O Avançado-Centro Morreu ao Amanhecer, primeira pedra do que viria a tornar-se a Companhia de Teatro de Almada, texto do argentino Agustin Cuzzani, estreou-se no Campolide Atlético Clube há 50 anos. A encenação foi de um feroz crítico de teatro do Diário de Lisboa, convocado por um grupo de jovens que queriam experimentar o que era isso do teatro. E a coisa foi ganhando relevo, ao ponto de o segundo espectáculo, Vida do grande D. Quixote de La Mancha e do gordo Sancho Pança — de António José da Silva, o “Judeu” — ter recebido, pela Casa da Imprensa, o prémio de Melhor Espectáculo Amador de 1972. O barco foi ganhando peso e gente para remar e em 1977 era um navio profissional, nobremente instalado no Teatro da Trindade, onde esgotava sessões atrás de sessões. Entretanto, talvez se tenha cansado de uma certa mordomia, de um lugar de estrelato que parecia não bater certo. Em 1978, o Grupo de Campolide muda-se para Almada, instalando-se na Academia Almadense, que viria a habitar até 1987, quando foi inaugurado o Teatro Municipal de Almada — hoje Teatro-Estúdio António Assunção. Pelo caminho, tornar-se-ia a Companhia de Teatro de Almada e mais tarde, em 2006, nasceu o Teatro Municipal Joaquim Benite, que ainda hoje habita.
Joaquim Benite foi o homem-do-leme. Em 1984, como atividade de verão em Almada Velha, criou o Festival de Almada, hoje o maior festival de teatro do país e um dos mais relevantes da Europa. Rodrigo Francisco tinha 7 anos, quando viu, da sua janela, um espectáculo-arruada, um percurso feito pelas ruas do centro história da sua cidade. Memória que ficou guardada até que muitos anos depois, em 1997, vai ajudar a montar o festival, um trabalho de verão como outro qualquer. Tudo havia de mudar. Tornou-se assistente de Joaquim Benite e assumiu o lugar do timoneiro, após a sua morte, em 2012. Mas o propósito do seu criador, de um teatro ligado com a comunidade, mantém-se. A Companhia de Teatro de Almada é, inegavelmente, um dos maiores casos de sucesso do país no que à proximidade com o público diz respeito. Esta é uma conversa entre dois almadenses, que não seriam os mesmos se a história fosse outra.
O Grupo de Campolide estreou o seu primeiro espectáculo a 24 de Abril de 1971, portanto há 50 anos, no Campolide Atlético Clube, com um texto do argentino Agustin Cuzzani, O Avançado-Centro Morreu ao Amanhecer. A encenação foi do Joaquim Benite, que já andava há uns tempos a tentar encená-lo. O que é que tinha este texto?
Campolide Atlético Clube era o nome da associação, do sítio. O grupo de teatro era o Grupo de Campolide e o Campolide Atlético Clube ainda existe, fui lá a última vez acho que em 2011, com o Joaquim e com algumas pessoas que faziam parte do grupo na altura. Há um detalhe que é quase mágico neste primeiro espectáculo que eles estrearam, porque o espectáculo estreia-se no dia 24 de abril de 1971 e no cartaz do espectáculo há um calendário em que está o ano de 1974.
Por lapso?
Não sei. Estava lá o ano de 1974 e o Joaquim não sabe explicar, ele também não tinha reparado.
Quase que podia ter sido a primeira pedra antes do “Grândola Vila Morena”.
