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1971 e o Festival Vilar de Mouros: a revolução de agosto com abril à espreita

António Barge tinha um sonho: colocar a aldeia de Vilar de Mouros no mapa. 50 anos depois, recordamos a odisseia com a ajuda de Manfred Mann, Victorino D'Almeida, José Cid e Rão Kyao.

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Domingo de madrugada, o sol assustadiço requer um agasalho em pleno mês de agosto. Expectante, um aglomerado de gente aperta-se nos corredores do Pedras Rubras, o aeroporto da cidade do Porto; e na frente da multidão de populares e jornalistas, está um ginecologista obstetra com um ramo de flores. Repentinamente, cercados pela polícia, três ingleses tentam alcançar a saída, entre eles é certo, ninguém sabe precisar qual, está “um dos mais sensacionais showman dos anos 70, quiçá de toda a História da Música Popular”: Elton John.

A filha do médico serve de embaixadora, fluente em inglês, estudante de Germânicas na Faculdade de Letras, entrega as flores e cumprimenta os músicos, na esperança que o tal cantor seja este rapaz encorpado de cabelos compridos — não era. Entretanto, à saída, o inglês mais acanhado, ruivo de barba rala, dirige-se ao Dr. António Barge — o responsável pela organização insensata de um festival de música no meio de uma ditadura, no meio do nada — e pergunta-lhe onde está o carro de ponta e o motorista, “como consta no contrato”, sublinha Elton John. Expedido, António Barge embarca de imediato o músico num Fiat Giannini 128 — não era propriamente de ponta, mas o dono do carro, e agora motorista, era um apontamento de luxo: Júlio Isidro.

Enquanto o apresentador da RTP dá boleia ao “maior nome da música anglo-americana neste início da década de 70”, a PIDE segue no encalço e anota qualquer suspeita: “Um dos cantores, Elton John, causou desde o começo má impressão, com os seus modos soberbos e as suas exigências: carro de luxo para as deslocações, quartos de luxo para os acompanhantes e guarda-costas, etc”. E no recinto deste festival no fim do mundo, na absolutamente incógnita aldeia de Vilar de Mouros, em Caminha, é um espetáculo à parte, segundo o informante de serviço: “Crianças de olhares parados, indiferentes a tudo, grupos de homens, de mão na mão, a dançar de roda, um rapaz deitado com as calças abaixadas no traseiro, um sujeito tão drogado que teve de ser levado de braços”.

As capas das revistas "Mundo da Canção" e "o Século Ilustrado" dedicadas ao Festival Vilar de Mouros

Entre os pingos da chuva que ameaçam estragar a festa, “precedido por um batedor da GNR”, Elton John chega do hotel em Viana do Castelo e espreita o palco, ao passo que a plateia estende-se na relva e partilha chouriças e jarras de vinho. Era hora de jantar. Os músicos são recebidos na sede do festival, a casa da família Barge, habitação robusta do Alto Minho, de granito e xisto, espigueiro à porta e vinho verde à descrição. E às onze da noite, o motorista de ocasião Júlio Isidro sobe ao palco para apresentar “o maior show jamais realizado em Portugal”, diante de vinte mil jovens sedentos de liberdade. O cantor de “calção de alças vermelho ao jeito de menino de escola” e “meias às riscas” sobe ao palco, “dirige-se para o piano e fita a multidão”.

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No dia seguinte, mais uma madrugada fresca de agosto. Elton John regressa ao Aeroporto de Pedras Rubras após um dos concertos mais inverossímeis da sua carreira, numa aldeia minhota com um palco improvisado, sistema de som duvidoso, uma ditadura de fundo e tudo alegre e ao molho, orquestrado por um ginecologista obstetra com idade para ter juízo, que ao fim e ao cabo, feitas as contas, é excomungado e tem 700 contos de prejuízo. Se contasse, ninguém acreditaria. E vinte quatro horas depois, dia 9 de agosto, Elton John está no Trident Studios, em Londres, ao piano a gravar uma nova canção para a imortalidade, uma celebração do amor e daqueles dias atarefados a correr um atrás do outro, numa dança sem-fim ao sabor da estrada:

“Hold me closer, tiny dancer
Count the headlights on the highway
Lay me down in sheets of linen
You had a busy day today”

O ginecologista obstetra “completamente marado”

O compositor e maestro António Victorino D’Almeida consente receber em casa um médico que, segundo lhe garantiu a poetisa Natália Correia, “é verdadeiramente delirante”. O médico é acompanhado pelo amigo e maestro Silva Dionísio, da Banda Sinfónica da Guarda Nacional Republicana, e na sala estão ainda os poetas David Mourão-Ferreira, Natália Correia e o compositor Joly Braga Santos. E António Barge apresenta a sua obsessão: organizar um festival para milhares de pessoas numa aldeia em Caminha, a começar por apresentações inéditas de música erudita, e depois uma série de concertos para a juventude, uma espécie de Woodstock português, com um nome forte à cabeça, possivelmente os Beatles. “E cada um reagiu à sua maneira, o Joly resmungava, ‘é um louco, é um louco, estamos aqui a perder o nosso tempo’”, recorda-nos Victorino D’Almeida. “Pensámos que ele era completamente marado”.

