem trazia o real para dentro do sonho, destruindo o sonho. Quatro anos depois, em “Cold blooded old times”, do majestoso Knock Knock, Callahan relatava uma família a desfazer-se, uma mãe que avisa os filhos para dizerem que não viram nada, um pai que sai à pressa e quase dá cabo do portão: “And how can I stand / and laugh with the man / who redefined your body”, cantava o narrador-criança, referindo-se à mãe adúltera. O génio da canção residia na sobreposição da história com um riff infeccioso à Velvet Underground, dobrado por um piano malandro, e as palmas a acentuar o ritmo da batida – um génio.
De 1995, com Wild Love, a 2000, com Dongs of Sevotion, Callahan esteve imparável na sua demanda de reescrever o indie-rock criando canções que eram uma pequena peça de teatro moral. Esta foi a fase em que Callahan foi acusado de misantropia e misoginia, mormente porque na música há esta ideia de que narrador da canção e autor da canção são uma e a mesma coisa; na pop o que o cantor canta tem de ser verdade – e isto não podia ser mais falso que com Callahan nesta fase, em que ele parecia ter todo o prazer em mostrar o lado negro da humanidade.
Duas canções são demonstrativas da demanda moral das canções de Callahan – que no fundo é uma procura de sentido. “Ex-con”, uma canção de Red Apple Falls (de 1997), serve-se de bateria, guitarra e trompete para criar um ritmo razoavelmente alegre; porém, Callahan canta:
“Whenever I get dressed up
I feel like an ex-con
Trying to make good
Jean jacket and tie
Feel like such a lie”
Qualquer pessoa já deu por si a pensar o mesmo, pelo menos numa segunda-feira de manhã.
A temática do prisioneiro regressa em “River guard”, de Knock Knock. Desta feita a instrumentação reduz-se a guitarra acústica e voz; Callahan, encarnando o guarda prisional que se compraz a ver os prisioneiros nadar, canta “We are constantly on trial / it’s a way to be free”. Os prisioneiros da canção somos nós; o julgamento mencionado tanto pode ser o que cada um de nós faz sobre si próprio como o que os outros fazem sobre nós. Estaremos sempre a ser julgados. Mas talvez aceitar isso seja uma forma de liberdade. Isto não é habitual no rock‘n roll.
Na viragem do século, Callahan já havia feito tudo o que um músico podia sonhar. Começara como experimentador de lo-fi, um rapaz branco demasiado lido e zangado e dava por si como autor de uma obra sobre a dificuldade de nos situarmos no mundo: a família, o amor, o pecado, a violência, a liberdade, tudo isto fazia parte de canções que já não eram imitações dos Velvet Underground. Em “No dancing”, de Knock Knock, havia cordas profusas e um coro de crianças – para onde ir?
Eventualmente o caminho foi o do ascetismo e da abertura ao universo do amor feminino. Em 2005 chegou A River Ain’t Too Much To Love, o seu melhor disco enquanto Smog: uma guitarra (e ocasional bateria de escovas ou piano) numa constante reinvenção da folk americana. Peço-vos que tirem cinco minutos e 45 segundos do vosso dia para se comoverem com “Rock bottom riser”, a delicadíssima canção de amor dedicada a Joanna Newsom, então namorada.
A River Ain’t Too Much To Love soava tanto a escritor de canções que atingira o pico do seu talento que Callahan acabou com o nome Smog e passou editar sob o seu próprio nome – como se tudo até então fosse uma forma de ganhar tempo até se sentir bem na sua pele. O primeiro disco a solo era tão variado e tão vasto que até havia uma espécie de disco-sound, “Diamond dancer”, também sobre Joanna Newsom.
Acho que foi por esta altura que surgiu o novo Callahan, capaz de falar de amor, fosse filial, fosse por uma mulher. Em “Rock bottom riser” ele cantava:
“I love my mother
I love my father
I love my sisters, too.
I bought this guitar
To pledge my love”
Era a primeira vez que Callahan falava de amor de uma forma que não fosse trágica ou subversiva. Era a primeira vez que Callahan se deixava ser terno.
Essa ternura está presente em “Sycamore”, de Woke on a Whaleheart (o tal primeiro a solo, de 2007), uma canção tremendamente. O narrador dirige-se a um amigo e diz:
“Christian, if you see your poppa
Tell him I love him
He taught me to love in the wild and
Fight in the gym (…) Keep your hands up
And stand tall
Like sycamores”
“Sycamore” significa plátano e daqui para a frente, em discos cada vez mais livres e orgânicos, a natureza entrou pelas canções de Callahan adentro: ventos, marés, cavalos – até camelos. Shepherd in a Sheepskin Vest acaba por ser o aprofundar ao limite dessa linguagem, acústica e repleta de elementos, um Astral Weeks da vida doméstica, o tipo de disco que se compõe no alpendre enquanto a criança e o cão dormem e, entre cervejas, se olha em redor e se pensa que valeu tudo a pena.
Mesmo no fim Callahan faz uma versão de “Lonesome Valley”, tradicional americano que foi gravado por Woody Guthrie e pela Carter Family. É uma daquelas canções cantadas por pessoas vividas – uma daquelas canções sobre cada um de nós ter de encontrar o seu caminho:
“Mamma and daddy loves you dearly,
Sister does and brother, too,
They may beg you to go with them,
But they cannot go for you”
A ironia é que Callahan gravou-a como um dueto – e a voz feminina que se ouve a dada altura é a de Hanly Banks, sua esposa e mãe do seu filho (de quatro anos).
“Lonesome Valley” cai bem ali – mais ainda em dueto. Porque resume a ideia do disco: viver pode ser duro e no fim morremos todos; temos pouco tempo de modo que vamos lá tentar cuidar e amar.
Durante muito tempo lutamos desenfreadamente pela nossa identidade, queremos que nos levem a sério, queremos ser respeitados; e um dia percebemos que vamos morrer e queremos apenas ser parte da comunidade, seja um homem e uma mulher, um grupo de amigos, um pai e um filho. Entendemos que não sobrevivemos sozinhos; que houve quem nos amparasse, nos desse teto e cama e sopa, seja no sentido literal ou emocional da imagem. E começamos a pensar em dar de volta.
Bill Callahan começou agora a dar de volta.