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Sobre trap e boom-bap (sub-géneros do hip hop) e a vontade de rimar a vários andamentos (mais rápidos ou mais lentos), dizia o rapper português Holly Hood há uns meses:
“Se eu tenho uma paleta de cores enorme, porque é que me vou meter armado em Picasso no período azul a pintar só com azuis, dread? Não… deixem-me pintar com as cores todas”.
O que é que isto tem a ver com os Linda Martini, banda rock nascida em 2003 que se prepara para editar (já na próxima sexta-feira, dia 16) o quinto álbum, a que se somam três EP? Quase nada (bom, os Run the Jewels estavam na playlist durante as gravações) e quase tudo. Afinal, não se mistura rock e fado, Fugazi e António Variações, Fela Kuti e Afrobeat e Tim Maia e funk em vão — e os Linda Martini de hoje “podem ser” tudo isso, “sem nunca soarem a outra coisa que não eles”. Garantia dada pelos próprios.
Os anos passaram e o estatuto cresceu — vieram os discos, a ligação a grandes editoras, a estreia em nome próprio no Coliseu — mas Cláudia Guerreiro, André Henriques, Pedro Geraldes e Hélio Morais ainda são “putos bons”. A maturidade trouxe muita coisa, o apuro nas letras e a “aprendizagem” que cada álbum propicia. E o novo disco (homónimo), sendo mais do que uma súmula do passado, só podia ser feito agora “por termos feito os outros todos para trás”, explica Hélio (e os restantes concordam), à conversa no estúdio Haus, em Santa Apolónia, onde os Linda Martini ensaiam (numa sala onde só uma bicicleta destoa dos instrumentos que se amontoam por todos os lados) e onde gravaram o álbum anterior, Sirumba.
Desta vez, o quarteto quis trocar Lisboa pela Catalunha, para trabalhar com o produtor Santi Garcia e evitar que a proximidade com Makoto Yagyu e Fábio Jevelim (músicos e produtores, que montaram o estúdio Haus e que são colegas de Hélio na banda PAUS) pudesse interferir: “Eles não só têm muito à vontade para nos dizer que determinado riff é uma merda como nós temos à vontade para lhes dizer: ‘tu é que és uma merda, este riff é o melhor que eu já fiz'”, aponta o baterista.
A conversa acontece a seguir a um ensaio para os concertos de apresentação do novo álbum que se aproximam, no Lux Frágil em Lisboa (em dose dupla, na próxima quinta e sexta-feira, 15 e 16, já esgotados), no Hard Club do Porto (dia 23), no auditório de Lousada (24) e em Ílhavo e Loulé (respetivamente a 3 e 9 de Março).
Fala-se do novo disco, tareia rock mais intensa do que a do “mais polido” Sirumba (2016) mas com espaço para experimentação (repare-se no tom épico de “Se Me Agiganto” e nas divagações instrumentais de “Boca de Sal”). “O chão que pisas sou eu”, “O nosso amor é um combate” e “Parecemos putos! Não temos aulas amanhã!” são mantras que não se esquecem, mas não faltam novos versos para adolescentes e adultos melómanos colarem nas paredes dos quartos.
“Nem tudo é preto no branco, sou bandido e sou santo” (“Gravidade”)
“Quero tudo ao mesmo tempo” (“Boca de Sal”),
“Cemitério dos prazeres, olha como a gente foge. Neste tédio, se quiseres, ainda me apanhas hoje” (“Semi Tédio dos Prazeres) “Falo da bola e nem vi o jogo. Lá no Governo está tudo gordo. A televisão diz que o país ardeu mas o PIB sobe e aponta ao céu. Fico só a ver acontecer” (“Cor de Osso”)
O menu é longo e o bom rock está para durar.
“Tentámos fugir ao mais ‘redondo’ Sirumba”
O disco anterior, Sirumba, já explorava outros andamentos, outros acordes. A ideia agora era aprofundar isso?
Cláudia Guerreiro (CG) — O ponto de partida é sempre fazer músicas novas, juntamo-nos para fazer isso e depois sai o que sair. Mas acho que é verdade isso do Sirumba, se calhar não foi uma intenção, mas acabou por acontecer, acabaram por se explorar outros ritmos, mesmo nas guitarras, mudaram-se os modos de tocar [começaram a tocar sem palheta] e isso acabou por ser também transportado para este, mesmo que nós neste não quiséssemos propriamente isso.