Foi uma coisa quase mágica que não se explica, enfim. O Joaquim andava a ensaiar este texto, sobre os negócios ligados ao futebol, é a história de um homem que era dono de um jogador de futebol, de uma bailarina, era um texto que não tinha nada de naturalista e que permitia falar mais ou menos veladamente de algumas coisas. Estamos a falar de um grupo amador, portanto as coisas iam-se ensaiando, o objetivo não era propriamente chegar a um espectáculo, era a pesquisa. E no Campolide já havia um grupo de pessoas, muitas delas ligadas ao Liceu Francês, que faziam algumas leituras e assim, e resolveram convidar o Joaquim Benite que na altura era crítico de teatro no Diário de Lisboa. E ele já que tinha este trabalho avançado, passe a expressão, com O Avançado-Centro Morreu ao Amanhecer, acabou por montá-lo. Este teve algum impacto, mas o segundo espectáculo, esse sim, teve um grande impacto, já venceu o prémio de melhor espectáculo amador desse ano, dado pelo Carlos Porto.
De que espectáculo falamos?
Vida do grande D. Quixote de La Mancha e do gordo Sancho Pança. Que teve um impacto total no próprio grupo, de tal maneira que o Dom Quixote é, até hoje, o símbolo da Companhia de Teatro de Almada. Agora, para nós é muito difícil imaginar esta época, era um espectáculo amador que percorreu o país inteiro, teve quase 30 mil espectadores.
Impensável aos dias que correm.
É, hoje em dia é impensável. Isto acontecia porque existia um grande espírito de mobilização por parte destes jovens, que estavam ligados direta ou indiretamente à oposição e havia este empenhamento político em fazer teatro e levar espectáculos a sítios onde nunca tinha havido teatro, eles falam disso nos depoimentos. Durante o Festival de Almada 2021 vamos fazer um ciclo nos Encontros da Cerca sobre a história dos 50 anos da companhia em que vamos ter pessoas de fora que vêm moderar encontros, com pessoas que participaram na companhia em determinadas épocas e pessoas de Almada que estiveram ligadas à implantação da companhia na cidade. Tenho estado a ler algumas coisas, e estes jovens, que agora já não são jovens, falam disso, do impacto que era chegar uma companhia de teatro a uma terra onde nunca tinha acontecido um espectáculo de teatro.
Quem é que estava com o Joaquim nesse momento fundador?
Era o José Martins, que encenou o terceiro espectáculo da companhia, A Farsa do Mestre Pathelin, alguns deles continuaram no teatro, outros nem por isso. A Isabel Bahia deixou o teatro, ainda vem para Almada, mas depois passou a ser locutora de continuidade na RTP. A Teresa Gafeira entra para o grupo no segundo espectáculo e até hoje mantém-se na companhia, é a única. O Manuel Coelho foi diretor da Malaposta e do Teatro Noroeste, de Viana do Castelo, e atualmente é ator residente do Teatro Nacional D. Maria II. A Teresa Dias Coelho é artista plástica.
Há uma série de pessoas que acabaram por fazer o seu caminho.
Sim, porque havia ali duas fações. Uma era de pessoas mais ligadas à oposição, o Carlos Gonçalves, que atualmente é membro do Comité Central do PCP, e depois havia o grupo de estudantes do Liceu Francês, que eram jovens de uma pequena burguesia…
… não tão embrenhados na luta antifascista…
Quer dizer, na altura estariam todos, mas na altura havia ali aquele clube e que serviu de núcleo para eles experimentarem teatro. Em relação às pessoas que estavam com o Joaquim, há coisas notáveis. Por exemplo, o Carlos Paredes fez a música para o primeiro espectáculo do Grupo de Campolide. Como é que um grupo amador consegue atrair um génio? O Vergílio Martinho a partir do segundo espectáculo passa a ser dramaturgo residente do grupo, havia um senhor que era crítico de teatro, Manuel Pedro do Rio-Carvalho, que também passou a colaborar com os aspetos plásticos. Ou seja, era um grupo amador, mas que se rodeou de mestres que permitiram a evolução, isso é patente nos textos que escreviam na altura, a aprendizagem enquanto grupo amador da prática teatral.
O Joaquim Benite, disse à revista Vértice, em 1971: “O teatro amador pode substituir o teatro profissional. Este, salvo raras exceções, é mau e tem o seu público próprio, que não é o povo.” Isto liga-se com a tal inscrição de um teatro popular que o Joaquim sempre falou ao início.
