Mais um foco de contestação e uma enorme dor de cabeça para Carlos Moedas. A chegada do verão, o regresso dos turistas e a falta de recursos vieram a colocar o executivo da Câmara Municipal em dificuldades e trouxeram para a agenda pública e mediática um problema que se arrasta há anos na cidade de Lisboa: a deficiente rede de recolha do lixo da capital. O autarca já avançou com um plano para tentar resolver o problema, mas oposição e sindicatos não deixarão cair o tema no esquecimento. A luta vai ser política.
Do lado social-democrata, de resto, há quem veja neste agravar de um problema que é crónico o dedo dos comunistas e um boicote deliberado por parte dos sindicatos com o único objetivo de fragilizar Moedas. Ainda no arranque de julho, Luís Newton, líder da bancada municipal do PSD e o mesmo que criou um enorme embaraço político ao autarca, alegava que “os sindicatos e a esquerda” estavam a impedir “os funcionários de saírem às ruas para fazerem a recolha do lixo”.
Newton, também presidente da Junta da Estrela e líder da concelhia do PSD/Lisboa, chegava mesmo a dizer que as ações realizadas junto dos trabalhadores da Higiene Urbana nada mais eram “do que comícios e de verdadeiros bloqueios” ao normal funcionamento da recolha de lixo.
“Vemos a cidade de Lisboa cada vez mais suja e isto tem de ser denunciado, porque isto é concertado. O objetivo é contribuir para criar uma imagem de sujidade, criando esta ideia de que agora com Carlos Moedas o lixo não se recolhe”, concretizava o social-democrata.
A resposta comunista não se fez esperar, naturalmente. “Por muito que custe ao PSD/Lisboa — e certamente mais ainda aos lisboetas — o problema tem mesmo a ver com a indisfarçável incapacidade da atual gestão municipal. A explicação de que um alegado boicote da oposição que justificaria a incapacidade da atual gestão neste domínio, não soa nada menos do que ridícula“, reagia o gabinete do PCP.
Cerco da oposição aperta-se
Boicote deliberado ou não, a Carlos Moedas resta pouco mais do que encarar o problema de frente — ele que fez questão de cumprir a promessa eleitoral de almoçar com os trabalhadores da recolha do lixo logo no dia seguinte à eleição. Na quarta-feira, o autarca convocou os sindicatos para uma reunião, prometeu fazer tudo ao seu alcance para resolver a questão e acabou a lembrar que “os problemas vêm de há muito tempo” e que não são culpa do executivo que lidera.
A narrativa de Moedas, no entanto, não convence a oposição. A começar pelo PS, naturalmente, que veio logo dizer que que enquanto esteve à frente da autarquia os serviços recolhiam quantidades superiores de lixo e não havia registo de problemas. “O presidente da Câmara Municipal de Lisboa, pressionado pela opinião pública volta à vitimização e a responsabilizar terceiros. Volta ao passado e diz-se inimputável“, apontou a vereadora Inês Drummond na reunião de Câmara em que o tema foi debatido.
Segundo as contas dos socialistas, com “menos viaturas e menos trabalhadores” a população produzia “mais lixo” e a recolha era feita em números maiores do que os atuais. “Agora, com mais viaturas e cantoneiros ao serviço do que tinha em 2019, a cidade recolhe menos 10% de lixo do que fazia em 2019. Com Carlos Moedas, a Câmara Municipal está a fazer menos serviço com mais meios“, acusou a socialista.
João Ferreira, vereador comunista, denuncia “a escassez de meios na Câmara Municipal” e argumenta que a distribuição das funções pelas juntas de freguesia — reforma da responsabilidade de António Costa — veio penalizar o “sistema de rotação que havia pelas várias funções de higiene urbana” que permitia aos trabalhadores circular entre as funções de recolha de contentores e varredor de ruas, por exemplo.
“A recolha de lixo é um trabalho duro, que perdeu a rotatividade. Como consequência os trabalhadores afastaram-se. Estas funções são penalizadas sempre que, como agora, há uma situação de emprego pleno. Logo que têm oportunidade procuram outras funções”, argumenta o vereador do PCP.