Em 1971, a imprensa entende de imediato a relevância histórica e social deste acontecimento: “Será Vilar de Mouros o rastilho de iniciativas semelhantes num futuro próximo? Ou será uma realização isolada? De qualquer modo, reconhecemos-lhe desde já uma tremenda importância”.

Em março de 1971 acontece o anúncio público desta quimera: o Festival de Música de Vilar de Mouros acontece de 31 de julho a 15 de agosto, três fins de semana consecutivos de concertos. E sequer existe uma banda confirmada, apenas a programação erudita dos primeiros dias. Diário de Lisboa:

Em resumo: uma pequena aldeia minhota vai ter o privilégio que muitas terras maiores, mesmo cidades, nunca tiveram. Graças, diga-se, à iniciativa de um só homem, o dr. António Barge”.

Segundo o médico, é um acontecimento cultural, “sem qualquer fim lucrativo”, com o objetivo de animar a malta e colocar Vilar de Mouros no mapa, ora vejam, é evidente que os portugueses deviam conhecer a ponte românica da aldeia, o rio Coura, e já agora, que delícia, a truta e a lampreia. Esta teima de Barge começou em discussões na Casa do Minho, em Lisboa, onde insistia com os conterrâneos exilados na capital que o Alto Minho é que devia ser uma atração turística, qual Algarve. E depois, provou que não falava da boca para fora, que era um homem distinto dos restantes, ou como resume Victorino D’Almeida: “Ele quis e fez”.

Em 1971, a imprensa entende de imediato a relevância histórica e social deste acontecimento: “Será Vilar de Mouros o rastilho de iniciativas semelhantes num futuro próximo? Ou será uma realização isolada? De qualquer modo, reconhecemos-lhe desde já uma tremenda importância”. “O Barge era um tipo de pessoa que indiscutivelmente faz falta, era um sonhador, mas um sonhador com capacidade de fazer as coisas. Essa conjugação é que permitiu este acontecimento há 50 anos”, reflete o maestro, que em 1971 aceitou de imediato criar uma obra inédita para o palco da aldeia. A filha do fundador do Vilar de Mouros, Isabel Barge, acompanhou de perto os três anos de organização obsessiva do festival: “Ele pensava que isto um dia tinha que ser diferente e acreditava muito na juventude, que era preciso mostrar-lhes outras formas de estar”.

António Victorino D'Almeida: “Foi realmente uma coisa inimaginável ter acontecido o Vilar de Mouros naquela época” (arquivo de Isabel Barge)

Hoje, cinco décadas depois, num ano de 2021 sem festivais de verão, em período de reflexão para o setor, é ainda mais evidente a relevância de celebrar o primeiro grande festival do género em Portugal, que representou então — e ainda pode representar num futuro pós-pandémico — um brilho ao fundo do túnel da amargura. E organizar um festival de verão em 1971 era aparentemente tão propício e exequível como fazê-lo agora, em plena pandemia. Victorino D’Almeida: “Foi realmente uma coisa inimaginável ter acontecido o Vilar de Mouros naquela época”.

Um sonho “economicamente desastroso”

António Augusto Barge nasceu na freguesia de Venade, a meia dúzia de quilómetros de Vilar de Mouros, terra da sua mulher, Maria Amélia Barge. O ano de 1947 seria determinante: conclui a licenciatura de Medicina e organiza um protesto estudantil contra Salazar. “E o meu pai é apanhado numa casa de banho pública, é espancado com um golpe na cabeça e fica com cadastro”, revela Isabel Barge. “Depois, recebe uma carta da Rua António Maria Cardoso para se apresentar nas instalações da PIDE, é dado como persona non grata e impedido de trabalhar no público”. Felizmente, um professor de Coimbra, ginecologista obstetra, recebe de braços abertos António Barge, que começa uma longa carreira especializada no privado. E em 1971, aos 54 anos, o Dr. Barge está entre um consultório em Alvalade e a casa em Vilar de Mouros, com um traço distintivo de altruísmo que marcaria a sua carreira médica: “Em Vilar de Mouros ele recebia muita gente, muitos doentes que vinham de longe, a nossa casa parecia uma sopa dos pobres.”

Segundo Fernando Zamith, autor de Vilar de Mouros — 35 Anos de Festivais, a primeira iniciativa de António Barge para dinamizar a aldeia foi um festival de folclore em 1965, sucedido por uma edição mais definitiva em 1968, já com a designação de Festival Vilar de Mouros — “Abrindo as portas ao turismo”. O cartaz era eclético, desde Shegundo Galarza a José Afonso. “No entanto, as ambições do dr. António Barge eram mais largas”, escreve o Diário de Lisboa. “Parou, por isso, em 1969, para se lançar decididamente no empreendimento de vulto que é o festival deste ano”. É um festival de música em Bethel, Nova Iorque, em agosto de 1969, popularizado no cinema pelo nome de Woodstock, que completa a visão do médico: o evento não podia ser somente um compêndio variado de bandas, deveria constituir um ideal utópico, uma manifestação de liberdade da juventude portuguesa, amordaçada a uma ditadura interminável.