Pedro Geraldes (PG) — O ponto de partida acaba por ser o Sirumba porque foi o último disco antes deste e serviu para dar continuação nisso da parte rítmica — embora também tenhamos tentado fugir ao “redondo” que sentimos que o disco tinha, era uma coisa mais polida. Foi uma continuação mas também uma oposição no sentido de fazer algo mais cru, mais intenso quando é para ser intenso…
Hélio Morais (HM) — Acaba por ser uma mistura, ritmicamente há coisas que se pode ter ido tirar ao Sirumba mas depois fomos buscar também alguns ritmos se calhar do Casa Ocupada [0 segundo álbum, de 2010] e do Turbo Lento [o terceiro, de 2013] e misturámos as duas coisas. Este é um disco que só podia ser feito agora por termos feito os outros todos para trás.
É uma súmula do passado?
HM — Súmula não diria mas tem pontos de uns e outros discos que estão para trás. Ainda que não seja uma coisa muito consciente…
André Henriques (AH) — Só para completar o que eles disseram, que eu concordo em absoluto [risos]: demos nós as voltas que dermos, somos sempre os mesmos a fazer música. Acho que quando fazemos um disco novo, o anterior mostra-nos o terreno que já pisámos e aquilo que queremos pisar a seguir. Nunca há uma matriz que seguimos para um disco, mas de alguma forma o facto de fazer um disco novo faz com que procuremos outro ambiente, outro espaço, outra coisa por explorar. É óbvio que é sempre quase um jogo de espelhos com o que já fizemos atrás porque são as mesmas pessoas, mas acho que se nota que não nos repetimos, não fazemos sempre o mesmo disco. Tem-se falado muito do Casa Ocupada, penso que por causa da energia que esse disco tinha por oposição ao Sirumba. Mas lá está, não o podíamos ter feito se não tivéssemos feito o Sirumba antes porque cada disco é uma aprendizagem para o seguinte.
Essa tentativa de introdução de novas nuances é um truque para não se cansarem?
PG — Não é bem um truque, é uma reação à nossa própria música.
CG — É mais uma procura do que um truque.
PG — É tentar abordagens que nunca tentámos antes. Se formos ver, a tocar guitarra os dedos acabam por ter uma vida própria que muitas vezes não está a traduzir tanto o que está na nossa cabeça como aquilo que queremos fazer. É como se os dedos estivessem a fazer quase desenhos que já se habituaram a fazer. Por isso, ter outras abordagens permite desaprender e tentar fazer de outra forma.
HM — [Vira-se para os restantes] Não sei se acontece convosco, mas às vezes estou a ouvir os discos e há ritmos de bateria que não sei de cor, não os conseguiria cantar, mas sei tocá-los na perfeição. É estranho, como se fosse o corpo a comandar.
PG – Essa intuição às vezes pode ser boa, mas por outro lado podes repetir-te muito. Ainda por cima já temos cinco álbuns, se se vai fazendo as coisas sempre com o mesmo intuito, sem pensar muito, talvez possa haver mais repetição. Como já somos um bocadinho melhores músicos — não que sejamos excelentes, nunca procurámos muito a excelência na execução técnica — conseguimos experimentar coisas de que antigamente não éramos capazes, englobando isso na nossa linguagem.
[“Boca de Sal”:]
Às vezes há a ideia de que introduzir mudanças no som de uma banda pode colocá-la em risco. No vosso caso não tem acontecido…
HM — Se calhar estamos a falar para o público certo, para um público que partilha a nossa opinião de que é fixe mudar ou explorar outras coisas. Então, quando fazemos isso na música, não é visto de forma depreciativa, mas de uma forma saudável. Mas a reação também depende das pessoas, claro, porque também há aquela malta [fã do método] AC/DC…
PG — …que preferia que fizéssemos sempre a mesma coisa. Claro que gostamos que gostem de nós, mas ao mesmo tempo não gostamos de nos aborrecer com o que fazemos.
AH — Muitas vezes acho que há uma noção de que as pessoas querem que as bandas façam coisas diferentes, mas quando se arrisca e muda mesmo muito, às vezes vê-se que isso não é o que as pessoas querem. Quando estamos a pensar num disco novo não temos nenhum guia na cabeça, só nos começamos a preocupar com o que é que as outras pessoas dirão quando ele já está gravado, o nosso trabalho está feito e é só esperar que ele venha da fábrica para chegar a casa das pessoas. Voltando aos AC/DC, se calhar fizeram o mesmo disco a vida toda e toda a gente gosta deles como são. Depois há bandas como os Radiohead, que é sempre o exemplo elementar de bandas que se viram do avesso e se calhar alienaram alguns mas conseguiram muitos mais [fãs] e hoje em dia têm a exposição que têm. Eu diria que não somos uns nem outros, mas queremos sentir-nos motivados, ter aquele bichinho de miúdos que vão para a sala de ensaios e que estão excitados com a música nova e querem mostrar aos amigos a música que acabaram de fazer na sala. Isso continua a acontecer connosco e enquanto sentirmos que estamos a fazer uma coisa diferente, ou a estender e esticar aquilo que nos era possível fazer antes, acho que vamos continuar a fazer música.