A mesma visão é partilhada pelo Bloco de Esquerda e Livre, que veem na contratação de mais funcionários a única “solução a breve prazo” para o problema de acumulação de lixo nas ruas. Ao Observador, fonte do Bloco de Esquerda critica o “atraso no concurso que devia ter vinculado funcionários logo em janeiro” e exige mais a Moedas.
Os bloquistas querem, a esse propósito, que haja um reequilíbrio na adjudicação de verbas da autarquia para a recolha do lixo, lamentando que “uma grande fatia da taxa turística” vá, neste momento, para a “Associação de Turismo de Lisboa e a parte menor para o lixo”.
Já o Livre fez as contas: cada trabalhador recolhe em média 1,5 toneladas de lixo por dia. Uma soma “astronómica” que é autoexplicativa do problema. Os poucos trabalhadores que existem nas funções de recolha de lixo saem assim que encontram nova oportunidade de emprego.
“A Câmara tem que garantir melhores condições de trabalho e contratar mais pessoas. Há cerca de 800 cantoneiros na autarquia que recolhem 25 mil toneladas de lixo por mês. Quanto quanto menos pessoas existem nas funções, menos desejado é o trabalho”, nota Rui Tavares ao Observador.
O plano de Moedas, o ataque a Medina e a pressão sobre o Governo
Como primeira medida para enfrentar o problema, o autarca social-democrata decidiu desbloquear 18 milhões de euros para as freguesias, processando um pagamento que estava em falta. Foi a resposta às críticas de vários presidentes de junta, que vieram a público queixar-se da demora na assinatura dos acordos.
“Nenhum presidente da Câmara fez tanto como eu estou a fazer para a higiene urbana. Estou a dar os meios todos, a cidade tem que estar limpa. É preciso mostrar limpeza e uma higiene urbana exemplar”, defendeu-se Carlos Moedas esta quarta-feira, antes de atirar contra o seu antecessor: “Em 2021 os pagamentos não foram feitos. Já desbloqueámos 18 milhões. Gostava de ver os números do passado”.
Na prática, a autarquia pagou os oito milhões de euros em dívida com as juntas de freguesia e entregou mais 10 milhões de euros para 2022. “Sozinho não consigo resolver. Preciso das freguesias que limpam e lavam as ruas, pagámos quase 18 milhões de euros à freguesias para que isso seja feito”, detalharia Moedas, dizendo ter também “desbloqueado com retroativos” a questão do “subsídio de insalubridade“, que era uma reivindicação antiga dos trabalhadores. “Foi pago um milhão de euros aos trabalhadores pelo subsídio que era devido.”
Os socialistas vieram rapidamente defender Medina. “É incompreensível que invoque agora dificuldades de tesouraria, quando a Câmara Municipal de Lisboa tinha 200 milhões de euros no banco e uma dívida a fornecedores de apenas 3 milhões, quando o presidente da autarquia tomou posse”, denunciou o partido num comunicado enviado às redações.
Seja como for, Moedas não ficará por aqui. O autarca anunciou a contratação de 60 pessoas para a recolha de lixo e, até setembro, terá os restantes 100 funcionários já prometidos, mais 30 motoristas. Um aumento considerável que, mesmo assim, e segundo contas da própria autarquia, estão em falta 170 funcionários para completar o quadro de cantoneiros necessários para a recolha do lixo no concelho. Ou seja, mesmo depois concretizada a contratação destes 160 trabalhadores, existirá um défice de 10 pessoas. Há, ainda assim, duas questões por resolver e uma não depende diretamente de Moedas.
Se, por um lado, existem queixas de falta de meios e de material em más condições, o que causará constrangimentos ao normal processo de recolha de lixo, outra das reivindicações dos trabalhadores — cujo protesto merece o respaldo da oposição — passa pela questão salarial. No entanto, a autarquia não tem qualquer autonomia para aumentar os salários dos funcionários públicos nestas funções e só uma revisão da carreira da Administração Pública poderá ajudar a colmatar o problema — algo que está nas mãos de António Costa.