Sim, o Joaquim procurava fazer um teatro que tivesse sempre os espectadores em conta. Não é por acaso que o primeiro texto que ele escreve para o programa do O Avançado-Centro Morreu ao Amanhecer começa por “caro espectador”. Essa era uma das marcas do seu teatro e do Grupo de Campolide. Os colóquios que se organizavam, até depois na vinda para Almada, os ciclos de cinema sobre história, música, teatro, que se faziam em torno dos espectáculo que se criavam, o Joaquim tem essa frase porque era um temível crítico no Diário de Lisboa e atacava explicitamente muitos espectáculos, que eram espectáculos de cariz comercial, que tinham uma lógica completamente diferente, de uma estética já brechtiana, antes de se poder fazer Brecht em Portugal.
No fundo, as bases do teatro independente em Portugal.
É, esta aí a raiz, nesse conjunto de grupos. O Grupo de Campolide, a Cornucópia, a Barraca, a Comuna, o Aberto, está aí a semente do teatro independente. Agora, ele dizia isso contra o teatro profissional institucionalizado, numa forma de representar declamada que já estava ultrapassada, como o regime, que estava também já ultrapassado. Acaba por ser uma crítica às formas de produção cultural oficial do regime.
É interessante pensarmos nessa dimensão do teatro popular pensado pelo Joaquim. Achas que esse objetivo foi alcançado, ou seja, olhando hoje para o público fiel da CTA, falamos do povo? Se calhar não tanto…
O povo de hoje em dia é diferente do povo de há 50 anos. Quando a companhia vem para Almada tem um ato quixotesco, o Grupo de Campolide tinha-se profissionalizado em 1977, estava instalado no Teatro da Trindade onde esgotava sessões, nós nesses catálogos temos mapas em que tens 600 e tal espectadores por dia, o Joaquim contava que quando o Teatro da Trindade não estava esgotado era só porque o Benfica jogava. É uma coisa que, para um grupo amador, estar instalado num dos principais teatros da cidade, na zona nobre da cidade, vir para Almada onde se vai instalar no palco de uma pequena sociedade filarmónica [Academia Almadense], tendo saído de uma realidade amadora, profissionalizar-se e vir para Almada… é um ato quixotesco.
E essa é uma Almada diferente da Almada de hoje. O tempo político é muito diferente.
Claro, com certeza. A companhia vem para cá porque havia aqui os estaleiros da Lisnave, era uma cidade operária de gente que não ia ao teatro. Ao mesmo tempo, e o Joaquim disse-o várias vezes, era um público que, não estando habituado ao teatro, também não tinha os vícios daquele público institucionalizado que ia ver os espectáculos comerciais ou em formatos já fora do tempo. Então estaria mais disponível para um teatro de pesquisa, que era aquilo que ele queria fazer. O tecido social alterou-se completamente. Tenho ainda algumas recordações no final dos anos 80 do que foi depois a grande crise destas empresas, quando houve os despedimentos, quando esta população começa a ter grandes dificuldades, e mesmo em algumas entrevistas dados por pessoas da companhia nessa altura falava-se disso, a grande crise que veio nos 80, na sequência da entrada do FMI no país e o que hoje em dia o povo, o que é a população almadense? Alterou-se completamente. Vejamos o meu caso, os meus pais não eram operários, mas o meu pai era um pequeno artesão. Eu faço parte dessas pessoas que nascem depois da revolução e que podem ir pela primeira vez para a universidade, não quer dizer que isto tenha acontecido com toda a gente, há amigos de infância que são ilustres mecânicos de automóveis, que têm uma vida muito melhor do que a minha, em todos os aspetos, mas bastantes pessoas puderam prosseguir os seus estudos, nos anos 70 isso não era assim.