CG — Acho que se há algum truque, na minha perspectiva, é fazer exactamente aquilo que nos apetece. O público é muito importante para a banda sobreviver — sobreviver enquanto coisa que existe e que as pessoas ouvem — mas mais importante do que isso é fazermos o que queremos. O público ou há ou não há, ‘não interessa’. Se calhar ele existe porque fazemos precisamente o que nos apetece. A parte em que acho que se deve pensar mais no público é em concerto porque isso é para quem lá está, não estamos a tocar para nós, estamos a tocar para as pessoas. Aí é importante equilibrar um bocadinho o que achamos que as pessoas vão gostar de ouvir com o que nos vai deixar felizes. Agora, quando fazemos um disco fazemo-lo para nós. Até agora, gostámos de contrariar aquilo que fizemos, ir procurando coisas novas ou diferentes, mas se um dia nos apetecer fazer três discos iguais também fazemos, ninguém nos proíbe. Não vale a pena mudar aquilo que se faz em função do exterior, até porque há logo uma grande probabilidade de falhar, depois nem se faz o que se queria nem o que o público queria.
As gravações? “Foi o Big Brother”
Quando lançaram o Sirumba disseram que foi o disco que demorou mais tempo a fechar — passaram um mês em estúdio. Neste, como foi?
HM — Gravámos em duas semanas. Neste disco fomos gravar para fora [Barcelona], portanto tínhamos de levar as coisas já bastante bem ensaiadas. Se bem que acho que nesse campo até estava relativamente equiparado ao Sirumba. O que houve de diferente foi que antes de gravar fizemos duas residências onde gravámos maquetes das músicas todas à excepção de duas, penso — se não me engano a “Se Me Agiganto” e a “Caretano”.
CG — E a “Quase se Fez uma Casa”, que nem existia.
HM — Depois ainda havia maquetes de outras que gravámos nas residências e não estão no disco. Tudo isto se calhar fez com que nos pudéssemos dar ao luxo de estar menos tempo em estúdio — as coisas foram muito pensadas, o produtor, que é o Santi Garcia, já tinha vindo da Catalunha aqui à nossa sala de ensaios para nos ouvir, já levou uma ideia muito concreta do som e de como queria gravar determinadas músicas [em estúdio], houve esse trabalho prévio. No Sirumba, como tínhamos mais tempo de estúdio — porque não tínhamos as despesas inerentes a uma deslocação para fora do país — acabámos por estar mais relaxados .
PG — Neste disco sentimos mais a pressão na parte final das gravações, chegou uma altura em que começámos a pensar: não temos assim tanto tempo. Mas fazer em menos tempo não é mau, acho que serviu para não repensar tanto o disco, deu-nos um desprendimento maior.
Como é que foram as gravações em Espanha?
HM — Foi o Big Brother… Nas duas residências que fizemos, o Ângelo Lourenço e o João Tereso, que são técnicos nossos, estiveram presentes. Estavam muito dentro do processo e também estiveram na Catalunha — o Ângelo o tempo todo, o João foi lá ter. Foram muito importantes para que as coisas pudessem rolar da forma mais conveniente e que se conseguisse fazer tudo a tempo.
PG — Estivemos numa primeira casa a gravar a bateria, numa quinta que é de um casal ou de um rapaz que já passou por bandas de hardcore lá de Barcelona e que montou um estúdio numa quinta onde faz outro tipo de produções, de vinho…
CG — … Equitação.
