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JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

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Jorge Palma disco a disco: as muitas vidas de um romântico desalinhado, contadas na primeira pessoa

Do exílio aos casamentos, do piano à guitarra no metro de Paris. As histórias dos discos de Jorge Palma confundem-se com a sua vida. Ele conta-as e conta-se, nestes relatos na primeira pessoa.

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Pois é, pois é: o homem que se recusou a viver escondido a vida inteira, para quem domingo nunca soube de cor o que vai dizer segunda-feira, comemora 50 anos de canções.

Desde que em 1972 editou o seu primeiro single em nome próprio, The Nine Billion Names of God, Jorge Palma dedicou a vida a cantar-se e, por arrasto, a cantar-nos: as nossas paixões e as nossas solidões, os prazeres e as ressacas, as curvas errantes da vida, as imprevisibilidades, os dias em que nos sentimos in e as noites em que, frágeis, ficamos out.

Palma, o autodidata da guitarra que a transportou às costas de metro em metro, de cidade em cidade e de país em país, o estudante de piano clássico que nos deslumbrou só por existir e duvidar, chegou a descrever-se em tempos como “individualista romântico”. Como não o queremos copiar, chamemos-lhe antes romântico desalinhado.

Qual discípulo de Marx, Groucho, não Karl, traçou um caminho sem escolas ou clubes. Logo no segundo disco, ‘Té Já, em 1977, avisava: “Estão a perder tempo se pensam que um dia me hão-de amarrar” (“Podem Falar”). E cumpriu, gozando bem a sua rota, discos e canções estrada fora, vivendo no limite, crente de que (regressemos a “Podem Falar”) “a distância que existe entre o não ser e o ser é uma questão de não se ter medo de ir longe demais”, certo de que “para quem ama a liberdade o importante é nunca parar”.

Jorge Palma: “Tenho desafiado a morte de uma forma completamente louca”

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Enquanto houver estrada para andar, ele continua e até está aí para as curvas: diz estar já a gravar o seu próximo disco, há muito adiado (o último foi lançado há 11 anos) e mais um de um músico que não receou nunca expor-se nas suas canções, alguém que, mais do que doutrinar, moralizar ou consciencializar os outros, procurou sempre mais conversar sem armaduras (“epá, deixa-me abrir contigo / desabafar contigo”), quase sempre evidenciando um talento raro para a escrita de canções em português.

De cigarro aceso ora na boca, ora entre o indicador e o dedo médio da mão direita (“devia ser patrocinado pela Camel”, brinca), sentado num estúdio em São João da Talha, arredores de Lisboa, Jorge Palma acedeu a revisitar as suas muitas vidas numa longa conversa com o Observador.

O intuito era recordar as muitas histórias que envolvem os seus discos, que vão ser lembrados num ciclo de seis concertos (nomeado “Antologia”) que começa já este domingo, com uma interpretação de (1991) nos Jardins do Palácio Baldaya, em Benfica, Lisboa. O ciclo prossegue depois com concertos “temáticos”, cada um deles agrupando discos específicos, a 7 e 26 de outubro e a 1 e 8 de novembro, terminando a 19 desse mês com uma revisitação de Palma’s Gang — Ao Vivo no Johnny Guitar (1993) no Cineteatro Capitólio.

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

“Só”

1991

Em 1991, já com quase 20 anos de atividade musical em nome próprio e dois anos depois de editar o disco ‘O Bairro do Amor’, Jorge Palma fecha-se no antigo estúdio da Valentim de Carvalho em Paço d’Arcos com uma missão exigente: fazer um disco só com voz e piano, uma espécie de recital gravado com alguns dos temas da sua carreira que melhor encaixassem nesse formato. Não era uma coletânea, um ‘best-of’ (ainda não fizera nenhum), mas agrupava muitas das suas canções mais conhecidas, gravadas agora num novo formato, mais despido e menos ancorado na estética de produção dos seus discos dos anos 1980.

“Muita gente dizia-me na altura: devias gravar um disco só com piano e voz. Eu respondia: epá, está bem, um dia. O é editado pela Polygram e à frente da Polygram nessa altura estava o Tozé Brito — que também insistia comigo de que devia fazer um disco só de piano e voz. Eu tinha acabado o curso de piano, do Conservatório, pouco antes. Estava em forma,  a tocar peças que, sinceramente, neste momento não consigo tocar. Os dedos estavam em forma, a cabeça também, estava tudo em forma. E disse: ok, pronto, vamos fazer.

Fui basicamente eu quem escolheu os temas a constar no disco. Foi o último disco gravado no antigo estúdio da Valentim [de Carvalho, em Paço d’Arcos], antes de entrar em obras. Era um estúdio grande e tinha à minha disposição um Steinway, que é um Rolls Royce dos pianos. Resolvemos, eu, o José Manuel Fortes — que é o técnico e é também produtor, no fundo — e o Francis, o Francis Mann, meu velho companheiro, que as pessoas que estariam na cabine eram eles. Eu ia para o piano. E resolvemos fazer como se fosse ao vivo, cantar e tocar do princípio ao fim. Ali não há picanços, não há cortes. Fazíamos os temas do início ao fim. Quando alguma coisa corria mal, repetíamos.