Sindicatos aplaudem disponibilidade, mas querem mais
Depois da reunião com Carlos Moedas, os sindicatos dizem estar “disponíveis para ajudar” o executivo lisboeta a resolver o problema, mas não escondem algum ceticismo — nada faz antever a resolução do problema a curto prazo, muito menos nos meses de verão.
Pedro Salvado, do SINTAP, recorda que “há uma vertente económica” que a Câmara Municipal não domina e que só António Costa pode resolver. Ainda assim, o sindicalista acredita na boa-fé de Carlos Moedas e promete tréguas. “Enquanto estiver à mesa negocial, enquanto a agenda regular de reuniões se mantiver, a SINTAP não arrastará os trabalhadores para a greve”, assegura.
Por sua vez, Victor Reis, do STML, também promete responsabilidade. Com um caderno reivindicativo entregue na autarquia “há um mês e meio”, o sindicalista reconhece que a reunião de quarta-feira foi “iniciativa do presidente“, que quis “apelar à sensibilidade dos sindicatos para o problema da recolha do lixo”.
E assim será. “O STML é um sindicato responsável, que defende os trabalhadores e um serviço público de responsabilidade”. Mas são precisas medidas concretas. Para já, reconhecendo que a valorização salarial não depende da autarquia, Victor Reis quer a “reorganização dos circuitos que estão desequilibrados e a sensibilização dos munícipes” para tornar a recolha de lixo mais eficiente e proteger os trabalhadores.
O sindicalista fala ainda na necessidade da autarquia promover ações de sensibilização para um “maior respeito pelos trabalhadores da higiene urbana e para a necessidade de separar mais o lixo e diminuir as quantidades produzidas”.
O legado de Costa
A recolha de lixo em Lisboa é um problema com barbas. Basta ver, por exemplo, que em 2008 já António Costa se debatia com greves e protestos dos sindicatos. Nesse ano, e a propósito de uma paralisação que o então presidente da Câmara de Lisboa classificou como “gravíssima“, o socialista lamentava nada poder fazer nada. “Não posso legalmente substituir os trabalhadores em greve. É uma situação gravíssima para a cidade. É uma atitude fora de tempo, extemporânea e injustificada”, queixava-se então.
Mais tarde, já em 2014, com um pé na Câmara e outro já na corrida para a liderança do PS, Costa teve de se envolver pessoalmente nas negociações com os sindicatos para evitar uma greve que poderia ter sido catastrófica em vésperas de Santo António.
O pior cenário foi evitado com a abertura de concurso para a entrada de 150 cantoneiros e 50 bombeiros sapadores, bem como o pagamento das horas extraordinárias aos trabalhadores da limpeza urbana, aos trabalhadores acidentados e o suplemento aos trabalhadores em período noturno, para além das férias acumuladas e não gozadas pelos trabalhadores que transitaram para as freguesias.
Também foi do agora primeiro-ministro a autoria da reforma administrativa que ditou a transferência de competências no lixo da autarquia para as freguesias. Como contava aqui a agência Lusa, a passagem da limpeza e varredura da Câmara para as freguesias, e consequente transição de trabalhadores, motivou vários problemas na recolha do lixo, que se manteve (e que se mantém) sob a alçada da Câmara. Com a transferência de algumas competências da higiene urbana da autarquia para as 24 juntas de freguesia, por acordo entre PS e PSD, as dificuldades que já se sentiam agudizaram-se.
O desafio manteve-se com Fernando Medina e as queixas nunca chegaram verdadeiramente a desaparecer — em 2018, Assunção Cristas fez da questão da recolha de lixo uma das bandeiras da campanha eleitoral autárquica para pressionar o então executivo, que tinha Duarte Cordeiro como vice-presidente. Mas Medina, Duarte Cordeiro e o PS são passado; o problema agora é de Moedas.