PG — Tinha cavalos, era uma coisa meio bucólica. Fomos lá para o meio do campo e foi muito fixe. Estávamos a gravar as partes de bateria na casa, acordávamos, tínhamos logo a bateria montada…
AH — Era a sala onde fazíamos as refeições diárias, aliás…
PG — Sim, foi muito nessa onda. Depois fomos para o estúdio do Santi Garcia, já mais tradicional. Ficava num sítio se calhar ainda mais suburbano do que nos habituámos na linha de Sintra…
HM — Era uma espécie de Odivelas em Quarteira. Já tínhamos gravado aqui [nos estúdios Haus] com o Makoto e o Fábio, mas não o quisemos repetir porque eles são demasiado próximos de nós, não só têm muito à vontade para nos dizer que determinado riff é uma merda como nós temos à vontade para lhes dizer “tu é que és uma merda [riem-se], este riff é o melhor que eu já fiz”. Isso pode não ajudar. Queríamos alguém que fosse boa gente — e o Santi eu já conhecia, ele já tinha misturado um disco nosso e masterizado dois — mas que tivesse muita corda para esticar ainda connosco, que sendo relativamente próximo em termos de influências e passado não era próximo do ponto de vista íntimo. Qualquer opinião dele chegava-nos do zero, sem qualquer preconceito nosso ao recebê-la, não é como eu saber que o André gosta mais de azul, ele dizer-me que esta música devia ser azul e eu pensar “porra, lá está este gajo com o azul”.
PG — É. Os estúdios eram muito humildes, nós só fomos parar à Catalunha porque quisemos que fosse ele a produzir o disco. O estúdio dele é normalíssimo…
CG — Mas pequenino, é uma cave sem janelas, não tem luz…
PG — Ainda tinha uma sala extra, mas era tudo muito pequeno. Acho que quem lá vai, vai por causa dele — e ele já gravou várias bandas, de toda a Espanha e internacionais. Foi um ambiente Big Brother, como eles disseram, já o tinha sido nas residências. Acho que nunca passámos tanto tempo juntos — ensaiamos regularmente, damos concertos, fazemos alguns quilómetros juntos na carrinha, mas esta ideia de dormir todos os dias, fazer todas as refeições juntos, ver quem é que cozinha, quem é limpa, quem é o mais desleixado…
E quem era?
CG — Ia mudando, um dia era um, outro dia era outro.
HM — Acho que tinha tudo para correr mal, mas correu incrivelmente bem. Também já nos conhecemos há muito tempo, sabemos as manias e os desejos de cada um e ninguém pisa os calos de ninguém. Acho que não houve uma discussão…
CG — Há discussões mas são coisas que se ultrapassam, quer dizer… não acabámos. [ri-se]
AH — Há quem tenha o imaginário de músicos de rock a destruir quartos de hotéis, extintores, mas não foi nada disso… era uma rotina de trabalho, só que em vez de ir para o escritório íamos para um estúdio de música, tocar, gravar, dar o nosso melhor, parar para almoçar, fazer outra vez a mesma rotina, voltar para casa, jantar…
Houve alguma coisa em específico que o produtor tenha acrescentado à vossa música?
PG — Ele tem a abordagem de produtor que se intromete pouco mas tenta captar a banda. Acho que ele opinou sobre uma música que foi gravada lá mas que não entrou no disco e depois houve umas decisões ou outras em que ele foi o juiz, o que até nos facilitou um bocado a vida porque permitiu que não existissem discussões tão alongadas e às vezes cansativas entre nós. “Isto se calhar fica melhor assim, se calhar fica melhor ao contrário…” Somos quatro, o que ainda por cima é um número par, muitas vezes há decisões que ficam divididas e assim havia sempre alguém que conseguia tomar a decisão final…
CG — Alguém em quem nós confiávamos esteticamente, até pelo background, que é o mesmo que o nosso. É muito importante trabalhar com pessoas em quem confias esteticamente, que têm uma visão que vai de encontro àquilo que faz sentido para ti, mesmo quando tu não sabes muito bem o que é que isso, quando estás algo perdido. Claro que temos de estar de acordo mas quando dois estão e dois não estão, algum sentido a decisão final há-de fazer. Ele ter vindo cá ver um ou dois ensaios foi mesmo muito importante para ver como é que as coisas soavam ao vivo. Era uma coisa que nós queríamos e que sentíamos que fez falta nos discos que editámos até aqui: captar mais aquilo que somos ao vivo. Se ele só apanhasse as músicas lá, com cada um a tocar à vez, não ia ter a percepção do conjunto, daquilo que nós queremos que soe, do caos que é.
HM — Há muitas visões sobre o que é um papel de um produtor, há bandas que vão buscar um produtor porque querem que ele decida inclusivamente quantas vezes tocam o verso e o refrão e depois há bandas que procuram um produtor como nós procurámos, para trabalhar o som, para nos ajudar a chegar ao som que tínhamos na cabeça.
CG — Tudo o que sejam letras, por exemplo, foi muito difícil para ele meter o dedo. Letras e vozes. A parte das melodias das vozes sim, um pouco, mas elas dependem sempre das métricas e isso para ele enquanto catalão é complicado porque ele não sabe se estamos a partir uma palavra ao meio ou não, se estamos a pôr as tónicas no sítio certo, não pode ajudar nisso.