Pedi média-luz no estúdio. É a minha luz natural [risos]. Eu quase nem os via lá ao fundo na cabine, nem me interessava vê-los. Concentrava-me, atacava uma música e muitas vezes tocava-a e cantava-a do princípio ao fim. Chegava ao fim a pensar: epá, correu bem. Chegava lá dentro, olhava para as caras deles e quando via uns olhares assim… pronto, ok. Diziam-me: pois, pá, o pessoal não está muito interessado na perfeição do piano, o pessoal quer-te ouvir cantar, pá, interpretar, portanto, vai para lá e solta-te. Algumas canções fiz “500 vezes”, “500 takes”.

Deu-me muito gozo fazer arranjos novos só para piano. O da “Estrela do Mar” não foi muito diferente do que estava no original, o da “Canção de Lisboa” também não, mas no “Jeremias” [“Jeremias, O Fora da Lei”], fiz um arranjo a pensar em Ragtime — uma técnica difícil. Fiz um arranjo tecnicamente difícil, nesse caso, inspirado numa peça do Heitor Villa-Lobos que tinha estudado para um exame. Essa foi uma das que levou uma volta completamente diferente. Para o “Essa Miúda” fiz também um arranjo pianístico totalmente diferente do original, com umas preciosidades no piano. A “Terra dos Sonhos” originalmente também era uma canção à guitarra, fiz nessa altura propositadamente um arranjo pianístico.

Esmerei-me para que as canções tivessem uma sonoridade completamente nova. E esmerei-me mesmo na escrita e nos arranjos de muitas delas. A verdade é que funcionou.”

“Com Uma Viagem na Palma da Mão”

1975

Três anos depois do primeiro single, “The Nine Billion Names of God”, dois anos depois do EP, ou mini-álbum, “A Última Canção” (uma colaboração com um dos seus ‘professores’ na escrita de canções em português, José Carlos Ary dos Santos), Jorge Palma edita o seu primeiro álbum completo. Para trás ficava, assim, o seu percurso de bandas que incluiu uma passagem pelo Sindicato, grupo que atuou na mítica edição de 1971 do Festival de Vilar de Mouros.

“Eu andava a pensar em escrever um álbum. Ouvia muito na altura rock sinfónico, portanto Genesis, Yes, Gentle Giants, esse tipo de música. Comecei a pensar num álbum nessa onda. Há músicas que demoram sete minutos ou mais. Nada comercial, não é? E pedi a colaboração do Zé Carlos Ary dos Santos. Isto passa-se em 1973, no princípio de 1973. Já tínhamos gravado o EP “A Última Canção”, que teve a colaboração do Ary.

Tinha tido a possibilidade adiar a ida à tropa por estar a estudar na faculdade. Mas nessa altura, em 1973, já tinha pura e simplesmente deixado de ir às aulas. Fiquei-me pelo segundo ano daquele que seria o curso de engenharia, portanto já sabia que ia ser chamado para a tropa. E ir para a tropa nessa altura significava dois anos cá e dois anos numa colónia de metralhadora na mão, coisa de que gosto muito nos filmes — filmes de guerra e da máfia — mas sinceramente… disse: não, não vou.

Tinha já conhecido e trabalhado com um encenador dinamarquês que esteve cá em Portugal. Esteve cá com a ideia de fazermos um musical que já existia, o Godspell, com atores e cantores portugueses. Fui um dos escolhidos. O Pedro Osório estava a dirigir a parte musical. Eu e por exemplo o Fernando Girão, o ‘very nice’ como lhe chamávamos, fomos escolhidos juntamente com estudantes do conservatório. Tivemos ensaios e tal. Depois aquilo deu para o torto porque houve um boicote. Ensaiávamos no Parque Mayer e houve um certo boicote por parte dos profissionais da revista: então estes putos que não percebem nada disto estão a ocupar o nosso espaço?

Ele foi-se embora mas antes de ir-se embora, ele e a mulher — que é uma grande amiga minha, falamos quase todos os dias — disseram: se decidires sair de Portugal, tens uma casa em Copenhaga. E eu: meu dito, meu feito. Fui eu e a minha namorada, com quem acabei por casar já na Dinamarca. Vendemos de tudo: sofás, máquina de lavar, aparelhagem… fizemos um leilão entre os amigos, fizemos algum ‘taco’, passámos por Londres e seguimos para a Dinamarca onde acabei por meter os papéis e ter asilo político. Asilo político, quer dizer: estatuto de refugiado.

Nessa casa, que era uma vivenda que ficava num bairro que podemos comparar com o que cá é o Restelo, e que ficava ao pé das fábricas de cerveja da Carlsberg [ri-se], existia no sótão um piano igual a um que tenho atualmente: um piano de cauda, não de cauda comprida mas de cauda. Passei muito tempo nesse sótão. Os meus horários eram mais durante a noite. Durante o dia era suposto aprender dinamarquês, coisa que me foi facultada mas que não aproveitei. O que acontece é que continuei a desenvolver a parte musical desse disco que estava a acontecer na minha cabeça. E comecei a escrever em inglês com aquele sonho de um dia, eventualmente, vir a ser um pop star na Dinamarca ou em Inglaterra. Rapidamente percebi que não tinha a mínima hipótese, nem em Copenhaga nem em Londres, onde também estive.