Esse é um movimento que é decisivo na história da companhia e história do concelho. Todo o interesse em torno da companhia, o trabalho feito pela companhia através de formações para jovens estudantes e para docentes… Apesar de todas as mudanças, a CTA é, obviamente, um dos maiores casos de sucesso a nível de proximidade com o público.
Sim, essa fase da implantação foi uma fase muito dura, de loucura. A companhia na altura tinha 20 e tal pessoas, eram profissionais, tinham-se de pagar ordenados, eles chegavam a fazer 3 e 4 espectáculos por dia em digressão. E há uma coisa que hoje em dia nos causa alguma perplexidade: uma digressão podia passar pela SFUAP [Sociedade Filarmónica União Artística Piedense] ou pelo Centro Cultural do Miratejo, ou qualquer lado aqui em Almada. Hoje em dia isso está revertido, porque existe este teatro e são os grupos dessas pessoas que vêm aqui, na altura era a companhia que tinha estes espectáculos infantis e que ia fazer às juntas de freguesia e a outros concelhos, sobretudo os circundantes. Foi uma atividade infernal. Nos anos 80 há esse trabalho de sedimentação e de construção de uma relação com o público de que aliás o Festival de Almada é o fruto mais visível.
Cuja primeira edição foi em 1984.
E como é que começa o festival? Os membros da companhia animavam grupos de teatro nas escolas, nas associações, associações de moradores, que é uma coisa impensável muito típica do pós-revolução.
Uma peça no espaço do condomínio.
Por exemplo, isso hoje em dia dava uma tragédia.
Seguramente.
Mas a companhia animava estes grupos e o Joaquim lembra-se, em 1984, de fazer uma mostra deste trabalho, uma mostra dos espectáculos que os membros da companhia desenvolviam nestas várias associações.
Que era no Beco dos Tanoeiros. Portanto, a diferença de dimensão quando comparada com a de hoje…
É, nos primeiros anos do festival isso é muito notório. Começa no Beco dos Tanoeiros, na segunda edição já vai para o Largo Prior do Crato, depois na Casa da Cerca, ou seja, o festival começa com uma animação cultural de verão no centro histórico da cidade. Depois, com a vinda aqui para o Palco Grande na Escola D. António da Costa e também com a construção deste teatro e com a expansão do festival para Lisboa, essa parte do festival enquanto animação do centro histórico vai-se diluindo, mas começou assim, ou seja, o festival é fruto dessa procura pela proximidade com a população almadense.
Dessa diluição, até por ser hoje um evento mais profissionalizado, resultou um maior afastamento das pessoas?
Procuramos que isso não aconteça. O ano passado não foi possível e este também não será fazer este pequeno palco da escola, com a esplanada ao ar-livre, onde há concertos gratuitos, isso é uma forma de chamar as pessoas…
…mais comes e bebes…
Exatamente. Esse aspeto da chafarica é uma forma que procuramos manter. Utilizar os espaços das sociedades filarmónicas — o ano passado conseguimos voltar ao teatro da Academia Almadense, o Salão Nobre da Incrível Almadense, o Teatro-Estúdio António Assunção — é também uma das formas de manter as raízes do festival. É verdade que no final dos anos 80 quando se começa a co-apresentar espectáculos com as principais salas de Lisboa o que acontece é que essas salas participam economicamente no financiamento do festival, o que permite trazer as grandes companhias internacionais e o festival cresce. Agora, apesar desse crescimento, procurámos sempre manter a pequena escala e essa é a chafarica da Escola D. António da Costa, é o espaço de ar-livre, o Palco Grande, que representa para nós um custo enorme. A partir do momento em que existe o Teatro Municipal Joaquim Benite começa-se a pensar se continuaria a fazer sentido manter o Palco Grande, e de facto faz porque é uma das marcas identitárias do festival.
Claro, é um palco diferente.
