Um homem e uma mulher conhecem-se, apaixonam-se, casam-se, a mulher tem um tumor no cérebro, é benigno, seguem com a sua vida. Um homem e uma mulher conhecem-se, apaixonam-se, casam-se, a mulher tem um tumor no cérebro, é maligno, resta-lhes apenas três meses que querem aproveitar ao máximo. Ou então ela decide morrer antes que a doença a consuma; separam-se depois de uma traição; aliás, conhecem-se mas não se apaixonam. Tantas possibilidades que mudam tudo. “Constelações” estreia-se na sexta-feira, 8, no Teatro Aberto, encenada por João Lourenço e protagonizada por Joana Brandão e Pedro Laginha. Um texto de jovem dramaturgo britânico Nick Payne, estreado no londrino Royal Court, em 2012, que venceu o prémio para Melhor Peça nos Evening Standard Theatre Awards, tendo seguido para a Broadway, onde, protagonizada por Jake Gyllenhaal e Ruth Wilson, foi nomeada para os Tony e para os Drama League Awards.
Uma estreia que acontece um mês depois de o Teatro Aberto ter assinalado os seus 40 anos numa sessão na qual Marcelo Rebelou de Sousa o agraciou com o grau de Membro Honorário da Ordem da Instrução Pública e Fernando Medina salientou a sua importância na cidade. E que João Lourenço espera que marque a viragem para um novo ciclo: na sequência dos cortes feitos pelo anterior governo, a companhia viu os apoios reduzidos em 73% e quase fechou as portas em 2013. Continuaram no osso e graças à equipa, que teimou em continuar a trabalhar.
“Constelações” põe em cena um apicultor e uma cosmóloga, colocando-os, e à sua possível história de amor, em vários universos, tocando temas como a eternidade, a morte, a eutanásia. O que o agarrou na peça?
As repetições. São a base do teatro, a base vida. Não temos consciência disso mas estamos sempre a fazer repetições: é o levantar, o tomar banho, lavar os dentes, tomar o pequeno-almoço, o almoço, jantar, deitar, ir à casa de banho… Há uma repetição constante na nossa vida. E depois há aquilo com que sempre nos confrontamos: vou ter com ela ou não, digo ou não digo… Vivemos constantemente nisso e essas decisões têm influência na nossa vida. Como reagimos quando deixamos alguém? Como reagimos quando a voltamos a encontrar? É tão difícil viver. E depois há a questão de ser eterno, o que o homem deseja desde sempre. A ideia base com que o autor articula o espetáculo é formidável. Trabalhou com um físico e ia-lhe dizendo: se isto existisse mesmo… E o físico dizia-lhe: mas pode existir. O multiverso existe. Não há o universo. Há o multiverso. Agora, não sabemos se estamos lá. Aí já é a procura da eternidade. Não nos faz sentido nascer para morrer. Não vi este espetáculo quando li o texto. Fiquei aflito: como é que isto se faz? Mas só me desafia o espetáculo que não sei fazer.
Não é um texto fácil, com as suas repetições e nuances.
É muito difícil para os atores. É uma loucura decorar isto. É a mesma cena com ligeiras diferenças. É a prova da arte de representar. Exige que sejam os mesmos, em diferentes ocasiões, sendo outros também. É sempre o apicultor e a cientista. Mas o tipo às vezes é violento, às vezes não é, às vezes não quer estar com ela doente, às vezes é sedutor… Isto é o ‘boy meets girl’. E o que vem a seguir.
Quando viu a peça?
Já estávamos a trabalhar nela quando vi o espetáculo em Berlim. E era péssimo. E no Deutsches Theater, com bons atores. Falavam muito rápido e tinham um músico a fazer música ao vivo, com uma data de instrumentos. Ficávamos na música. Mas soube que na Alemanha houve um espetáculo com muito êxito, em Tóquio também, em Nova Iorque era o mesmo encenador de Londres, ganharam vários prémios, foram nomeados para os Tonys. Eu estava lá nessa altura e não me apeteceu ir ver. Ainda não sabia nada da peça, o nome Nick Payne não me dizia nada… mas gostava de ter visto.
Como escolheu o elenco?
Com a Joana Brandão é a primeira vez que trabalho. Veio cá numa audição para “As Raposas”. Escolhi outra atriz mas fiquei a pensar nela para este papel. O Laginha há muitos anos que trabalha connosco, gosto dele. Queria pessoas muito normais e sem muita televisão em cima mas que fossem bons atores, que pudessem ser camaleões deles próprios. Isto é uma masterclass, o conservatório devia vir ver isto. Deu muito trabalho. Mas também deu muito prazer.
Reúnem-se aqui dois temas muito em voga: o multiverso e as abelhas. E tudo se mistura.