A verdade é que já tinha o disco todo feito, na cabeça e na pauta, com letras em inglês. Mas acontece o 25 de abril, eu acabo por voltar no verão de 74 e digo: ‘porra, então vou fazer o primeiro álbum em Portugal em inglês? Quando quase ninguém fala inglês?’ É um disparate, pá’. E comecei a fazer uma retro-versão para português, mas que já não tinha nada a ver com as letras do Ary porque o estilo [musical] era diferente. Comecei a escrever as letras todas em português.

Aí, já tinha experimentado ácido, LCD. Não sei se se nota em alguma coisa [risos]. Antes mesmo de ir para a Dinamarca tinha trabalhado em orquestrações para outros cantores, em Portugal, e o Mário Martins, que era o AR da Valentim de Carvalho, já acreditava muito em mim. Naquela altura, início de 1975, os estúdios da Valentim não estavam alugados por ninguém e o Mário Martins disse-me: ok, vai para lá, grava o que quiseres. Isto é um luxo. E aproveitei. O Mário Martins foi fundamental — tal como o técnico de som, o Hugo Ribeiro, que já morreu. Encaixaram perfeitamente com o nosso espírito na altura, mesmo maluco. Pensava “eu agora quero um ambiente de casino” e inventávamos, com copos e moedas, a fingir que era a roleta [risos]. Estive não sei quanto tempo a gravar, mais de um mês, às tantas íamos para lá todos os dias.

O disco foi mesmo editado. Não sei se chegaram a fazer 500 cópias, provavelmente não. Ofereci muitos discos a família e amigos e não sei se terá vendido dez [risos]. Não houve promoção nenhuma. Estávamos em pleno verão de 1975, politicamente isto estava um olaré, ninguém tinha pachorra para andar a ouvir discos, andava tudo aos gritos na rua [risos] e a cantar na Voz do Operário e nos cantos livres por todo o lado. Na altura, praticamente ninguém me ficou a conhecer. Mas é um disco que amo profundamente.”

“‘Té Já”

1977

“Na Dinamarca tinha-me habituado a fumar muito haxe, sobretudo. Quando venho para Portugal, foi a descolonização e chegava carradas de erva de Moçambique e de Angola, daquela erva… muito boa [sorri]. E experimentei ácido. Não tinha experimentado mais nada, nem cocas, nem heroínas, nada. A verdade é que entre o primeiro e o segundo álbuns, em 1976, experimento. Não fiquei adicto, felizmente que consegui sair daquilo ao fim de uns meses. Mas a verdade é que quando gravei o ‘Té Já já estava com uma hepatite sem o saber. Não era hepatite C, era uma hepatite qualquer. Andava amarelo, verde, estava muito em baixo de forma — e nota-se na voz. Mas a verdade é que escrevi as canções do ‘Té Já e gravei-as nos estúdios da Valentim com o Hugo Ribeiro, mas a editora que o lançou foi a Sassetti.

O ‘Bairro do Amor’, por exemplo, está lá. Gosto muito da ‘Meio Dia’, é uma das que vamos tocar nesta série de concertos. Acho que a voz é o que está pior ali no disco. Mas pronto, foi o que foi. O impacto não foi muito diferente do primeiro. Só que no meio musical, que era relativamente pequeno em Portugal, toda a gente se conhecia. Deste os tempos das bandas — do Sindicato, dos finais dos anos 60… —, o pessoal da música começou a ouvir falar de um puto chamado Jorge Palma, que tinha jeito para as teclas e não sei quê. Esses discos, e sobretudo o ‘Té Já, chegaram aos ouvidos de pessoas como o Sérgio Godinho. Ele já era um ídolo para mim e começa no fundo a conhecer-me aí, musicalmente.

No primeiro álbum eu tinha tocado os instrumentos quase todos: baixos, guitarras e teclas, com o Vítor Mamede na bateria e o Rui Cardoso nos sopros — flautas e saxofones. Neste segundo disco, o Rui Cardoso não pôde gravar — acho que estava em França — e chamo o Rão Kyao, de quem tinha ficado amigo desde a altura do Sindicato [banda em que tocaram juntos] . No ‘Té Já, é o Rão que faz os saxofones todos. “O Anjo das Plumas Coloridas”, por exemplo, é um instrumental em que o solista é o Rão, que era um grande saxofonista, depois entregou-se às flautas. Uma curiosidade: ele entra no disco que estou agora a gravar.

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O jazz esteve sempre muito presente porque tenho trabalhado desde o princípio com músicos que fui conhecendo no Hot Clube. Frequentei muito o Hot Clube, em determinados períodos, portanto trabalhei em estúdio e ao vivo com muitos músicos de jazz, dos melhores que tínhamos.”