AH — E há palavras em que ele pensa que estou a dizer uma coisa e estou a dizer outra, porque há coisas que são muito parecidas com o catalão, até na pronúncia…
Recordam-se de algum caso?
AH — Lembro-me de um contrário, de ele perceber que era a mesma palavra, com “enxada”. Na [canção] “Semi Tédio dos Prazeres”. Ele virou-se para um assistente, o Borja: “Ele disse enxada?”. A palavra é a mesma em catalão.
CG — Mas com mais X [ri-se]: ‘Xxxada’ [acentua o X].
AH — Depois pensava que gravidade era gravinada…
CG — … Que é um vendaval dali, um vento forte. La puta de la gravinada…
Nos últimos tempos a voz tem ganho também algum espaço nas canções. Tem-vos apetecido escrever e cantar mais?
CG — Acho que é um caminho sem retorno, a partir do momento em que o André, que é quem escreve, começa a sentir-se mais à vontade…
AH — É uma questão que nos colocam muito e que acho que tem a ver com as primeiras impressões. No início, quase 50% das músicas eram instrumentais. Isso acontecia não por querermos escrever muito ou pouco, mas porque eu nunca tinha tentado escrever em português para uma banda. A partir do momento em que o começámos a fazer, começámos a perceber as dificuldades e as questões que a própria língua nos colocava, o timbre soa muito diferente cantado em português. É uma aprendizagem, tal como o domínio da guitarra ou de outro instrumento. No início, por gosto pessoal, porque ouvíamos muita música instrumental, mas também por alguma limitação nossa — em concreto eu nunca ter cantado e escrito coisas em português antes — isso acontecia. Mas desde o Olhos de Mongol [o primeiro longa-duração] que há músicas com uma estrutura de verso-refrão com um texto mais alargado. A canção para nós está acabada quando sentimos que faz sentido e que não há mais pinceladas a acrescentar. Há uma em que se calhar eu canto um verso e digo “para mim está bom, aquilo que eu quis dizer, a imagem que ela me suscita, está reflectida aqui, não preciso de mais”. Eventualmente, há algum deles que pode achar melhor fazer um segundo verso e puxarmos a música para outro lado.
“Pensámos sempre que íamos ser um objeto raro”
Neste momento já são visto como referências no que toca ao rock nacional — mas este crescimento exigiu tempo. Não há truques para acelerar o processo sem o falsear?
CG — Não foi instantâneo, foi muito gradual… tivemos sorte no início, é verdade, a coisa correu bem, pegou. Mas não há propriamente picos, se calhar há um salto maior num disco ou noutro mas foi tudo muito gradual.
HM — Isto chegou foi, num momento inicial, muito rápido a um sítio onde não imaginaríamos que podia chegar, que era o de ter público, ir a várias cidades e ver pessoas a cantar as músicas…
CG — … E os média a ligarem, isso era uma realidade que para nós não existia no tipo de concertos que dávamos, com bandas hardcore. Só o facto de termos a música a passar na rádio, para nós foi um salto gigante…
AH — Foi uma coincidência feliz. O facto do “Amor Combate” ter começado a rodar como primeiro single também ajudou. Se calhar, felizmente e sem termos pensado muito nisso, aparecemos numa altura em que ainda não era muito popular haver bandas a cantar em português e a fazer um tipo de rock mais contemporâneo. A música cantada em português que consumíamos andava à volta dos Ornatos Violeta, dos Mão Morta e depois tenho alguma dificuldade em lembrar-me de mais nomes… São poucas as bandas dos 20 ou 30 anos anteriores a nós que constituíram uma referência. Hoje felizmente existem mais. Mas pensámos sempre que íamos ser um objecto raro.
HM — O próprio boom da Flor Caveira foi por volta de 2008, se não estou em erro [dois anos depois do primeiro álbum dos Linda Martini]. Até estivemos quatro anos sem lançar um longa-duração, entre o Olhos de Mongol, de 2006, e o Casa Ocupada, em 2010. Lançámos o Marsupial em 2008, mas era um EP. Em teoria, para uma banda que queria continuar relevante, esse hiato seria quase um tiro no pé. No nosso caso acho que até funcionou bem porque de repente havia um grupo de bandas muito grande à volta de um nome, de uma marca, a Flor Caveira — com a Amor Fúria ligeiramente acoplada — e nós não estávamos no meio disso. Senti que beneficiámos do facto de estar de fora porque contam-se pelos dedos de uma mão os artistas que depois desse caldeirão todo continuam a fazer música hoje em dia de forma relevante. Quando lançámos o Casa Ocupada isso também já tinha esmorecido um pouco, acabámos por nunca ser metidos no mesmo pacote para o bem e para o mal.