O médico é insistente e persuasivo, um a um, convence a família e amigos a mover montanhas: o camarada das finanças de Caminha trata da bilhética; o primo militar gere a logística; os vizinhos albergam os músicos -- só da Banda Sinfónica da GNR são cem; a filha é a tradutora; a mulher decora o palco com flores do campo; e quem mais quiser ajudar, seja a carregar tralha ou a virar frangos, não se faça rogado.

“Ninguém acreditava na iniciativa do dr. Barge”, denota o Século Ilustrado, que aponta a Câmara de Caminha como a parte desinteressada — “opunha-se à entrada de milhares de pessoas (para mais, de aspeto estranho)”. “Há inveja. Aliás, creio que há em todo o país”, desabafa o médico. “Considera-se isto como ostentação e, no nosso país, tudo que é inédito é estranho”. O investimento de 2500 contos é “toda a fortuna da família Barge”, está em jogo um tremendo sacrifício pelo “progresso e expansão da região onde nasceu”. O médico é insistente e persuasivo, um a um, convence a família e amigos a mover montanhas: o camarada das finanças de Caminha trata da bilhética; o primo militar gere a logística; os vizinhos albergam os músicos — só da Banda Sinfónica da GNR são cem; a filha é a tradutora; a mulher decora o palco com flores do campo; e quem mais quiser ajudar, seja a carregar tralha ou a virar frangos, não se faça rogado.

Em antecipação do primeiro fim de semana, interroga-se o Diário de Lisboa: “Enfim, um Festival que promete o que mais nenhum até agora prometeu. Cumprirá?”. Ninguém conseguia responder com segurança. O mês de agosto parecia certeiro, a coincidir com as férias dos portugueses. No entanto, férias em 1971 era um conceito totalmente diferente: segundo o Gabinete de Estudos e Planeamento da Direção Geral do Turismo, em 1970, 88% da população não teve qualquer período de férias. Escreve a revista Flama: “As férias são, ainda, algo a conquistar para mais de metade da população portuguesa”. E a confirmação de um astro internacional, Elton John, não garantia que a juventude portuguesa estivesse disposta a viajar intermináveis quilómetros e pagar 50 escudos pelo bilhete. Aliás, concertos de atrações internacionais em Portugal contavam-se pelos dedos: em 1971 são os brasileiros Roberto Carlos, Jair Rodrigues e Elza Soares, a banda infantil espanhola La Pandilha, os britânicos Mungo Jerry, e um punhado de bandas incógnitas — “só são conhecidas no seu bairro”, graceja a revista Mundo da Canção.

António Borge fotografado na edição de 1982 do festival (arquivo de Isabel Barge)

No primeiro fim de semana soa o alarme. O Diário de Lisboa noticia uma “quase total ausência de público” e o Século Ilustrado descreve um cenário “economicamente desastroso”. António Barge tinha programado os dois primeiros dias ao detalhe, “pago do seu bolso”: a “estreia mundial da obra sinfónica de Joly Braga Santos, ‘D.Garcia’, escrita sobre poemas de David Mourão-Ferreira e Natália Correia”; a Banda Sinfónica da GNR; o Coral Polifónico de Viana do Castelo; o bailado com direção de Bento José da Câmara; encenação de Álvaro Benamor; a estreia da “Sinfonia Concertante” de Victorino D’Almeida inspirada em “temas minhotos”, com Olga Prats ao piano. E estes 238 artistas em palco apresentam-se para pouco mais de mil pessoas. Século Ilustrado:

O festival preparado durante três anos, o dinheiro arriscado, o pouco público, a hostilidade das gentes”. Barge desespera: “A minha mulher até foi para a cama com desgosto”

“A população da aldeia estava revoltada contra os cabeludos”

Nas primeiras horas do fim de semana seguinte, a paisagem permanece plácida: “Povoação calma e pacata, totalmente rural. Banhada pelo Coura, que desliza suave e sem problemas para o Minho”. E subitamente, pé ante pé, começam a chegar peregrinos de todas as direções, em devoção a dois dias de “Música Moderna”, com tendas de campismo às costas, espalham-se pelos terrenos baldios, à sombras das árvores, é uma gente diversa de cabelo solto e desgrenhado, de hot pants e manga-cava, chapéus de cowboy e cigarradas. Escreve a Flama: “Uns com as suas roupas multicolores, bizarras, outros de tronco nu ou com fitas coloridas prendendo o cabelo”.

A organização distribui panfletos para sensibilizar os motoristas a darem boleia aos peregrinos — “as estradas que dão para Vilar de Mouros estiveram cheias de dedos apontados”. Ao Jornal de Notícias, Celina Cabral, estudante da Faculdade de Letras, justifica o que move esta multidão: “Não veio exatamente pelo festival em si, veio para se libertar da cidade. É a sua forma de estar em viagem”.