Atiramos para cima da mesa uma ideia: a de que além do jazz, este segundo disco prenuncia já uma individualidade no campeonato da escrita de canções. Distinguindo-se dos “cantores de intervenção” da época, Palma tem canções com apontamentos diretamente políticos mas escapa já à tentativa de consciencialização ideológica diretamente pela música. Qual Groucho Marx, que só queria aderir a um clube que não o quisesse ter como membro, começa cedo por ser o desalinhado, que rompe com as convenções sociais, que rejeita os moralismos, que, mais do que transformar a sociedade, quer que esta o deixe trilhar o seu próprio caminho. Diz ele:

“Mesmo nos cantos livres, naquelas coisas todas da Voz do Operário, por todo o lado, nunca escrevi nem alinhei em músicas panfletárias. Nunca me passou pela cabeça pertencer a um partido. Eu costumava dizer que era um individualista romântico [ri-se]. Se isso vem do Dylan, da ideia de não querer ser porta-voz de nada nem de ninguém? O Dylan foi uma espécie de guia para mim, sim, de cicerone. Eu tinha, sim, um lado mais anarca.”

“Qualquer Coisa Pá Música”

1979

“Por esta altura o meu casamento já estava em farrapos, por causa da droga. As drogas pesadas fazem, de facto, uma pessoa perder a noção de tudo. E meu pai vivia no Brasil… a única pessoa que tinha de facto cá era a minha mãe, que já estava habituada a longas ausências minhas. Não tinha nem mulher nem filhos nem porra nenhuma. Portanto, depois do ‘Té Já sair, decidi: pá, vou mas é para a estrada. Entreguei a capa desse álbum a dois amigos meus, para fazerem o que quisessem, e fui-me embora, estrada fora.

Ajudou muito ter lido nessa altura o ‘On the Road’, as letras do Dylan, do Cohen, os poetas da Beat Generation: Ginsberg, Frank O’Hara e essa gente toda. Portanto, com licença que vou-me embora. Experimentei tocar na rua primeiro em Espanha, no verão, na praia, e dei-me bem — não fazia muito dinheiro mas davam-me muito haxixe, punham na caixa da guitarra, no saco da guitarra. Percebi que podia sobreviver a tocar na rua. Ainda venho a Portugal mas depois vou para Paris e fico lá dois anos, a tocar na rua e no metro.

Todos os dias tocava, estava sempre a tocar. Tanto para fazer dinheiro como por puro gozo. Havia um café em Paris que hoje existe no mesmo sítio, chama-se Mazet, mas já não tem nada a ver. Neste momento é um bar perfeitamente normal, vulgar. Na altura, era um ponto de encontro dos músicos de rua. O dono, que era esperto [sorri], tinha assim uma pilha de tabuleiros, porque a gente ao fim de um bocado já tínhamos… era muita moeda. Íamos ao Mazet, gastávamos logo algum lá, claro, numas cervejas, fazíamos as pilhas de moedas e voltávamos do balcão com as notas. E lá seguíamos outra vez para a rua.

Pelas ruas, raramente tocava canções minhas. A Billie Holiday dizia que não gostava de cantar a mesma canção no mesmo dia. Eu sentia a mesma coisa. Tinha um repertório de dezenas de canções, estou a falar de 40, provavelmente mais. Tinha canções de bluegrass, por exemplo. Comecei a dar-me ali com músicos de todo o mundo e os tipos americanos tocavam banjos e bandolins e contrabaixo e violino e não sei quê. Apaixonei-me por esse tipo de música, bluegrass, que é um country especial, de Kentucky e com muita influência da música irlandesa. Mas conheci músicos do México, das Áfricas, da Ásia, de todo o mundo. Às vezes aparecia um gajo com um instrumento esquisito: como é que tocas isso? Nesse café Mazet, até às duas da manhã podíamos estar à vontade, a tocar, a cantar e a beber.

Por esta altura, vou escrevendo canções pelos sítios onde andava. Não era só Paris. Na primavera e no verão íamos para o sul de França, para a Suíça, Alemanha, Dinamarca, Inglaterra… formávamos pequenos grupos, ou às vezes sozinhos, e ia-se para outros sítios. É nesse período que vou escrevendo canções novas. Às tantas já tenho o suficiente para fazer um álbum.

Entretanto tinha uma namorada americana, do sul, da Geórgia. Ela veio comigo a Portugal, quando regressei, e ficou cá uns tempos largos. Mais uma vez, corro as capelinhas, os estúdios todos, para ver quem estava interessado em pagar a gravação de um disco. E na altura acho que a Valentim não estava nessa, nem a Polygram. Uma editora que pouco tempo depois desapareceria, uma coisa assim caseira, chamava-se Nova, alinhou em financiar-me, em pagar-me a gravação desse disco Qualquer Coisa Pá Música.

Felizmente nunca me cheguei à frente, nunca tive de pagar nada para gravar, nem capas, promoções e tal. Essa editora gravou Corpo Diplomático, projeto do Pedro Ayres Magalhães, e outras bandas importantes da altura mas durou pouco, talvez por má gestão, não sei bem o que aconteceu. A verdade é que editaram-me o disco. E fiz o que quis. Na altura estava a tocar bem bandolim, mas depois roubaram-me o bandolim em França — voltei para lá, depois.

Desde o primeiro álbum que me habituei a não ter expectativas nenhumas. O que me interessa é simples: dá-me um gozo do caraças gravar. E nunca ninguém meteu o bedelho a dizer ‘epá, não faças assim, faz assado’. Tive liberdade total, sempre, até hoje.”