O sucesso inesperado desse “objeto raro” que era Linda Martini terá acontecido por aliarem música rock a uma escrita cuidada em português? Presumo que seja por causa da escrita, mais do que da música, que o nome dos Ornatos Violeta vem à baila…
PG — Pode ter sido porque a maior parte das bandas dos anos 90 cantavam em inglês. Havia já um rock mas mais ligado ao que estava a bater na altura, o grunge. Não quero ser mau e dizer que eram uma cópia, mas eram muito parecidas [às lá de fora]. Quando começámos não havia quase nada, isso diferenciou-nos e ajudou-nos. Mas na altura não sabíamos, não decidimos cantar em português por pensar que podia resultar, que as pessoas podiam estar fartas de ouvir inglês…
AH — Nem nós temos perceção ou presunção de termos começado nada.
HM — Até porque havia os Oioai, que surgiram na mesma altura que nós, havia mais coisas.
AH — O que dizemos é que havia algum vazio, de facto. Não fomos nós que o criámos, herdámo-lo, e o facto de termos aparecido [para o preencher] foi uma coincidência do caraças porque se calhar era o que as pessoas na altura queriam ouvir ou voltar a ouvir. Hoje em dia inverteram-se os papéis, para quem começa uma banda cantar em inglês se calhar é de mais difícil aceitação — dos media, para concertos…
HM — As coisas até chegaram a um ponto em que já ouvi comentários como: “Agora é moda cantar em português”. Meu… é a língua em que vamos comprar batatas! Sem qualquer tipo de bandeira ou patriotismo, é normal que escrevas e cantes na língua em que dizes “olá” e “bom-dia” às pessoas de quem gostas.
Há versos que foram decisivos para a afirmação dos Linda Martini [de “O nosso amor é um combate” a “Dá-me a tua melhor faca” e “Quando a nossa cara se gastar / E tivermos medo de arriscar / Parecemos putos! / Não temos aulas amanhã!”]. A vossa escrita tem uma linguagem pouco comum, há muitos trocadilhos e também neste disco há muitas frases memoráveis. Onde é que foram buscar inspiração para tratar a língua assim? A professores, a escritores, a letristas, a amigos?
AH — Sempre gostei de escrever, se for vasculhar as notas dos meus professores nos cadernos e cadernetas está lá que sempre fui melhor a letras do que a matemática. A verdade é que ter encontrado a música no início da adolescência foi o que me fez pegar nisso mais a sério. Tudo me influencia, dos livros que leio a cantores e letristas que admiro. Acho que, como qualquer outro instrumento, a escrita funciona como a descoberta de uma voz, de um ângulo. De alguma forma tento, pelo menos, ter uma perspectiva e uma visão diferente de outra pessoa que esteja no momento presente ou passado a fazer música e a escrever. É o que procuramos. Se calhar, se não fosse a música escreveria noutros contextos, mas ela ajudou-me a puxar esse gosto para cima.
Há pouco diziam que o produtor serviu de juiz na hora de decidir questões pendentes das canções. No disco cantam “É só uma canção, não serve de oração”. Existe isso de uma canção ser “só uma canção”?
AH — Essa foi a primeira letra que escrevi para este disco e tem a ver com a luta de quando se está a começar a fazer um álbum novo: há mil e uma ideias na cabeça, há que assentar alguma e não se sabe bem por onde começar. É a história da folha em branco. Escrever uma letra é um processo em que se mete muita energia, fica-se irritado quando as coisas não saem como se quer, é um trabalho muito meticuloso, fica-se até às tantas a pensar na palavra certa para fechar um verso, depois no dia a seguir vai-se rever. Esta reflexão é sobre isso, sobre perdermos horas para fazer uma canção… que se calhar não vai mudar o mundo. Claro, sinto-me feliz porque meti aqui a minha energia toda. É trabalhoso mas se calhar nós [banda] não conseguimos fazer as coisas de outra maneira, é o nível de exigência que nos colocamos.
“Já não estamos dependentes das cassetes dos outros”
As referências que citaram para promover o disco eram muito díspares — de Tim Maia a funk, Fela Kuti, afrobeat, fado, rock, Fugazi, António Variações. Essa mistura também tem a ver com os tempos atuais? Antigamente existiam mais barricadas, mais divisões entre, por exemplo, os que eram fãs de hardcore e os que eram fãs de outra coisa qualquer?