Ao anoitecer, o bar-restaurante esgota os recursos: “100 mil carcaças, 10 mil salsichas, 500 quilos de chouriço, 50 presuntos, etc”. Os “reforços alimentares” são acionados, sucede é que as aparelhagens e os holofotes causam um curto-circuito na padaria que “preparava 50 mil pães”.

“Foi uma invasão”, confirma Isabel Barge. “E Caminha que podia ter-se preparado para ganhar dinheiro, para receber os viajantes, fechou tudo, as portas encerraram-se”. Os restaurantes e cafés de Caminha fecham com receio da perversidade da juventude, uma receção gelada, como atesta o relatório do “elemento informativo” da PIDE:

A população da aldeia, e de toda a região, até Viana do Castelo, a uns 30 km de distância, estava revoltada contra os ‘cabeludos’ e alguns até gritavam de longe ao passar ‘vai trabalhar’. Foram vistos alguns a comer com as mãos e a limparem os dedos à cabeleira. Viam-se cenas indecentes na via pública, atrás dos arbustos e à beira da estrada. Em Viana do Castelo dizia-se que os ‘hippies’ tinham comprado agulhas e seringas nas farmácias da cidade.”

Nas margens do Coura, uma grade de arame delimitava o espaço do recinto, “vasto e bordejado por eucaliptos”, centrado num “gigantesco palco” de madeira coberto por uma lona que ninguém se lembrou que deveria ser impermeável. Ao anoitecer, o bar-restaurante esgota os recursos: “100 mil carcaças, 10 mil salsichas, 500 quilos de chouriço, 50 presuntos, etc”. Os “reforços alimentares” são acionados, sucede é que as aparelhagens e os holofotes causam um curto-circuito na padaria que “preparava 50 mil pães”. O PIDE acompanha o caos, com a habitual liberdade poética:

Toda aquela multidão de famintos, sem recursos para adquirir géneros alimentícios indispensáveis, como se de uma praga de gafanhotos se tratasse, se lançou sobre as hortas próximas colhendo batatas e outros produtos hortícolas, causando assim, grandes contrariedades aos seus proprietários, muitos deles de débeis recursos económicos.”

E no meio da algazarra, convém não esquecer, fez-se música, pelo menos para quem a ouviu: “A aparelhagem que estava em Vilar de Mouros era uma coisa utópica, aquelas cornetas de feira espalhados pelo recinto com uma mesa de som com pouco mais de dois canais”, recorda-nos José Cid, líder da banda revolucionária Quarteto 1111. “O som era uma coisa medonha. Ouvia-se vagamente”.

Organizar um festival de verão em 1971 era aparentemente tão propício e exequível como fazê-lo agora, em plena pandemia (imagens do arquivo pessoal de Isabel Barge)

Um sorteio dita a ordem das bandas portuguesas e a fava calhou aos Sindicato. José Jorge Letria, em reportagem para o Diário de Lisboa, notou que o “novo vocalista” ainda não está “devidamente integrado”. Este vocalista, um rebelde incorrigível de vinte anos, chamava-se Jorge Palma. O músico tinha acabado de regressar do Algarve onde andava entregue à sorte, é arrastado de volta para Lisboa pelo pai e convidado a integrar os Sindicato, e certo dia, um tal Dr. Barge desafia esta nova banda, por 100 contos, a tocar dois dias consecutivos em Vilar de Mouros. Seria o início do fim para os Sindicato — “O conjunto Sindicato, composto por nove elementos e que há meses atuou com relativo sucesso em Vilar de Mouros, sendo por muitos considerado o melhor agrupamento do género, dissolveu-se definitivamente”.

E quem dá nas vistas nos Sindicato não é Jorge Palma, mas o saxofonista, um tal de João Maria Centeno Gorjão Jorge. “Ainda não tinha pensado muito sobre a minha designação”, recorda-nos divertido Rão Kyao, então um saxofonista desconhecido, que já andava por todo lado com uma flauta de bambu, mais por uma superstição bucólica que especial afinco. “Os Sindicado são formados pelo Vítor Mamede”, explica, notando que havia um declarado “braço no jazz”, “inspirados por grupos como o Chicago e Blood, Sweat & Tears, aquela fusão entre rock e jazz.” Hoje, mesmo para este titã da música popular portuguesa, soprar o instrumento diante daquele imenso povo foi um instante que nunca mais esqueceu: “Aquilo estava uma multidão. Eu raramente na minha vida toquei para tanta gente. E aqueles concertos fizeram uma bola de neve, criou-se um certo tipo de libertação de uma sociedade completamente fechada”.

Em Vilar de Mouros, Rão Kyao é servido em dose dupla: além dos Sindicato, ainda é o saxofonista dos The Bridge — “mais virados para o jazz”. O capataz do grupo era o músico norte-americano Kevin Hoidale, que ainda liderava a banda de prog rock Objectivo. E na guitarra dos Objectivo estava outro estrangeiro radicado em Portugal. “Era um festival bastante mais pequenino em comparação com o que se fazia na Inglaterra, tivemos que levar o próprio som”, conta-nos Mike Sergeant, recordando ainda que ficaram albergados, assim como tantos outros músicos, em casas vizinhas da família Barge.