Não existe nada assim no país, um palco ao ar-livre onde podemos ter 600 pessoas a assistir a um espectáculo em condições técnicas e acústicas ótimas. O festival cresceu, mas procurámos manter estas âncoras, para que não deixasse de estar inserido na cidade. E quando as pessoas entram numa sala como o Salão de Festas da Incrível Almadense, têm uma viagem ao passado, porque está otimamente conservado, com muito carinho, uma vez que são os sócios que fazem a manutenção daquela sala.
Mas o crescimento do festival traz a possibilidade de vermos, por exemplo, a Isabelle Huppert e isso provocar um afastamento dessa dimensão iniciática do festival e da população de Almada Velha, se ainda for essa, coisa da qual eu não tenho a certeza…
Eu também não tenho nada a certeza. Já não vivo em Almada, mas tenho assistido a um movimento da nossa geração que vem de Lisboa empurrada pelo elevado preço das rendas, a cidade está a mudar bastante. Essa nova população relaciona-se connosco de uma forma diferente, no festival tenho encontrado aqueles reformados italianos, alemães, belgas, que estão a morar em Lisboa e que de repente descobrem que há um festival onde podem ver a Isabelle Huppert e ficam banzados, não esperavam que isso existisse. O público tem-se alterado, com certeza. Mas o nosso trabalho, não só durante o festival, mas em todo o ano, é no sentido de aproximar as pessoas, e acho que isso é muito importante, para que não aconteça uma coisa que acontece, por exemplo, no Festival d’Avignon, que é o facto de muitas pessoas locais olharem para o Festival IN como uma elite imperialista que vem de Paris. Eles vão é ao OFF. Às vezes perguntas a uma pessoa se vai ver o espectáculo e eles dizem “não, não, eu não vou ao IN, só vou ao OFF”. Temos essa preocupação. E se olharmos para o preço de uma assinatura para ver os espectáculos todos, é simbólico. E às vezes o que acontece é o contrário, porque muitas pessoas de Lisboa protestam porque quando vêm comprar assinaturas já as pessoas de Almada abarbataram tudo. Isso não nos chateia nada, porque o festival é, de facto, para os almadenses.
Quer o festival, quer a companhia, já tiveram mais financiamento público, certo?
Sim, em 2010 havia um contrato de 630 mil euros anuais com o Ministério da Cultura. Atualmente são 390 mil euros, menos de metade.
E isso faz diferença. Olha-se para programas de edições passadas e não só na quantidade de espectáculos estrangeiros, mas também o prestígio dos mesmos, não há comparação.
Claro que faz. Patrice Chéreau, Berliner Ensemble que vinha muitas vezes, Volksbühne, Schaubühne… Claro que é impossível manter o nível de um festival quando há um redução de investimento dessa natureza por parte do Ministério. Procurámos sempre adaptar-nos tendo em conta a realidade que o país vivia, mas o que esperamos, e agora é a época em que vai passar a algum investimento na cultura nesse âmbito, é que haja uma correspondência em relação aos montantes que se atribuem à criação cultural. Houve uma mudança de paradigma, que foi iniciada pelo Governo PSD/CDS, mas que foi mantida pelo governo PS que se lhe seguiu. Tivemos um corte com cada um desses governos.
Mas estes constrangimentos, e a pandemia, também fazem com que exista maior abertura para estruturas portuguesas mais pequenas estarem presentes num festival com a dimensão do Festival de Almada.
Aconteceu isso. Tivemos de nos restringir àquilo que era possível fazer, dissemo-lo na altura, procurámos, apesar de tudo, manter alguns espectáculos de fora. No início desta pandemia, predominou muito o discurso nacionalista a roçar o chauvinismo, “eles tão a roubar-nos os ventiladores”, então, apesar de tudo, tentámos ter pequenas companhias que viessem de fora e não perder completamente esse cariz internacional do festival. Agora é verdade que houve a possibilidade de mais estruturas portuguesas poderem participar, mas quando estamos a fazer a programação queremos é que os espectadores tenham acesso a espectáculos que não pudessem ter visto, mesmo as companhias portuguesas, ou seja espectáculos que tenham estreado, ou de fora de Lisboa, porque para um espectador de Almada, ter um festival que esteve três meses antes em Lisboa…
Deduzo que ainda não seja tempo para divulgarem nada da programação do festival para este ano.
