Não há cadeiras, alcatifas ou veludos na Sala Garrett do Teatro Nacional D. Maria II, em Lisboa. Pelo contrário. Há poeira no ar, entulho, cabos soltos e salas transformadas em estaleiros de obras. Até ao último trimestre de 2024, é este o cenário dominante no monumento nacional, fundado em 1846 e que, desde 2023, está a ser alvo de uma intervenção, que envolve requalificação, restauro e renovação de várias áreas do edifício. Com um investimento de 9,8 milhões de euros, orçamentados no âmbito do Plano de Recuperação e Resiliência, as obras estão previstas terminar em outubro deste ano, sendo que o teatro irá reabrir no primeiro trimestre de 2025.
Os avanços da intervenção, apresentada pela primeira vez de forma pública em 2021, foram apresentados por Rui Catarino, presidente do Conselho de Administração do teatro, e pelo arquiteto Francisco Pólvora, responsável pelo projeto, durante uma visita à imprensa. As intervenções, explicam, têm em conta a parte estrutural e sísmica do edifício, ainda que muitas das alterações não sejam, à primeira vista, percetíveis a quem ali entrar novamente a partir do próximo ano. “Parte desta obra é feita em zonas que não estão acessíveis ao público e, mesmo nas que estão, as alterações são praticamente invisíveis, o que é bom, porque estamos a mexer num monumento nacional. Os espectadores ainda vão perguntar porque é que o teatro esteve tanto tempo fechado”, salientou Rui Catarino.
Em muitas das zonas intervencionadas, as mudanças incidem na climatização do edifício, na limpeza e restauro, bem como na iluminação. Por outro lado, em tornar o edifício mais funcional para quem lá trabalha. Trata-se de um projeto agregador, explica o arquiteto Francisco Pólvora ao Observador, que vai tornar o edifício “mais funcional para os seus trabalhadores, ao mesmo tempo que será estruturante para o resto do teatro e alterar a sua vivência para quem o visita”.
Maior acessibilidade
Num dos principais aspetos que envolve a atual intervenção está precisamente a limpeza e o restauro das fachadas do teatro e a preocupação em torná-lo num espaço de maior acessibilidade. A sala de cenografia (mesmo por cima da sala Garrett), por exemplo vai passar a ter acesso via escadas – algo que não existia – e será destinada aos departamentos com mais responsabilidade na gestão. Mas lá iremos. A obra, cujos prazos foram anunciados em 2021, sofreu atrasos e tanto o lançamento do concurso público como o visto do Tribunal de Contas obrigaram à recalendarizção da mesma, realçou Rui Catarino. “O prazo de final de 2023 foi dado numa fase ainda muito prévia e com o desenvolvimento do projeto percebeu-se que os 12 meses previstos não seriam suficientes para o executar.”
Já com 16 meses previstos de trabalho e não 12, a obra mantém no entanto o seu financiamento original, diz Rui Catarino. Reconstruído entre 1973 e 1978, depois do incêndio em 1964 (que levou ao seu encerramento) e após algumas intervenções, nomeadamente na década de 1990 pelo arquiteto Gonçalo Byrne, esta é a primeira grande requalificação do teatro desde então, sublinha Francisco Pólvora. “O programa de trabalho estava bastante definido e havia esta preocupação de fundo de melhorar as condições de trabalho, mas a abordagem que fizemos foi multidisciplinar e teve em conta vários aspetos decisivos do edifício.”
Começam pelo átrio, onde deixa de existir bilheteira. “O que o público vai perceber é que as fachadas vão estar limpas e restauradas e que a iluminação será diferente”, começa por explicar o arquiteto. Em paralelo, na sala ao lado onde funcionava a livraria (e que ali se manterá), vai também passar a estar a bilheteira. “Muitos dos nosso bilhetes já são vendidos via digital e fazia sentido mantermos a livraria que é única no país pelo seu carácter específico de ser dedicada quase exclusivamente ao teatro”, sintetiza Rui Catarino. Foi também a forma encontrada para devolver ao átrio de entrada de público a sua plenitude espacial e uma maior harmonia com o Café Garrett, que já existia e que vai ter uma nova concessão.