“Acto Contínuo”

1982

“Na primavera de 80, já depois do Qualquer Coisa Pá Música, estou a caminho de França. Isto por volta do início do verão. Vivi lá mais um ano, desta vez já com a minha namorada que acabou por ser a mãe dos meus dois filhos. Em 1981 decidimos voltar para Portugal, já com a ideia de termos um bebé e assentarmos um bocado. Tínhamos condições para isso. Quando regresso, venho com 20 e tal canções novas. E queria gravar todas. Algumas seriam instrumentais, pelo menos uma era. E reúno uma banda, com malta do jazz.

A ideia era gravarmos esse novo disco ao vivo, num bar da Praia da Rocha. O dono era irlandês, um gajo porreiro, com um temperamento muito irlandês. Dizia-nos: ok, vocês gravam aqui. O Tozé Brito estava na Polygram nessa altura. Nunca o ouvi dizer não. Disse-me: ‘ok, queres gravar ao vivo? ok, ok. A gente faz o que for preciso’.

Entretanto, percebemos que não havia condições para gravar porra nenhuma no bar. Era preciso levar uma carrada de materiais para a Praia da Rocha, uma confusão do caraças. Mas a verdade é que já tínhamos ensaiado as tais 20 canções. Então, fomos trabalhar com o José Manuel Fortes para os estúdios Angel 1 e decidimos gravar um pouco como se fosse ao vivo. O álbum tem um som cru, uma sonoridade a que só faltam as palmas para soar a disco ao vivo. Claro que houve vozes que gravámos posteriormente, gravava-se os instrumentos e depois cantava-se. Mas de qualquer maneira foi bom, a onda foi muito ao vivo. E deu um álbum duplo.”

Lembramos que o disco tem “A Gente Vai Continuar”, uma das suas canções mais conhecidas, tema de estrada, meio beat. Seria, arriscamos, um reflexo da vida dos anos anteriores, em Paris, a tocar nas ruas, a viajar para aqui e para ali de guitarra às costas?

“São canções de estrada, todas elas pá. Descrevo comboios… esse disco tem estrada, muita estrada. Até ao Lado Errado da Noite, por causa da “Deixa-me Rir” — que foi um êxito na altura, embora o disco não tenha vendido nada de especial — não houve nenhum pico assim de popularidade. Portanto, o Acto Contínuo… a gente foi tocando nos concertos, comecei a ter cada vez mais concertos em meu nome. E algumas canções foram-se tornando populares no ouvido das pessoas, como “A Gente Vai Continuar” e a “Portugal, Portugal”, mas só com o tempo.”

“Asas e Penas”

1984

“Ter voltado aos estudos de piano influenciou muito o rumo do Asas e Penas. Recomeçar a estudar o clássico, o pessoal do século XIX e XX — estou a falar de Debussy, os românticos, muita coisa desde o Beethoven… o facto de começar outra vez a ler a pauta e a ouvir aquilo que estava escrito na pauta influenciou a escrita de várias canções e várias orquestrações deste disco.

Não teria escrito a “Estrela do Mar” sem o regresso aos estudos, de certeza. Aquilo toca-se em quatro ou cinco acordes na guitarra — que foi como a compus — mas depois o arranjo pianístico que fiz, não o teria feito se não tivesse estudado Debussy.”

O Lado Errado da Noite”

1985

“Quando faço O Lado Errado da Noite, em 1985, estava numa fase bastante estável. Já tinha um filho de dois anos. Vivia numa casa grande, com piano. Tinha todas as condições. Continuava a fazer alguma vida boémia, claro, ia beber os meus copos e essas coisas mas estava muito equilibrado — psicologicamente, mentalmente, emocionalmente.

Escrevi essas canções normalmente de madrugada, a começar pelo próprio “Lado Errado da Noite”, influenciado já por gajos como o Tom Waits e outros, como o Cohen. O próprio Tom Waits tem aquela canção, a “Wrong Side of the Road”… Sempre ouvi música e há alguns que nunca deixei de ouvir, como o Dylan e o Paul Simon. Em relação ao que se está a passar atualmente é que já sou ignorante, às vezes vejo aqueles concursos da televisão e quando tocam coisas de bandas dos últimos dez ou 20 anos, acho que parei nos U2 e nos Da Weasel [risos].

Foi um disco muito influenciado por leituras, também, foi uma altura em que li muito. O “Jeremias” é a forma que encontrei de retratar uma personagem de um livro, de um gajo chamado Tom Robbins. Li vários romances dele. Não sei se há traduções em Portugal, o que sei é que li em inglês vários livros dele e o Jeremias é como chamo a uma personagem que era o Woodpecker, de um romance dele que é o “Still Life with Woodpecker”. O Woodpecker era um gajo que largava bombas por todo o lado [ri-se]. Escrevi essa letra a pensar nisso. A música é extremamente simples, é tipo country.