CG — Sim mas nós já ouvíamos muita coisa, se calhar não eram as coisas que ouvimos hoje, mas é isso normal.
HM — Vou dar um exemplo: a banda que eu e o André tínhamos antes de Linda Martini tinha cinco membros e quatro deles começaram a fazer a primeira e a segunda música de Linda Martini. Só ficaram três depois, eu, o André e o Sérgio [Lemos], depois entrou a Cláudia e o Pedro e ficou a banda feita. Mas essa banda, apesar de ser uma banda que tocava hardcore, já o fazia de forma diferente, havia muitos riffs que soavam aos primeiros álbuns de Placebo, por exemplo — o que se calhar é uma referência que ninguém imaginaria para uma banda de hardcore. Já havia esse ecletismo na altura.
PG — Além de que também tem a ver com a nossa idade. Sempre fomos ecléticos, mas a passagem do tempo também faz com que tenhas interesse em motivar-te com outro tipo de estímulos, outras músicas e estilos, outras abordagens. É enriquecedor porque depois fica tudo a marinar e quando se está a fazer alguma coisa as referências acabam por se refletir, até sem percebermos. Mas essa mudança também acabou por ser facilitada por a música hoje estar muito mais disponível. Além do nosso interesse e vontade de irmos ouvindo mais coisas à medida que envelhecemos, para não ficarmos sempre na mesma caixinha, também podemos ouvir quase tudo o que quisermos…
HM — Já não estamos dependentes de haver um gajo da nossa rua que comprou uma cassete — porque era assim que acontecia, tu ouvias o que os amigos da tua rua ouviam, as cassetes que estavam disponíveis.
PG — Hoje há o problema contrário, às vezes há uma escuta muito superficial, pelo menos sinto isso comigo. Já tento fazer o exercício contrário, não dispersar tanto, porque parece que a relação com a música nova hoje é “já conheço isto, já ouvi, já conheci aquilo”. A música não é suposto ser tão descartável e parece que a certa altura começou a ser ouvida de forma descartável…
CG — … Como se estivéssemos a folhear revistas.
HM — Ouvir música não é como ver o feed do Facebook.
AH — Ultimamente tenho feito o exercício de escolher um disco qualquer e quase me obrigar a não saltar dali durante uns dias, porque sempre ouvi música dessa maneira, a de ouvir um disco até não conseguir tirar mais nada dele ou fartar-me. Se não o fizermos acabamos por ceder à lógica de tentar sugar tudo e não é possível.
CG — Também me acontece esquecer-me de discos. Quando estou com um amigo surge uma conversa e lembro-me que já pensei não sei quantas vezes num disco que quero ouvir. Depois esqueço-me sempre. Por isso é que cada vez que quero ouvir música nunca sei o que ouvir. O que é que vou fazer, então? Ouvir as coisas que ouço sempre… o que não é bom! Há uma série de coisas novas que gostava de andar a ouvir e não ouço.
HM — Eu por acaso esgoto os discos. Agora dei de caras com o álbum do Tim Bernardes [Recomeçar, de 2017], que era d’O Terno. E só tenho ouvido isso, todos os dias de manhã vou tomar banho e é esse disco queoiço. Estou a descobri-lo agora, vou ouvi-lo mais uma semana e depois provavelmente farto-me e volto a pegar nele daqui a um mês.
[“Gravidade”:]
Há pouco diziam que não têm a presunção de terem iniciado movimento nenhum. Mas não há bandas novas em que sintam a linhagem e a herança de Linda Martini?
HM — Nos concertos há miúdos que vêm ter connosco a dizer que somos influência, mas não me consigo lembrar de nenhuma banda que oiça e note que foi influenciada por Linda Martini.
AH — Acho que não criámos uma escola. Olho para as bandas que estão a conseguir furar e de repente também não me lembro de ninguém que note claramente que nos andou a ouvir. Se calhar estamos um bocado cegos a isso porque estamos muito dentro da nossa música e às vezes é difícil reconhecê-la nos outros. Mas não sinto que tenhamos criado uma escola ou que já existam aí clones com a nossa etiqueta de lado.
CG — Mas influenciar de certeza que influenciámos.
