Segunda-feira, 14h20. Ainda faltam quarenta minutos para a abertura, mas o espírito da Komum já se sente no sobe e desce da escadaria da Calçada Nova de São Francisco, no coração da baixa lisboeta, dentro das caixas de papelão que, à primeira vista, ninguém estimaria em algumas centenas de euros. Entre as 11 e as 14h30, as manhãs do primeiro dia da semana, são sempre assim. Criada para dar um espaço físico aos pares de ténis icónicos que começaram a tomar de assalto a compra e venda nas redes sociais, a loja que abriu há duas semanas e pretende afirmar-se no panorama da cultura urbana, dedica toda a manhã à compra de novos pares.
João Barbosa — o Branko dos Buraka Som Sistema, que está por detrás do projeto com a companheira, Cinda Nunes — explica que é “uma forma de alimentar um ecossistema rotativo” em Portugal. “A ideia não é fazer o que já está feito no digital, é ocupar um espaço que não estava ocupado e dar um expositor físico a uma cultura.”
Da última edição dos Air Jordan 2 Retro assinada por Virgil Abloh, antes da morte prematura em novembro, ao par 24 da coleção de 50 Dunks, lançada um ano antes pelo designer que foi o primeiro afro-americano a assumir a direção criativa da Louis Vuitton, passando, claro, pelos futurista Yeezy da Adidas e Kanye West, pelos chamados Forum Low – Back to School assinados pelo ícone do trap latino Bad Bunny ou pelos cobiçados Air Jordan 6 British Khaki do rei dos sneakers Travis Scott, há de tudo para aguçar a curiosidade dos colecionadores no expositor que ainda acomoda a coleção made in Europa da Nike em colaboração com os holandeses da Pata ou a reedição comemorativa dos Air Max Bacon, inspirados precisamente numa fatia de toucinho fumado.
Mais do que “ver com as mãos, modelos que só encontramos na Internet”, explica-nos Cinda Nunes, “o objetivo também é abrir um espaço de conversa, porque há histórias incríveis” por detrás de cada par de sneakers. “A nossa ideia é criar uma comunidade que se identifique com a cultura. Juntar aqui um grupo de pessoas que conhecem e se não conhecem que querem conhecer e se querem juntar. E temos aqui um espaço de convívio, um espaço “Komum” de pessoas que se querem juntar e estar aqui connosco, dai o nome. Nós queremos muito essa partilha. Não é específico para um determinado tipo de pessoas, é específico para todos os que gostam e se identificam com aquilo que representamos aqui na nossa loja”, resume o conceito da mais recente meca da cultura urbana.
“O espaço Komum é mesmo criado para isto: começar conversas. Não foi criado apenas para vender coisas, queremos que seja o início de muitas conversas e de uma série de projetos que se calhar não aconteceram porque não havia um espaço que fizesse essa ligação”, continua o DJ e produtor que além dos sneakers exclusivos, ainda foi buscar a mais recente coleção do amigo Dino D’Santiago, as t-shirts e sweats estampadas com os dizeres populares da Jar Project, a t-shirt da sua autoria e os discos vinil da Enchufada, para afirmar a qualidade da produção nacional na streetwear.
Valor acrescentado
Colecionadores e também eles proprietários oficiais de pares de ténis icónicos, tanto Cinda como João provam durante a entrevista ao Observador que, de facto, é possível passar horas a conversar sobre as cores, o design, a escolha dos materiais e sobre o preço dos pares que têm em loja. “Também temos, mas nem todos os pares têm de ser inflacionados para 700 ou 800 euros. A conversa vai muito além disso. Há pares a 1000 euros e até mais, mas aqui na Komum o nosso interesse é conseguir calçar a cidade com histórias mais bonitas e não necessariamente com as mais caras” assume Branko, depois acomodar devidamente os Air Jordan 2 Retro de Virgil Abloh, à venda por 590 euros.
Em jeito de enciclopédia urbana, o DJ exibe a tal reedição dos Air Max 90 Bacon para provar a teoria. “Este par, por exemplo, está a 200 euros e é capaz de condensar a história de Nova Iorque e o início desta cultura dos sneakers”, vai rodando o pé direito do modelo que a Nike lançou em parcerias com a loja Dave Quality Meat’s, pela primeira vez em 2010. “Inspiraram-se numa fatia de bacon, porque a loja deles era um antigo talho. Tiraram a carne para pôr sneakers e deram esta identidade a um dos modelos mais icónicos da Nike. Então, tê-los aqui é valor acrescentado e rompe com a ideia que os modelos mais especiais são os mais caros.”
Espécie de montra viva, a mais recente loja das escadinhas da Calçada Nova de São Francisco está aberta até a quem não compra. “Há muita gente que só vem ver. Tem curiosidade. Não são necessariamente pessoas que vêm para comprar mas têm a necessidade de ver. E nós também acabamos por nos sentir realizados porque a ideia é essa: não precisam de vir necessariamente para comprar nada, venham e conheçam”, incentiva Cinda. “Muitos destes pares só se encontram nas redes sociais, através de um ecrã, não conseguimos chegar, nem ver exatamente como é a cor. Um modelo na mão é sempre mais real e então esse também é o nosso objetivo. Fazer as pessoas sentir os pares.”
Coincidências, zero
Da localização, especificamente na Baixa Pombalina, à escolha da equipa nada na Komum é ao acaso. Uns degraus acima da cervejaria belga Delirium, a loja está a poucos metros de outras marcas internacionais de streetwear como a Breed, a Latte, na Rua Nova do Almada, e a Carharrt, na Rua Áurea. Local de convergência de todos os subúrbios da capital, atravessou o rio Tejo para trazer para trás do balcão outro especialista na arte de conversar horas a fio sobre os bastidores, origens e desenvolvimentos do mundo urbano.
O mais novo da “comunidade” chama-se Miguel Rufino, vem do Barreiro, e “consegue juntar os interesses todos”, explica-nos o casal que decidiu transformar um hobbie pessoal em negócio. “É uma pessoa que está dentro de tudo e acaba por ser um porta voz da cultura que queremos transmitir. Sneakers, música, marcas da lusofonia… tem mesmo um conhecimento muito abrangente e era impossível termos aqui uma pessoa só para fazer vendas.”
Com os olhos postos no amanhã, a Komum vai lançar uma coleção de t-shirts com estampas fotográficas com etiqueta própria, até ao fim desde ano. No futuro, quer ser palco para o lançamento de discos e marcas emergentes que se enquadrem no conceito que é independente e, essencialmente, livre da pressão dos fornecedores e de tudo o que quer afastar a cultura urbana das raízes da rua.