É a partir deste disco [que tem também temas como “Cara de Anjo Mau”] que começo a ter muitos mais concertos. Na altura não havia o Blitz, ainda, mas havia o Se7e e cheguei a pôr um anúncio, acho que no Se7e, a procurar músicos para me acompanharem: ‘preciso de um guitarrista, preciso de um baterista…’ Para o baixo veio o velho Zé Nabo, o querido Zé Nabo, que era um génio. O baterista veio através do anúncio, o guitarrista também. Um deles era o Zé Carrapa, que já conhecia de ginjeira, já tínhamos trabalhado juntos. Mas formei uma banda porque começámos a ter bastante trabalho.”

Quarto Minguante”

1986

“Foi um flop. Como de costume, as editoras nunca me pediram maquetes nem porra nenhuma, nem quiseram ver letras ou ouvir o que eu ia gravar. Davam-me total liberdade. Claro que o pessoal da Valentim, que já era EMI, atirou-se ao ar quando ouviu o disco. Nomeadamente, o David Ferreira e o Chico Vasconcelos.

Chamaram-me e tivemos uma reunião em que houve gritaria, mesmo. Diziam: epá, porra, desiludiste o teu público todo, não há uma única canção aqui que se aproveite [risos]. E não queriam editar o disco. Diziam: vai para casa, pá, não te preocupes, a gente paga isto à parte mas vai fazer um disco de jeito com canções. Eu disse: não, não, vocês vão editar este disco. Uma gritaria! E os gajos: ok, a gente edita o disco mas não contes com um tostão em publicidade, não vamos mexer uma palha para promover o disco. E assim foi.

Atualmente dou-lhes razão. É um disco que, ainda assim, deu-me muito gozo a fazer. E é um álbum que não é só meu, na origem. Ali há muito a mão e a cabeça do Tozé Chaparreiro, o guitarrista, que era muito para a frente e queria coisas muito complicadas, atravessadas. Eu alinhei nisso. E deu-me muito gozo gravar.

Depois houve essa tal reunião na Valentim de Carvalho, a uma 5ª ou 6ª feira, em que os gajos diziam: epá, ao menos vai para casa e escreve uma canção, uma, pá! Eu disse ok. Fui para casa e num dia ou dois escrevi uma canção chamada “Tudo bem (os morangos estão lá)”. Na segunda-feira, fui ter com eles para tocar a canção, num piano que lá havia. E eles disseram: ok, é isso mesmo que a gente precisava. Depois com o arranjo, que partilhei com o Rui Cardoso, lixámos a canção toda [risos]. Aí é que os gajos se atiraram ao ar! Diziam: a canção era tão bonita, lixaste isto tudo, pá. Mas pronto, ficámos amigos.”

“Bairro do Amor”

1989

“Entre 1986 [ano de edição de Quarto Minguante] e 1989 [ano de edição de Bairro do Amor] tive uma fase em que não me saía nada de jeito, sobretudo em 1987 e 1988. Li bastante, estava numa fase relativamente calma. Também não forçava muito, mas queria escrever um álbum e gravar um álbum. Só que não me estava a sair nada de jeito. São coisas que acontecem.

Depois, resolvo: vou regravar o “Bairro do Amor”, com o Júlio Pereira, como tinha sido em 1977. E reuni uma série de novas canções, 11 ou 12, que achei que já estavam no ponto certo, que já tinham pernas para andar.

Fiz um jogo diplomático, porque ninguém estava a querer gravar-me: nem a Polygram, nem a Valentim. O Guilherme Inês, que morreu há pouco tempo, e o Zé da Ponte, baixista, que também já foi, tinham acabado de adquirir os estúdios Namouche. Conversei com eles e disse-lhes que precisava de gravar e que fosse editado um disco a que iria chamar Bairro do Amor. E os gajos: por nós temos toda a boa vontade, mas… andei a correr entre o Namouche, que é na Estrada da Luz, e a Polygram, em Benfica, a conversar com a Polygram e o Namouche. Chegaram a um entendimento em que o Guilherme e o Zé ficaram com direitos sobre o disco, também. Bom, arranjaram uma maneira de se entenderem e a verdade é que gravei no Namouche o Bairro do Amor como queria. E foi muito bem aceite, pela editora e por toda a gente.

Reuni no Bairro do Amor canções de que gosto muito e que, modéstia à parte, acho que estão bem feitas. Foi muito bem gravado, como de costume, com os melhores músicos que conhecia. E foi muito bem aceite. Mas em termos de vendas, acho que também não foi nada assim de estrondoso.”

“Jorge Palma”

2001

“Entre este disco de 2001 e o Bairro do Amor, de 1989, passam-se 12 anos. Em 1991 faço o , muito clássico, e depois começo a frequentar o Johnny Guitar diariamente, era a minha casa à noite. Considero o e o Ao Vivo no Johnny Guitar complementares. Um é um recital e o outro é um speed… e não andávamos a snifar coca, sequer [ri-se]. Ainda anteontem estava a falar com o Flak e o Flak dizia: epá, acho que o Kalú não vai tocar à velocidade a que tocávamos [risos]. Ouve-se aquilo e é uma vertigem, porra…

Depois fartei-me de trabalhar em teatro, por exemplo. Compus para várias peças. Participei em duas peças do Brecht. Trabalhei com a companhia de teatro de Braga, com o Rui Madeira, um grande amigo. Trabalhei numa peça chamada “Carta a uma filha” de um escritor inglês que veio cá assistir à estreia. Fartei-me de conhecer pessoas interessantíssimas do teatro, da literatura. Com a Maria Velho da Costa, passávamos as tardes com uns copos de uísque, lá num restaurante ao pé da casa dela no Restelo. Íamos trocando ideias, escrevendo… depois ia para casa e experimentava musicar as coisas. Com o Jorge Silva Melo, que também já foi, fiz “As Canções do Brecht”, com a Lia Gama e outros atores e cantores, o Silva Melo encenou. Brecht, Kurt Weill, Hanns Eisler… fartei-me de trabalhar e de aprender nos anos 90.