São dois universos muito engraçados. Ele é uma pessoa muito mais terrena mas também pode voar. Há uns anos fui levar o carro ao meu mecânico e, quando o fui buscar, ele pediu-me para esperar uma hora. Disse-me que tinha que tomar banho e depois perguntou-me se eu queria ver o que ele ia fazer. Disse que sim. Levou-me ao telhado. Era um columbófilo. Estava à espera dos pombos que vinham de Barcelona. Num minuto estava todo sujo de preto debaixo de um carro, no outro estava lavado, a beijar pombos. Aquele homem ensinou-me imenso. Aquele homem sonhava. As profissões não nos definem. A pessoa pode sempre voar. Ele vive com as colmeias. Ela é uma física quântica.
Celebraram a 25 de maio 40 anos. E para assinalar a data receberam uma visita do Presidente da República. Mas quase fecharam portas há três anos…
Marcelo é espetador aqui da casa, foi convidado para a sessão, mas eu não esperava aquilo. Se calhar foi à vinda para cá que se lembrou. Foi simpático. Tal como o discurso do Presidente da Câmara. Mas continuamos como estávamos. Aflitos. Ainda somos a 39.ª companhia. Felizmente tivemos alguns êxitos, o público tem vindo. Vamos ver no final do ano. Só queremos ser iguais aos outros, ter o mesmo que a Cornucópia ou o Bando. O que tínhamos.
Há uns anos que todo o teatro está em crise.
Desde o Passos Coelho.
Os cortes nos apoios foram muito pesados.
Cortaram a toda a gente 50%. E a nós cortaram-nos 73% e não dizem porquê.
E assim continua, vários anos depois.
Sim. E assim continua.
Como se mantém aberto um teatro desta dimensão com um corte tão grande?
Estamos a dever. Coisa que nunca tínhamos estado. Os fornecedores acreditam em nós, que vamos pagar. E nós vamos pagar. Nunca nos tinha acontecido. E estamos no mínimo, de pessoal, técnicos… Mas ajudamo-nos todos.
E o público?
O público tem vindo mais. Acho que nos está a ajudar. Com este espetáculo tenho receio das pessoas ficarem aflitas. É aquela história do Pessoa: primeiro estranha-se, depois entranha-se. Será que vão entranhar? Nós propomos um jogo. Se a pessoa não entra no jogo, não gosta. Mas os espetáculos não têm que ser unânimes. Basta-me que a maioria goste. Isto é uma proposta que se faz.
Ao contrário de muitas outras salas, cujas peças estão em cena apenas três semanas, aqui ficam vários meses.
Se tivermos público. Mas nunca fazemos um espetáculo para menos de três meses. Este agora para no princípio de agosto mas depois volta em setembro e outubro.
Precisam do passa-palavra…
Precisamos. Para mim não faz sentido fazer teatro para dez espetáculos. Estar dois meses e meio a trabalhar para cinco ou dez espetáculos parece ser trabalhar para os amigos. Não me faz muito sentido. Apenas em casos muitos especiais. Então estamos mais tempo a trabalhar que a apresentar? O bailado é que era assim antigamente. Em Londres, mesmo no National ou no Royal Court, têm uma peça durante uma semana mas depois volta quatro dias e daí a um mês outros quatro e chegando ao fim do ano vemos que a peça foi apresentada 60 vezes. Em Berlim e em Madrid também. As peças estão em cena, não são apresentadas apenas 4 ou 5 vezes. Mas porque é que cá começou a ser assim?
Há público para essas apresentações todas? Aumenta após as três semanas, com o passa-palavra?
Sim, sim. E aí nota-se se um espetáculo está com êxito ou não. Os contratos dos atores também já preveem os dois meses e depois mais dois ou mais um.
Começou o Grupo 4 com Rui Mendes, Irene Cruz e Morais e Castro, que acabou por dar origem ao Novo Grupo Teatro Aberto. Qual tem sido o seu projeto artístico?
O projeto primeiro era com eles. Depois de “O Círculo de Giz Caucasiano” saí e voltei passados quatro anos com esta companhia. Este é um projeto de teatro moderno, sempre com a preocupação de fazermos coisas que tenham a ver com o que está à nossa volta no momento. O autor que mais aqui tem sido feito é o Brecht. Desde a segunda ou terceira peça que fiz dele que digo: agora acabou, não faço mais Brecht. Mas de repente, encontro-o numa esquina, uma peça que tem a ver com o que se está a passar. O Puntilla, a última que fiz dele [“O Senhor Puntilla e o seu Criado Matti”, em 2010, com Miguel Guilherme] tinha a ver com o desemprego. Havia pessoas, no Campo Grande, encostadas a automóveis à espera que os fossem buscar, um mercado quase de escravos. Depois há peças que amigos nos mandam, que descobrimos em festivais… No fundo queremos comunicar as nossas preocupações. Isso não mudou. Mas mudou a maneira de comunicar. Não dirijo espetáculos como dirigia há dez ou quinze anos. É sempre desafiante fazer coisas novas que eu não saiba fazer. Se o texto for bom, aqueles espetáculos que a gente não sabe como vai fazer apaixonam-me sempre.
