Virtuoso no bilhar às três tabelas (um geómetra de salão, portanto) e radioamador à séria, com um emissor em casa e correspondência com pares estrangeiros (algo que a primeira guerra lhe terá espicaçado?), António de Alcântara Bernardo de Carvalho e Vasconcelos da Costa Cabral (1901-74), IV conde de Tomar, foi também um fotógrafo e cineasta das “horas vagas” que, por discrição — houve quem lhe chamasse modéstia — se manteve ou foi mantido fora da mais evidente história da fotografia portuguesa.
Resultado duma primeira abordagem do seu espólio de 1400 documentos fotográficos (c. 9000 deles são negativos de 35 mm em tira) doado à cidade de Lisboa em fevereiro de 2018, a presente exposição no Arquivo Fotográfico Municipal, à Rua da Palma, resgata e ilumina um tanto a originalidade da obra daquele que também merece ser lembrado como pai do arquiteto Bartolomeu da Costa Cabral (1929-2024), autor, entre muitos, do Bloco das Águas Livres, em Lisboa, e de Manuel Costa Cabral (1941-), co-fundador em 1973 da escola de artes Ar.Co e diretor do Serviço de Belas Artes da Fundação Calouste Gulbenkian de 1994 a 2011.
Um livro-catálogo a publicar ainda este ano pela Documenta complementará o que por ora nos é dado ver e perceber, e claramente vem colocar António da Costa Cabral, que se assinava com o anagrama Romat (por vezes, mudado para Marto), entre fotógrafos não profissionais com obra que não deve ser obliterada, quer como representação do seu meio social e familiar — que em 1925 juntou pelo matrimónio os Costa Cabral, do convento de Cristo em Tomar (onde ele viveu na infância e juventude), aos Albuquerque, do Solar de Mateus, em Vila Real de Trás-os-Montes (a mãe de Maria Teresa era a condessa de Mangualde, autora de importantes Memórias, que Vasco Pulido Valente prefaciou) —, quer como membro do conhecido mas pouco estudado Foto Clube 6×6 (fundado em 1949, ou 1951, ou 1952, pois as fontes divergem, e deu lugar na década de 1970 à Associação Portuguesa de Arte Fotográfica, que hoje persiste, ativa).
Ligou-se moderadamente, por essa via, a um salonismo fotográfico que fez época e escola, interessando desde um muito mal afamado inspetor de polícia política até ao reputado médico cirurgião dos Hospitais Civis Jorge Nunes da Silva Araújo (1906-95), que em 1959 recebeu atenção da revista Leica Fotografie, publicando-lhe depoimento e imagens, e, claro está, à surpreendente Helena Corrêa de Barros (1910-2000), que o AFM deu a conhecer em 2018-19, com a exposição Fotografia, a minha viagem preferida — e, já mais tarde, ao então fotojornalista do República Pedro Foyos (1945-2024).
No pós-guerra, a expansão comercial das máquinas fotográficas seduziu muita gente, que passou a trazer uma Leica a tiracolo ou uma Rolleiflex pendurada no pescoço, tanto quanto um chapéu na cabeça. Difícil de imaginar? Como nessa altura escreveu Silva Araújo, “com a Leica há sempre um pretexto para uma caminhada ao ar livre, e, portanto, cumpre um duplo objetivo!”.
Não admira, por isso, que os motivos se sobreponham de um fotógrafo flâneur a outro: Nazaré tornara-se, quase pode dizer-se, um inescapável safari fotográfico em campo aberto, e como Costa Cabral, também, por exemplo, Carlos Afonso Dias (1930-2010) se interessou por cais, navios e beira-mar, Vítor Palla (1922-2006) fotografou amiúde as suas filhas e Sena da Silva (1926-2001) ambientes de trabalho ou lazer em família ou entre amigos. Manoel de Oliveira, como aqui já vimos, também não se afastou disso na galeria de fotografias que nos deixou, tão tardiamente descobertas porém. Também ele, como Costa Cabral, se deixou prender por um reflexo espelhado na roda dum automóvel. Eram sinais do tempo, cuja consciência só o estudo comparado dos arquivos pessoais permitirá um dia avaliar cabalmente.