“Submetemos à censura e não podíamos cantar nada do álbum do Quarteto 1111, então foi praticamente tudo em inglês”, revela José Cid, o vanguardista da pop em português a quem a Direção do Serviço dos Espetáculos proibiu qualquer canção com mensagem em palco. “Ainda conseguimos cantar ‘A Lenda de El-Rei D. Sebastião’, com o poema um bocado alterado para poder passar à censura”.

Na hora do espetáculo, o palco dos Objectivo é invadido por dois miúdos que derrubam uma pilha de colunas, Kevin Hoidale “de forma agressiva pediu a expulsão de estranhos do palco”, o público apupa e o líder da banda reage em desafio, garantindo que estão prestes a ouvir “a melhor música que existe em Portugal”. O desafio provocatório seguinte em palco, de uma banda ainda mais atrevida, é de Tony Moura, vocalista dos Psico, em alto e bom som: “Do you like marijuana?”.

Um coro espontâneo e uma censura programada

Os bastidores eram um alvoroço. Em protesto, Paulo de Carvalho recusa-se a subir ao palco, discorda violentamente da distribuição dos cachets, deixando os Pentágono agarrados, que sobem ao palco sem o vocalista. Os veteranos Chinchilas, “com a técnica indiscutível de Filipe Mendes” — ou melhor, Phil Mendrix — aquecem a plateia, que agita-se ainda mais com a entrada em cena dos Pop Five Music Incorporated, banda do Norte a jogar em casa, com Miguel Graça e Moura ao leme. O ambiente esmorece com uma banda de Barcelos — “tão flagrante era a má qualidade” — e os deslocados Contacto — “alguns dos melhores solistas de jazz portugueses”. No geral, sem desaforos, a reação do público é comedida. Somente os Quarteto 1111, quem mais, conseguem suster um breve instante solene, de músicos e plateia em uníssono, em desafio ao regime castrador, um coro espontâneo por uma nação melhor: “Glória Glória Aleluia”.

A cena: “José Cid de balandrau colorido, barba rala à Mephisto e chapeú negro, todo sorridente e feliz”. E quando começa a cantar, surpreendentemente, é um repertório inteiramente inglês, desde “Back To The Country” ao cânone gospel de “Glória Glória Aleluia” — este último, com a multidão em coro, é considerado o definitivo sacramento desta primeira comunhão em Vilar de Mouros. No entanto, a setlist anglo-saxónica não era uma liberdade criativa, pelo contrário: “Submetemos à censura e não podíamos cantar nada do álbum do Quarteto 1111, então foi praticamente tudo em inglês”, revela José Cid, o vanguardista da pop em português a quem a Direção do Serviço dos Espetáculos proibiu qualquer canção com mensagem em palco. “Ainda conseguimos cantar ‘A Lenda de El-Rei D. Sebastião’, com o poema um bocado alterado para poder passar à censura”. Segundo as normas da Direção-Geral de Informação, o repertório das bandas tinha que ser inteiramente aprovado pela Direção do Serviço dos Espetáculos, através da Comissão de Exame e Classificação dos Espetáculos. Na prática, era mais um poder censório do Estado Novo.

As reportagens do Diário de Lisboa sobre os concertos de Manfred Mann e Elton John

“Entretanto é notória a falta de alguns dos mais significativos representantes da nova música portuguesa”, considera o Diário de Lisboa, que não entende a ausência dos renovadores da música popular portuguesa, desde José Afonso a Adriano Correia de Oliveira, que subiram ao palco na edição modesta do Festival Vilar de Mouros em 1968. Porém, esta ausência, acredita-se, poderá ter sido estratégica: segundo esta teoria, António Barge não convida os cantores mais truculentos aos olhos do regime para impedir qualquer entrave burocrático de última hora, sobretudo da Direção do Serviço dos Espetáculos, responsável pela emissão das licenças de concertos. No ano anterior, por exemplo, os radialistas José Manuel Nunes e José Afonso são autuados pela Direção do Serviço dos Espetáculos, e cercados pela GNR a cavalo, ao tentarem organizar uma série de concertos nas Caldas da Rainha. E pior, também em 1970, no Estoril, José Cid é o primeiro a organizar um festival inspirado em Woodstock, unindo rock’n’roll a cantores de intervenção, que é interrompido em cima da hora por agressões a eito da Polícia de Choque de Oeiras. E José Cid é fichado pela PIDE como organizador de um festival que nunca aconteceu.

Em 1971, seja pelo isolamento do evento, tão distante de Lisboa, pelos artistas ou por qualquer milagre, além da proibição das canções do Quarteto 1111, não se conhece um registo extraordinário de interferência do regime no Festival Vilar de Mouros. “Mas a nossa casa estava diariamente invadida pela PIDE”, sublinha Isabel Barge, que apesar de um punhado de pressões da polícia política, consente que até hoje não entende “como é que o meu pai conseguiu ultrapassar todas as barreiras para levar avante o festival.”