Anunciamos em Junho. Mas este ano, devido ao que estamos a viver, anunciar algo antecipadamente seria imprudente.
Enquanto criador, qual é o próximo objeto a sair da gaveta?
No festival vamos estrear um texto meu, um texto sobre a Guerra Colonial. Nem reparei que era os 60 anos da Guerra Colonial, mas reparei que este era um tema que estava a ser trazido ao de cima pela sociedade, como também havia muitos espectáculos de teatro documental sobre este tema e eu não estava nada satisfeito com a forma como os ex-combatentes eram retratados nesses espectáculos de teatro documental, achava que não havia ali a dignidade que estas pessoas merecem. Então resolvi escrever uma ficção a partir de uma série de entrevistas que fiz a ex-combatentes. Este clique deu-se quando estava a ensaiar o Nathan, O Sábio [estreou em 2018], estávamos a discutir o texto e tal, e eu entrei numa discussão com a Maria Rueff porque fiz ali uma analogia entre os ex-combatentes e este jovem combatente templário, em que tinha uma posição muito próxima das posições que agora procuro… não diria combater, mas colocar em causa. Que era: ah, mas este tipo foi para a Guerra Colonial porque quis, podia ter fugido. E quando comecei a falar com pessoas que estiveram lá percebi que não era bem assim, ou seja, não tinha em conta o contexto histórico em que as coisas aconteceram e acho isso muito perigoso. Então escrevi este texto, vamos ver o que vai acontecer.
Estreia-se no festival e depois fará uma carreira no final do ano?
Faz carreira em outubro e no Algarve em novembro, é uma co-produção com a Companhia de Teatro do Algarve, do Luís Vicente.
A primeira memória que o Rodrigo tem do festival é de 1988, certo?
Sim, tinha 7 anos. Estamos nos anos em que o festival está nessa fase do centro histórico da cidade e havia um espectáculo de rua, um passa calles, como os espanhóis lhe chamam. Era um tipo espanhol, vestido de toureiro, que ia pelas ruas, com uma carroça e lembro-me de estar em casa, ouvir um estardalhaço, ir à janela e ficar muito espantado. E a minha mãe dizer “é o teatro”. E aquela coisa de “mas o que é isto?”. Nunca tinha visto nada assim. Mas depois passou, nunca mais ouvi falar de festival e só volto ao festival como adolescente quando procuro um trabalho de verão e vou parar à equipa técnica, que era uma coisa muito diferente do que possamos imaginar. Olhando para aqueles anos heroicos, já existia o Palco Grande, mas não tinha nada que ver com o equipamento que existe hoje em dia, as varas dos projetores nem sequer desciam, ou seja, cada projetor tinha de ser levado às costas, por uma escada… Eram montagens épicas que às vezes só acabavam ao meio-dia do dia seguinte.
Estávamos algures em 1997/98. Como é que depois se passa à fase do fascínio por esta arte?
Em 1998, a companhia estreou O Carteiro de Neruda ainda no teatro antigo, no Teatro-Estúdio António Assunção, e eu participei nessa montagem. O cenário era do José Manuel Castanheira, era uma praia, uma cabana numa praia, e havia areia verdadeira, lembro-me de carregar baldes de areia, mas trabalhava naquilo como se fosse nas obras. Em Setembro a companhia repôs o espectáculo, eu andava na Escola Secundária Emídio Navarro e uma professora perguntou à turma se queríamos ver um espectáculo, vamos ali ao teatro, e eu que nem sequer tinha ido nunca ao teatro, pensei “ah, mas eu participei no espectáculo”. Entrei na sala, estava tudo escuro e quando as luzes se acendem tive um grande choque. No que é que aquilo se tinha transformado. Para mim aquilo era um canteiro de obras, tábuas velhas.