Pelo meio tive um grande sucesso com os Rio Grande, com o João Gil e o João Monge. Rebentámos com isto tudo com aquele disco muito simples [homónimo e editado em 1996]. Foi o êxito que foi, ganhou-se bastante dinheiro, corremos o país todo. Tornou-me mais visível. Depois, ainda tive os Cabeças no Ar, que não foi um êxito tão grande mas teve algum [com um álbum homónimo, lançado em 2002].

Para este meu disco, de 2001, vou buscar algumas coisas que tinha escrito para teatro. Uma delas é um poema autobiográfico do Brecht, que tem muito a ver comigo porque ele fala na aguardente e nos cigarros [ri-se]. Chama-se “Do pobre B.B.”, B.B. de Bertol Brecht. Ponho canções que escrevi para uma peça do Brecht, da juventude do Brecht, que é a “Lux in Tenebris”. Fui buscar canções que tinha escrito para teatro, misturando com outras que fui escrevendo naturalmente.

Esse disco foi um êxito. Chama-se Jorge Palma, mas por causa da capa, como tem atrás o “Proibido Fumar” e estou com um cigarro, ficou conhecido assim.”

Norte”

2004

“Quem editou o Norte foi a EMI, ainda não era Warner na altura. Saiu em 2004. Eu já tinha as canções praticamente todas pensadas quando fui gravar. Peguei em dois textos do Carlos Tê, de quem sou um grande fã, é uma pessoa brilhante — o Monge também, cada um à sua maneira mas identifico-me mais com o Tê.

Acontece que já tinha o material, tinha orquestrações feitas para sopros, cordas e não sei quê, e instalei-me num hotel em Lavadores, mesmo em cima da praia, ao lado do Porto. Acabei de escrever as coisas e ia todos os dias para estúdio ter com o Mário Barreiros e com os músicos. Deu-me um gozo do caraças gravar isso, também.

Claro que as despesas, só do hotel… eu pensava que a editora… a editora pagou. Eu pensava que pagava a fundo perdido, mas não, descontou-me depois nos royalties [risos].”

Falamos-lhe de um tom jazzístico, elegante e sóbrio, que se ouve neste disco, e dos seus arranjos económicos — e chamamos a atenção especificamente para a beleza de “Outono (Estratégia da Cigarra)”. Responde ele: 

“Cada disco tem a sua história. O Carlos Bica, de quem sou amigo há quinhentos anos, vive parte do ano em Berlim, já me tenho encontrado lá com ele. Nessa altura, ele estava em Portugal. Tem uma banda que é a “Azul”, com um guitarrista, o Frank Möbus, que eu convidei para solar na “Outono”. O Bica toca contrabaixo.

Há outro contrabaixista com quem trabalho muito, o Carlos Barreto, também do jazz. Mas o Bica e o Möbus dão esse tom ao disco. E o Flak também toca, esgalha ali! Chamei o grupo Dixie Gang e o Rui Aves, que foi meu baterista, tem-no sido às vezes — aparecem-me todos numa carrinha com a tuba e os clarinetes e os sax’s e aquelas coisas todas [ri-se]. Foi uma festa.”

“Voo Noturno”

2007

Para cima da mesa, trazemos uma dúvida que há muito nos inquieta: como é que Jorge Palma chegou a ponderar não incluir “Encosta-te a Mim” neste disco, por um lado, mas, por outro, a canção até acaba por abrir o álbum e servir de arranque ao disco?

“O alinhamento não fui eu que o determinei. Os alinhamentos, nos discos, normalmente não sou eu sozinho a determinar. Discuto-os com a produtora, os músicos, a editora. Eles decidiram pôr aquilo a abrir.

Eu às vezes mostrava a “Encosta-te a Mim”, por brincadeira, ao Rui Veloso, ao Tim, ao Vitorino, ao João Gil. E quando dizia ‘isto é uma baladazita’, e tal, eles diziam-me: estás maluco pá! Tens de meter essa merda! E eu: ok…

Atenção que a abertura da canção, uma pessoa ouve o primeiro compasso e aquilo é da cabeça do Marco Nunes, que era dos Blind Zero e toca com o Pedro Abrunhosa atualmente. Aquele som inicial é da cabeça dele e dá logo uma personalidade à música.

Essa música, eu aliás não escrevi o arranjo — os músicos entenderam-se. Quando eles gravaram a base toda, eu nem sequer estava no estúdio. Estava num hotel, no Porto, estava a dormir. No dia seguinte quando cheguei ao estúdio e ouvi aquilo, pá… ‘porra, obrigado!’”