“Fui acordado pelo terrível e ensurdecedor barulho de um galo de madrugada”

A noite arrefece em Vilar de Mouros, as bandas portuguesas esgotaram a meia hora de apresentação e, nos bastidores, “um pouco pedrados”, depois do jantar na Pensão João Ratão, o único estabelecimento aberto em Caminha, os cabeças de cartaz do primeiro dia, Manfred Mann, exigem ser pagos antes de subirem ao palco. “Recordo ter ficado a dormir numa quinta e ser acordado pelo terrível e ensurdecedor barulho de um galo de madrugada”, lembra-nos o próprio músico sul-africano que dá nome à banda, Manfred Mann, naquele momento a testar uma nova formação depois do zénite de popularidade na década anterior, de uma sucessão de canções que acompanharam a vertiginosa cena pop londrina, desde “Do Wah Diddy Diddy” a “Pretty Flamingo”.

No final do concerto, Manfred Mann desabafa à Mundo da Canção e ao Diário de Lisboa que “a organização é francamente deficiente” e “que está tudo improvisado”. E nem por acaso, sem qualquer meio de transporte, são os jornalistas de serviço, Jorge Cordeiro e José Jorge Letria, que levam a banda para o merecido descanso numa pensão em Caminha.

Cinco décadas depois, Manfred Mann não recorda ao detalhe aquela noite, admitindo que naquele momento, em 1971, estavam “pedrados” e não tinham “qualquer ideia que era o primeiro grande concerto durante a ditadura”. E a banda trazia na bagagem um aparelho alienígena em terras do fado, um sintetizador Moog, “ante o olhar mais ou menos basbaque dos muitos que afluíam ao palco”, narra o Diário de Lisboa, que aplaude um concerto imaculado coroado por “Mighty Quinn”, original de Bob Dylan — “Quando os Manfred Mann apareceram foi o delírio”. “A organização era muito estranha”, lembrou o músico sul-africano noutra entrevista há oito anos, a esta mesma pessoa que vos escreve. “Na hora do concerto, estava tudo vestido a flower power, e quando subi para o palco um segurança gigante não me deixou entrar e disse: ‘onde é que acha que vai?’ Conseguiu atrasar 15 minutos o concerto”.

No final do concerto, Manfred Mann desabafa à Mundo da Canção e ao Diário de Lisboa que “a organização é francamente deficiente” e “que está tudo improvisado”. E nem por acaso, sem qualquer meio de transporte, são os jornalistas de serviço, Jorge Cordeiro e José Jorge Letria, que levam a banda para o merecido descanso numa pensão em Caminha. Enquanto no palco, José Cid motiva os colegas a uma sessão de improviso até às seis da manhã, afinal o meio de transporte não era um problema para o Quarteto 1111: a banda estava acampada na margem do rio Coura. José Cid: “Dormimos ao relento, éramos um grupo pobrezinho, um cigarrinho a dividir por todos, uma passinha para cada um”.

Elton John: “O meu caminho até esta posição foi duro e árduo. Consegui-o com esforço”

“Dezoito mil jovens estão, desde ontem, em Vilar de Mouros, obscura e (até aqui) ignorada aldeia do Alto Minho, que a vontade de um homem (o dr. António Barge) transformou em capital portuguesa da música pop”. O Diário de Lisboa relata os mil habitantes da aldeia finalmente rendidos à algazarra: “Subitamente, resolveram aderir à festa: inúmeros carros de bois pararam no local do espectáculo para que os camponeses pudessem eles também assistir ao festival da sua aldeia”. E a PIDE descreve uma noite de “maior promiscuidade”, com milhares de pessoas “embrulhadas em cobertores” ainda no recinto. A organização não deixa nenhuma pedra por virar, nenhum esperto atrás do arbusto, querem ficar que paguem mais 50 escudos, logo hoje, dia do “expoente máximo da música anglo-americana”, Elton John.

Elton John live at Shibuya Kokaido

Elton John em palco em 1971

Getty Images

“Quisemos trazer os Rolling Stones, Cat Stevens,ou outros. Não foi possível”, confessa Barge à Flama, que contrata o pianista das canções arrebatadoras por uma unha negra — Elton John atravessava uma repentina ascensão mediática às custas de um clássico instantâneo: “Your Song”. “Não foi fácil a vinda de Elton John a Portugal”, explica à revista Disco, Música & Moda. O inglês começa por recusar, tentam Deep Purple ou Blood, Sweat & Tears e decidem-se — imagine-se! — pelos Black Sabbath de Ozzy Osbourne, que quase assinam contrato até um “telefonema milagroso” finalmente convencer Elton John. E o cabeça de cartaz do festival é confirmado apenas um mês antes, com o elenco do dia 8 de agosto composto pelas mesmas bandas portuguesas que tocaram no dia anterior, salve um acrescento insólito: a banda infantil Mini Pop, dos catraios Eugénio, Pedro e Mário Barreiros, que voltariam aquele palco onze anos depois com os Jafumega.