Não havia a consciencialização que esse trabalho ia servir uma equipa artística.
E o espaço não estava habitado pelos atores, pelo som, pela luz. De repente vi como tudo se tinha transformado e foi assim o primeiro impacto que tive com o teatro.
Depois de alguma forma houve uma sedução face a Joaquim Benite, não?
Foi mútuo, ele reparou em mim a dada altura, eu fui-me mantendo na companhia para ajudar nas montagens, fazia figuração em alguns espectáculos. Durante os ensaios há muitas fases em que não se faz nada e eu estava sempre a ler e ele topou-me. Depois, eu estava a fazer contra-regra num espectáculo inesquecível com a Fernanda Alves e a Fernanda Borsatti, O Cerco de Leninegrado, e passava o segundo ato todo na teia porque no final tinha de mandar um pacote de farinha para cima delas. A Fernanda Alves dizia “vamos, puxa a carroça, vai começar a nevar”, que é uma citação da Mãe Coragem [e Os Seus Filhos, peça de Bertolt Brecht], depois havia uma bandeira vermelha que começava a esvoaçar e eu atirava a farinha. E no dia a seguir à estreia, o Joaquim vem ter comigo a correr e diz “Ó Ricardo” — porque o gajo nunca se lembrava do meu nome — “vamos mudar uma coisa”. Perguntei-lhe se não tinha atirado bem a farinha, mas ele disse que não era isso, “agora vamos mudar, a Fernanda Alves fala, tu atiras a farinha e a seguir à derrocada a bandeira vermelha começa a tremer”. E aquilo fez-me uma grande confusão. E o teatro é assim, é uma arte de tal forma conjunta que estamos todos dependentes uns dos outros, se o técnico não der a deixa o actor fica agarrado.
Depois a coisa foi crescendo.
Sim, continuei a estudar, fui fazer letras para a faculdade, comecei a fazer coisas relacionada com as edições da companhia, a fazer a comunicação e até que depois com a vinda para este teatro o Joaquim convidou-me pela primeira vez para fazer uma assistência de encenação em 2006 e a partir daí passei a fazer as assistências. Depois ele via que eu escrevia e publicava umas coisas e dizia “tens é de escrever uma peça”. Eu escrevi, ele fê-la e pronto.
Que espectáculos são para si memoráveis na história da companhia?
O Carteiro de Neruda marcou-me profundamente, O Cerco de Leninegrado também. E depois há um espectáculo com o Morais e Castro, que o fazia de uma forma inesquecível, O Fazedor de Teatro, que é um texto maravilhoso do Thomas Bernhard também no início dos anos 2000.
Como é que estará a companhia daqui a 50 anos?
Daqui a 50 anos, se tudo correr bem, estarei morto.
Em princípio.
Em princípio sim, tenho 40.
Mas mesmo morto dá para imaginar.
Há uma frase do Shakespeare, acho que é da Tempestade, o próspero diz a alguém: “Aquilo que nós estamos aqui a dizer ainda há de ser repetido em línguas que não existem e em países que estão por inventar”, mais ou menos assim. Não sabemos. Se há 50 anos tivessem perguntado aos miúdos do Grupo de Campolide o que é que seria o Grupo de Campolide, eles não poderiam nunca imaginar isto e isso é uma certa vantagem do teatro. Fazemos um espectáculo e ele acaba. Depois pensamos noutro e ele acaba. O teatro tem a vantagem de não estarmos a lutar com a eternidade. Volta sempre a nascer. E depois a pressão do próximo espectáculo, aquele em que vamos melhorar e resolver tudo, para depois percebemos que ainda não. O próximo é que vai ser. É a condição humana.