Passamos para as áreas na vertical. No Salão Nobre, por exemplo, não há intervenções de fundo, mas tal como noutras áreas vai existir um novo sistema de climatização, permitindo melhorar a eficiência energética do edifício. Entre muitas outras salas, a grande maioria pouco acessíveis ao público, vão abrir-se janelas que já existiam, mas que na intervenção de 1973 foram tapadas por opção do arquiteto Rebelo de Andrade. Desta forma, o edifício torna-se, de acordo com o Francisco Pólvora, mais acessível. “Sempre que possível, tentamos abrir vãos que se encontravam encerrados. Era um edifício muito compactado e quisemos abri-lo ao exterior, embora não seja uma intervenção global, mas em termos funcionais parece-nos que vai resultar de forma mais articulada”, sintetiza ao Observador.
O 5.º piso, onde antes estava a Sala de Cenografia, pejada de adereços e vestuário, irá transformar-se agora em zona de escritórios. Uma mezzanine que vai servir aos principais departamentos, um jardim de inverno, um projeto do paisagista João Junqueira, e ainda uma zona aberta (uma espécie de pátio), virada para o Largo do Regedor. Já as oficinas que ali funcionavam, explica Rui Catarino, passa a estar numa zona do subpalco, criada para o efeito, melhorando a sua funcionalidade e originando novas zonas para arrecadação de equipamentos (luz, som e maquinaria) e permitindo uma reorganização dos espaços de oficina. Em complemento, no penúltimo piso, junto à Sala Estúdio vai existir um novo espaço para ensaios e dedicado à criação de novos projetos.
Teatro aberto à cidade e ao país
Já no esplendor dos seus 444 lugares, a Sala Garrett terá nas paredes uma tonalidade ligeiramente mais escura e nova iluminação, o que irá permitir dar maior destaque aos seus relevos e pormenores decorativos, na grande maioria dourados. A alcatifa e outros têxteis serão substituídos e houve igualmente preocupações com o sistema de ventilação, com vista à melhoria da experiência do espectador, sublinha o arquiteto. A quem visitar o D. Maria (nomeadamente em visitas guiadas) vai ser possível descobrir salas com vitrines expositivas onde antes existiam escritórios compartimentados, realça-se também.
Para o futuro, o atual plano de drenagem em desenvolvimento na cidade e a instalação de novos equipamentos de segurança contra incêndios, vão ajudar a tornar o Teatro Nacional D. Maria II mais seguro e capaz de resistir aos desafios climáticos, asseguram os responsáveis. Será também mais facilmente reconhecível, acredita Rui Catarino, com uma nova identificação no exterior, através da aplicação de letras metálicas em cobre, num design à responsabilidade do Pedro Falcão. “Entre a luz natural e a possibilidade de visitar alguns dos espaços que antes não estavam acessíveis, o público vai compreender melhor a relação deste teatro com a cidade, que lugar ocupa”, diz Rui Catarino. Da mesma forma, o arquiteto Francisco Pólvora sustenta que a ligação entre áreas traz “qualidade e passa a ser mais convidativo e mais aberto à cidade”.
Para já, o Teatro Nacional D. Maria II vai andar pelo país, com o programa Odisseia Nacional, que se tornou parte da missão, mesmo quando reabrir em Lisboa, explica Rui Catarino. Por outro lado, e mesmo de portas fechadas, o teatro “não vai deixar de refletir os 50 anos do 25 de Abril”, enquanto prepara caminho para a reabertura. “Toda esta experiência fez-nos olhar para a coesão territorial e fez-nos conhecer melhor o tecido cultural espalhado pelo país, onde há assimetrias e falhas, mas onde há também uma realidade extremamente diversa e rica”, conclui. Quando reabrir as suas portas, o teatro será certamente também casa para todo esse país.