Entre a plateia, Victorino D’Almeida comenta ao Diário de Lisboa que Elton John “não deve ser observado de um ponto de vista estritamente musical, ele é espetáculo, o esforço, a técnica e a angústia de não sentir o público preso”. Se nos bastidores entra mudo e sai calado, em palco o músico é um sensacional escarcéu, martela o piano extasiado, suplica de joelhos com as pontas dos dedos nas teclas do Bechstein, agita os “calções de veludo lilás”, salta para o banco e rodopia, atiçado pelo baixo de Dee Murray e a bateria de Nigel Olsson. Era exatamente o mesmo trio do emblemático álbum ao vivo 17-11-70, que estava em Estocolmo no mês anterior a Vilar de Mouros, e há quem jure a pés juntos que Elton John nunca esteve melhor. Em Caminha, segundo os relatos, as versões foram próximas de 17-11-70, desde a libidinosa “Honky Tonk Woman”, dos Rolling Stones, ao épico sulista de vinte minutos “Burn Down the Mission”. Resume a Mundo da Canção: “É tudo que se pode esperar de um mito — é dramático e irradiante de vivacidade”.

O cenário do último fim de semana de Vilar de Mouros foi totalmente diferente: uma casa razoavelmente composta, sossego, lugares marcados, cadeiras e mantinhas. O público-alvo era da meia-idade para cima, gente da terra e arredores, nesta época não era todos os dias que a maior voz portuguesa, Amália Rodrigues, cantava em Portugal, ainda mais no Alto Minho.

E Elton John despede-se da multidão de dezoito mil almas, famintas de liberdade e atrevimento, e dirige-se hesitante a Maria Amélia Barge. Não consegue precisar, será que esta gente apática gostou do concerto? O público português reagia como podia, à cautela, a repressão do regime estava ao virar da esquina, a maioria desta plateia nunca tinha vivido em democracia, quanto mais um festival de verão — “uma desmedida, quase religiosa atenção. O público-multidão foi calmo, quieto. Não vibrou”. Os jornalistas transparecem particularmente desiludidos, contavam com qualquer escândalo sumarento, violência, ácidos, no mínimo um rabo ao léu, e saem do recinto de mãos a abanar: “Todos pareceram ficar desiludidos com a sua própria passividade”. Sem uma aclamação estrondosa, Elton John não retorna para o encore, ou como sugere o Diário de Lisboa: “É que cumprira o contrato e os 700 contos já estavam ganhos”. O suplemento satírico do jornal, A Mosca, editado por Luís de Sttau Monteiro, chega ao ponto de retratar o piano de Elton John com dois contabilistas a calcular os alegados 700 contos de cachet.

No final, esgotado, o músico inglês cede uma breve entrevista nos bastidores e responde aos críticos, numa cabana atrás do palco, nos confins de Portugal, depois de meses de estrada e canções:

Considero-me um pianista sofrível. Realizo-me como compositor e autor. Isso sim, é o que verdadeiramente sou. O meu caminho até esta posição foi duro e árduo. Consegui-o com esforço. Todos têm influências. Eu tenho as minhas. Adapto as formas eruditas às populações. Não tento a alienação. Busco a dignidade. Estou cansado e quero repousar”

Vilar de Mouros: um símbolo de liberdade

O cenário do último fim de semana de Vilar de Mouros foi totalmente diferente: uma casa razoavelmente composta, sossego, lugares marcados, cadeiras e mantinhas. O público-alvo era da meia-idade para cima, gente da terra e arredores, nesta época não era todos os dias que a maior voz portuguesa, Amália Rodrigues, cantava em Portugal, ainda mais no Alto Minho. O poeta Pedro Homem de Melo abre a festa e a fadista arrebata a plateia com as suas últimas canções, desde “Meu Amor é Marinheiro” de Manuel Alegre a “Oiça Lá Ò Senhor Vinho” de Alberto Janes; e a imprensa que acompanhava fervorosamente cada passo do festival, desdenhou propositadamente os dias finais do certame. Amália Rodrigues representava — acreditavam — tudo que estava errado em Portugal.

O cartaz desenhado por António Barge criou inconscientemente um tremendo fosso cultural, geracional e mediático, entre o fim de semana de música moderna — os jovens e resistentes — e o fim de semana do fado — os velhos e fascistas. Quem sofre os danos colaterais é o Duo Ouro Negro, o grupo musical português de maior sucesso, encarregue de fechar o Festival Vilar de Mouros. E Raul Indipwo e Milo MacMahon não recebem a encomenda de ânimo leve, decidem apresentar pela primeira vez, com pompa e circunstância, um dos álbuns fundamentais da música popular portuguesa, Blackground, que pretendia precisamente espelhar a ebulição da contracultura do Woodstock em Portugal — e ao contrário das restantes bandas, Raul e Milo estiveram mesmo em Woodstock. Consequentemente, a apresentação de Blackground não tem a atenção, sequer público, que os dois músicos mereciam. Qual seria a história da música popular portuguesa se o Duo Ouro Negro — e até Amália Rodrigues, a cantar canções do esquerdista Manuel Alegre — estivessem em palco no fim de semana que acorreu a juventude portuguesa? E mais, qual seria a nossa história se o Festival Vilar de Mouros, um acontecimento libertário de massas, uma revolução de agosto a três anos de abril, fosse transmitido em todas as casas de Portugal?