HM — Sim, mas por exemplo, o disco que eu mais ouvi quando estávamos a fazer este álbum foi um best of do [cantor de soul e R&B] Bobby Womack, que não tem nada a ver com Linda Martini. Para mim foi uma grande influência e isto não soa a Bobby Womack. É sempre algo muito subjectivo…
PG — Acho que para nós e para as pessoas que gostavam de nós foi surpreendente quando de repente começámos a ter outro tipo de exposição e atenção. Acho que isso deu alento a muitas pessoas que tinham bandas e gostavam de fazer rock mas não sinto que tenha sido por termos uma banda que conseguiu ter atenção que criámos seguidores. Os seguidores que surgiram depois foram como nós aparecemos a seguir a Ornatos Violeta, Mão Morta, o que for: claro que eles tiveram influência em nós e nós havemos de ter influência em quem veio a seguir. Acho que começou a haver mais bandas a cantar em português depois de nós, sim, que surgiram mais bandas rock a ter mais atenção [que anteriormente].
HM — Na altura discutia-se muito se tinha de se cantar em português, a dada altura parecia um movimento para sensibilizar as pessoas, quase evangelizá-las para cantar em português. Nós sempre nos demarcámos disso, nunca quisemos levantar essa bandeira. Cantamos em português porque nos apeteceu e apetece..
Recentemente fizeram uma digressão de clubes com o Paulo Furtado [The Legendary Tigerman]. Como é que lidam com o facto de o circuito nacional ser muito baseado em cine-teatros, não havendo muitos clubes rock de grande dimensão?
CG — O circuito de clubes leva pouca gente. Pode levar muita gente em Lisboa ou Porto, mas no resto do país acho que o tamanho dos clubes até é ajustado ao público que há. São clubes que levam 200 pessoas, mas mesmo quando esgotam não ficam com 500 pessoas de fora. Nessa digressão se calhar num sítio ficaram 50, noutro 100, mas acho que os tamanhos são ajustados. Pior é a quantidade de concertos que se podem fazer seguidos: o país não é grande e se as coisas forem perto, se a 100 km de uma sala para 200 pessoas existir outra para 100, nem sequer esgota porque as pessoas dividem-se. Depois os concertos são tarde, as pessoas trabalham no dia seguinte, nesses sítios muitas vezes não há transportes, tem de se ter transporte próprio… E os português são preguiçosos — falo por mim, também. Há uma série de coisas a dificultar e por isso o tamanho das salas ajusta-se.
PG — Nos Estados Unidos há bandas muito pequenas que conseguem pegar numa carrinha e fazer um circuito. Cá não há muito esse hábito nas bandas mais pequenas, mesmo nós quando começámos fora do [circuito do] hardcore começámos com as Fnacs, depois fomos ao Hard Club… O circuito [para bandas rock] também não está assim tão oleado.
AH — Nesta digressão a ideia era devolver um bocado o rock ao sítio onde ela nasceu, aos clubes pequenos onde a malta está toda ao molho, onde se sua para caraças para ir buscar uma cerveja ao outro lado do bar, a ideia era essa…
HM — Em França, Alemanha ou Inglaterra há concertos durante toda a semana porque são cedo, à meia-noite está tudo despachado. Isso permite que se veja um espectáculo à noite e esteja em casa a horas decentes para poder descansar convenientemente para ir trabalhar no dia seguinte. Os concertos cá raramente acabam antes da 1h e é quando não começam a essa hora… Outra coisa que pode ter contribuído para não haver muitas bandas a fazer este circuito: os concertos gratuitos promovidos pelas câmaras municipais, a ver quem é o maior do concelho. Se calhar nesses sítios as pessoas desabituaram-se de pagar para ver espectáculos como se desabituam agora de pagar para ouvir música.
CG — Há sítios complicado. Setúbal, por exemplo, é um sítio onde as pessoas se recusam a pagar por concertos, não pagam mais do que três ou quatro euros para ir a um concerto, recusam-se.
HM — É uma das cidades com maior taxa de desemprego do País, também…
CG — [Fala para Hélio Morais] Mas lembras-te em Leiria, no Alfa Bar? As pessoas pagavam três euros para ver um concerto e reclamavam… mas depois pagam quatro por uma cerveja. É cultural e há zonas em que isso é pior que noutras, não sei porquê.
Deste disco novo quais é que são as vossas canções preferidas?
CG — A minha acho que é a “Quase se Fez Uma Casa”.
HM — Acho que a música que me arrepia mais desse disco é a “Se Me Agiganto”.
CG — Pois, é tramado, eu disse aquela e agora? [Risos]. Essa música [“Se Me Agiganto”] nem sequer a consigo ouvir, só em concerto, em CD não.
HM — É a que me arrepia mais, mas ao vivo acho que a que me dá mais pica é a “Boca de Sal”.
PG — É difícil fazer essa escolha.
CG — É, acho que não dá.