Como Van Zeller Palha para as páginas da revista Vida Ribatejana, também o conde de Tomar — no meio de muitos, como demonstram os flashes profissionais na boa fotografia exposta — reportou a sumptuosa exibição de campinos na lezíria preparada em homenagem à rainha britânica Isabel II, em visita a Portugal em maio de 1957, e como Artur Pastor (1929-99), autor do álbum então concebido e criado para especial oferta à inesquecível e então muito jovem monarca da Inglaterra, também ele — quem não?! — fotografou os pescadores da Nazaré.
A prole bastante numerosa pode ter justificado o seu peculiar interesse pelo jardim zoológico de Lisboa, da enciclopédia animal à patinagem (a qual também seduziu Gérard em Nova Iorque, 1998…), como espaço de lazer a explorar pela fotografia, outro tópico compartilhado por outros “bate-chapas” de fim de semana. Mas também encontramos registos de momentos de passeios em estrada com família e amigos ou de garden parties ou celebrações familiares onde não quis perder a oportunidade de fotografar outros fotógrafos.
O retrato da escultora e nora Graça Costa Cabral bebendo um copo no terraço com vista sobre o Tejo do prédio da Rua das Trinas onde viveu (ou será da Travessa do Jardim à Estrela, 27?), a par de dois outros, do filho Pedro, deitado num sofá ou montado na sua pequena bicicleta num jardim residencial, são das mais belas imagens desta exposição. Há uma extensíssima, louvável tradição fotográfica de registos em que o privado ganha grandeza e intensidade — e João Cutileiro fotógrafo (1937-2021) pode ser recordado neste contexto —, mas sem acesso aberto e absoluto ao arquivo de António da Costa Cabral torna-se impossível dizer até onde ele foi, conscientemente ou não.
O Conde de Tomar tinha câmara escura própria, atributo que António Sena diz ser então muito raro entre salonistas, que em geral delegavam nos impressores fotográficos da Filmarte. Cinquenta anos após a morte, a 20 de novembro de 1974, cumpre-se finalmente a justa aproximação à sua obra fotográfica, enquanto avança o extenso e exigente tratamento arquivístico de conservação e divulgação do seu espólio, tornado património municipal.
Com curadoria de Paula Figueiredo e Sofia Castro, Ramot beneficia do recente arranjo arquitetónico do salão térreo do Arquivo Fotográfico Municipal, que muito amplia a área expositiva disponível. Dispondo de máquina fotográfica desde cedo, António da Costa Cabral, que esteve uma longa temporada na Alemanha depois de ter concluído o liceu em 1918, foi certamente influenciado pelo impactante Bauhaus, como comprova a pequena série experimental de imagens de objetos de uso pessoal, à vista logo após os primeiros passos dados na exposição, mas o seu talento artístico fica muito mais nítido no belo conjunto de quatro imagens da intimidade duma mulher (podemos supor tratar-se de Teresa Albuquerque?) que lê, reza e cose, ou já no perfeito controlo de luz e sombra no estendal de roupa ao sol em estreita rua de bairro popular lisboeta.
O arquivo de António da Costa Cabral não é uma enormidade. Por exemplo, Carlos Calvet (1928-2014), arquiteto e pintor, fotógrafo pouco considerado, usando uma Leica II C, deixou c. 4000 fotografias entre 1956 e 1975 — mais do dobro das dele, em quase idêntico período. Outros casos poderiam ser evocados. Todavia, só a recuperação de outros espólios fotográficos, e o seu tratamento ao mais alto nível, técnico e histórico, e a contextualização crítica que daí possa resultar, permitirá um dia fazer emergir estas figuras discretas porém qualificadas, que deram testemunho do meio e da época em que lhes foi dado viver.
Para o conseguir plenamente, cumprindo a sua função primordial, o Arquivo Fotográfico Municipal de Lisboa precisará, seguramente, de meios reforçados, meios que o lento mas contínuo abandono tutelar das últimas décadas foi desboroando, contraditoriamente. Enquanto isso, a surpresa desta exposição exemplifica o papel que a instituição camarária pode e deve cumprir… se lhe derem condições para isso, claro está.
Exposição no Arquivo Fotográfico Municipal (Rua da Palma, 246, Lisboa), até 15 de março de 2025, de segunda-feira a sábado, das 10 às 18h. A entrada é livre.