O evento não podia ser somente um compêndio variado de bandas, deveria constituir um ideal utópico (imagens do arquivo pessoal de Isabel Barge)

“O dr. António Barge é, afinal, à escala nacional, com todas as reservas que isso pressupõe, o mesmo que Michael Lang foi em relação a Woodstock”, considera José Jorge Letria num ensaio dedicado aos festivais de verão. Uma diferença capital do médico minhoto com cofundador do Woodstock é que Michael Lang e os seus parceiros conseguiram assegurar a filmagem do festival, que garantiu não só um estrondoso sucesso financeiro, como a imortalidade do evento, que passou a representar o espírito de uma época. É certo que em Portugal não existia um estúdio de Hollywood para produzir um filme sobre o festival, mas havia seguramente uma estrutura que poderia salvar Vilar de Mouros de uma memória distante: a Rádio e Televisão de Portugal.

“Inicialmente, a RTP entusiasmou-se com o projeto, afinal tinha um pouco de tudo, tinha música erudita, pop, rock, até a Amália”, recorda Isabel Barge, que chega a ser entrevistada para a RTP ao lado do pai e do irmão, até serem informados que não só essa entrevista não iria ao ar, como não haveria cobertura para qualquer concerto. “Evidentemente que foi uma deceção enorme”. Alegadamente, é o próprio Ramiro Valadão, presidente do Conselho de Administração da RTP, escolhido a dedo por Marcello Caetano, que decide interferir e proibir qualquer alusão ao Festival Vilar de Mouros. “Porque não se prestou a filmar parte do que se passou em Vilar de Mouros?”, alerta o Diário de Lisboa; e a Mundo da Canção acrescenta que nem se pedia uma transmissão integral, “bastava que a televisão portuguesa se tivesse interessado um pouco mais por esta manifestação musical que, apesar de tudo, deve ter sido a mais importante, no seu conjunto, que jamais se fez em Portugal”. A ausência foi ainda mais alarmante por esta mesma emissora, em 1971, ter batido o ponto no Festival da Canção da Guarda e Festival da Canção da Figueira da Foz: “RTP que esteve presente na Guarda e na Figueira da Foz para transmitir dois ridículos certames de cantaroleiros, não enviou um único operador à aldeia minhota”.

O Vilar de Mouros retornaria somente onze anos depois, em 1982, desta feita por iniciativa da própria Câmara de Caminha, com o aval de António Barge, que continuou a acompanhar todas as edições até à sua morte, em 2002.

Se a RTP resolveu o problema ao ignorar o festival, a igreja católica decidiu ir mais longe, por iniciativa do pároco de Vilar de Mouros: António Barge e a família são excomungados. E como se não bastasse, um grupo de seminaristas de Braga tenta ainda acampar no recinto para uma defumação purificadora. “Não sei se voltarei a meter-me noutra, caso não haja mais ajudas”, desabafa Barge ao Século Ilustrado, a fazer contas ao prejuízo: entre 500 a 700 contos de défice. “Será difícil continuar a realizar estes festivais. De futuro, só com a colaboração das entidades oficiais”, comenta à Flama, sendo que a Secretaria de Estado da Informação e Turismo subsidiou uns míseros 30 mil escudos. E no ano seguinte, apesar de uma certa difamação nas conversas de café — que Barge era um milionário comunista, que vendia armas, que estava preso — o médico anuncia estar a tentar Bob Dylan para a edição do festival em 1972; e dois anos depois, em 1974, que estava a organizar um festival para aclamar o 25 de Abril.

O Vilar de Mouros retornaria somente onze anos depois, em 1982, desta feita por iniciativa da própria Câmara de Caminha, com o aval de António Barge, que continuou a acompanhar todas as edições até à sua morte, em 2002. “Ele sempre acreditou na possibilidade de uma nova harmonia, dizia que a aquisição de cultura é um fator de conquista de liberdade”, reflete Isabel. “E só assim se entende 71, que nasce muito teimosamente, que encarna simbolicamente formas veladas de oposição, de resistência, e muita marginalidade, dentro de um contexto de festa”.

Hoje, o sonho de António Barge vive. A aldeia de Vilar de Mouros está cravada no imaginário português. Mundo da Canção:

Ao mesmo tempo que se rompia a pacatez e o bucolismo de uma pequena aldeia minhota, rompia-se também a indiferença e o setorismo que, de há muito, certos indivíduos pessoais e coletivos tentavam lançar sobre a pop music. Vilar de Mouros é hoje um símbolo, uma prova irrefutável”

A canção popular moderna em Portugal comprovou que também acreditava no rompimento da estagnação social e política, que almejava um ideal de harmonia no ritual sacrossanto de um palco e uma plateia. E este símbolo é tão relevante em 1971, sob uma ditadura e uma indústria musical incipiente, como hoje, em agosto de 2021, sem qualquer festival de verão que nos salve.

“O festival levou três anos a organizar, muita canseira e horas de sono. Foi um brinde à juventude. Ela merece-o, porque adere, porque tem um ideal e vive intensamente esse ideal” (António Barge, Mundo da Canção).

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