Continuamos por “Encosta-te a Mim” pedindo-lhe para confirmar a veracidade de uma história que circula: a de que no ano seguinte a este álbum, 2008, casou-se em Las Vegas tendo esta canção como banda sonora

“Essa música foi a entrada da noiva, foi. A [produtora e promotora] UAU, para comemorar um aniversário, decidiu juntar um grupo de 50 pessoas interessadas em ir a Las Vegas passar uma semana, por aí — uns nove dias ou dez. Programa: todos os dias espectáculos do Cirque du Soleil. Estava incluído: era o hotel, era a viagem e era o Cirque du Soleil todos os dias, era uma fartura.

Quando o meu manager na altura me telefonou a perguntar se eu estava interessado em ir, com a Rita [Tomé], eu disse: espera aí um bocadinho, vou falar com ela. Conversei com a Rita cinco minutos e decidimos: ok, vamos embora. Depois fomos para o computador olhar para Las Vegas e percebemos: Las Vegas é jogo… e é casamentos, também, tem capelas por todo o lado. Olhámos um para o outro naquela: bora casar? [risos] Ok, bora casar.

Acontece que eu decidi fazer a coisa legalmente direita, mesmo. Tratei com o meu advogado, um amigo meu, que tinha tratado do meu divórcio [anterior]. Pedi-lhe para tratar do que fosse preciso cá em Portual, para tratar lá da papelada. Ainda demorou um ano até que o casamento fosse de facto legal no planeta, por causa de tradutores, notários, não sei quê. Mas valeu. E não dissemos a ninguém que íamos casar.

Numa bela manhã, metemo-nos numa limusina branca. No grupo estava o Rui Veloso, estava esse meu manager, o Manuel Moura dos Santos, e estava o Rui Braga, que trabalhava comigo. Sobretudo o Rui Veloso atirou-se ao ar quando a gente voltou e eu disse: epá, quero beber um copo que a gente acabou de casar [risos]. E o Rui: casar?! mas quem foi o padrinho?! Lá lhe respondi: epá, foram as pessoas que lá estavam, a notária e não sei quê. E ele: foda-se, e tu não me convidaste, pá? Ficou lixado comigo [ri-se].

A verdade é que casámos. E curtimos, essa viagem foi do caraças. Nas núpcias aluguei um carro e fomos para o Arizona, com a ideia de ir ao Grand Canyon por estrada. Também se podia ir de helicóptero… o que acabei por fazer. Mas tive um cheiro forte da América profunda no Arizona. Epá, uma bimbalhada… gente muito antipática, careta, conservadora, sei lá mais o quê.”

Com Todo o Respeito”

2011

“Ao longo da vida, tenho tido períodos em que penso: sobre o que é que vou escrever? Muitas vezes, se estiver por exemplo a escrever para teatro, tenho um terreno para me mexer, tenho um mínimo de bases para escrever — já vou compor neste sentido, com uma intenção [narrativa]. Quando escrevi a “Página em Branco”, com que começa este disco, estou a falar precisamente desse impasse.

Não acho que seja um disco muito brilhante comparado com os outros. Mas tem canções porreiras.”

Palma’s Gang – “Ao Vivo no Johnny Guitar”

1993

“Os meus amigos, o Kalú, o Zé Pedro, o Flak, o Alex [Cortez], alguns eram sócios do Johnny Guitar e outros não. O Flak não era, por exemplo, e eu também não. Mas foi um ponto de encontro, um sítio onde se via concertos. Vi lá muitas bandas alternativas, punks e neo-punks. E era um sítio para se fazer jam sessions, também, para pegar num instrumento e fazer uma jam, para tocar.

Nunca cheguei a saber bem se a ideia do disco veio do Alex ou do Zé Pedro. Acho que terá sido um pouco de todos. A ideia era: Palma, e que tal visitar as tuas canções num formato rock and roll? Começam a falar comigo sobre isso e fizemos algumas jams, já a atacar músicas minhas. E percebemos que aquilo resultava. Depois, foram os pormenores: duas noites e uma tarde a tocar e gravar, no fundo três dias. Aproveitou-se o melhor de cada interpretação dessas sessões. E foi uma loucura.”

“Se foi um período rock and roll? Foi, completamente. Aí descambei um bocado. Um bocado é favor… drogas pesadas nunca mais, nunca mais me meti nisso, mas no álcool, sim. Muita cerveja e uísques e essas coisas. Os nossos ensaios… havia o palco e de um lado havia o balcão com duas máquinas de tirar cerveja. Eu já era perito em tirar as minhas imperiais [risos]. Só eu devo ter dado um prejuízo à casa!

Nessa altura o Zé Pedro ainda bebia, também… Agora vamos tocar como se o Zé Pedro lá estivesse — não há substituto. Foi uma perda… eu guardo as últimas mensagens que troquei com ele, como com o José Mário Branco, umas duas semanas antes de eles marcharem. O Zé Pedro era um doce. Era impossível não gostar daquele gajo. Era genuíno, era altruísta. O que o gajo sabia de rock and roll… um mestre.”

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