Tem dado a conhecer em palco atores como Ana Guiomar, Paulo Pires… Como os descobre?
Nem vejo muitas novelas, vejo às vezes para ver os atores. Houve um período em que fomos muito criticados por pôr em palco pessoas de novelas. A minha “Mãe Coragem” [Eunice Muñoz em 1986] fez muita novela, fez “A Banqueira do Povo”, fez muita coisas.
Falo dos novos.
Faço aqui umas audições muito complicadas e muito difíceis. E eles vêm. Faço uma ou duas por ano, com música, improviso, textos… Esta rapariga, a Joana Brandão, veio a uma audição. Há anos [em 1999] estreei a Catarina Furtado a fazer o “Quase”. Ela veio, como outras vieram, a audições. Percebi que tinha condições. O Paulo Pires foi o Fernando Heitor que sugeriu. Disse-me que era da moda mas que tinha feito o filme do Fonseca e Costa. Veio cá, fez uma audição… E pronto. Ele é bom ator, fez aqui comigo várias coisas, entre elas o Copenhaga.
Espera que as coisas melhorem com a mudança de Governo?
Acho que as coisas vão melhorar um bocadinho. Mas nós só queremos ter o mesmo que os outros. Não há razão para não termos. Foi uma razão política? Porque não há outra. Metemos [a DGArtes] em tribunal, ainda está, irá para a frente. Porque é que uns tiveram nota máxima e nós não em coisas em que somos iguais? É verdade que fazemos menos itinerância que os outros, somos criticados por ter as peças muito tempo em cena. Mas fazemos o mesmo, temos três ou quatro peças por ano. Houve má vontade. Estar num teatro em Lisboa e andar por aí é que é bom? Somos um teatro de Lisboa. Temos culpa de estar aqui? Construímos este teatro para estar aqui. Podemos ir ao Porto, a Coimbra mas, com os cenários e os espetáculos que fazemos, são precisos camiões para os levar. Se eu usasse uns paninhos e umas coisinhas, punha tudo no carro e ia a todo o lado. Mas esse teatro eu não quero, nunca quis. Não sei o que lhes deu. Quiseram acabar com uma companhia, das grandes, e escolheram esta. Mas não conseguiram.
Há outras companhias também a atravessar grandes dificuldades.
Lá está: foi um corte de 50% a toda a gente. Para nós foi mais. Esteve nesse júri um ator que trabalhou cá muito e eu deixei de falar com ele, o João Reis. Era nosso amigo e esteve no júri. Bem, pelos vistos não era. Numa coisa destas eu demitia-me. O júri era quase todo composto por pessoas do Norte. Há uma companhia do Porto, constituída por marido e mulher, que teve mais que este teatro aqui. O júri foi tendencioso. E o João também porque aceitou ser júri. Esperamos que agora no fim do ano tenhamos pelo menos o mesmo que os outros. Que acho que pode ser um bocadinho mais porque aquele corte de 50% foi brutal. A Canavilhas já nos tinha cortado 15% e depois em cima desse corte veio o de 50% pelo Francisco José Viegas, cuja política o Barreto Xavier continuou. Espero que todos tenhamos um bocadinho mais. Tudo tem subsídios, a agricultura, o exército… a cultura é um problema.
Não é possível fazer-se teatro sem subsídios?
Para já não é subsídio, é apoio ao bilhete. Não há nenhum teatro, em nenhum lugar do mundo, que não tenha apoios – a não ser os musicais. Em Londres, além dos apoios da Câmara, e da lotaria, há os particulares que dão dinheiro para os teatros. Se eu tivesse o público que tenho e bilhetes a 45 euros, como lá fora, não precisávamos. Mas tenho bilhetes a 15 euros. Os subsídios são apoios ao bilhete.
Têm, em conjunto com a SPA, o concurso Grande Prémio de Teatro Português que, anualmente, distingue uma dramaturgia inédita de um autor português, editando-a e levando-a à cena. Corre bem, o público adere às peças?
É o único concurso em Portugal, já tem 20 edições. Corre muito bem. Temos apresentado aqui muito bons autores. É muito importante: a peça é editada, ganha um prémio monetário, é representada e muitas vezes depois é montada lá fora também.
Recebem muitos originais a concurso?
50, 60, 70. Varia.
E consegue escolher três ou quatro peças destes 40 anos?
Difícil… “O Círculo de Giz Caucasiano” porque inaugurou o teatro, o “Oiçam Como Eu Respiro” porque inaugurou a companhia. Mas porque há de ser o “Galileu” melhor que o “Puntilla”? Agora a melhor é esta peça. E depois a que vier a seguir vai ser melhor que todas as outras.
Constelações está no Teatro Aberto, em Lisboa, até 31 de julho. Quarta a sábado das 14h às 22h; domingo das 14h às 19h; bilhetes a 15 euros.