A garrafa de licor ginja “Ribeira Nova” fica a menos de um quarto, no fim da sessão de recolha de propostas para o Orçamento Participativo. Em cima de uma mesa, ao canto do pavilhão 1 da Associação Desportiva do Carregado, lá está ela, junto aos bolinhos, à máquina de café e ao chá. José atesta o copinho que segura delicadamente entre dois dedos e leva à boca antes de sair para os 4 graus da noite. “Até é boa”, diz, depois do trejeito de entendedor qualificado. Lá dentro deixou uma proposta conjunta para que ali na terra seja identificado o Caminho de Santiago. “Está tudo abandonado, sem um sinal”. As preocupações locais dominam boa parte das conversas. Já em Lisboa, noutra sessão a que o Observador assistiu, as ideias foram mais arrojadas, com a identidade local ter menos peso. E houve minis, em vez da ginja.
Duas sessões diferentes e um bom retrato do país, ainda que estejamos a falar de duas localidade separadas por apenas 50 km. Mas comecemos pelo princípio: o Governo está a percorrer o país, até ao dia 21 de abril, para recolher propostas de cidadãos para o Orçamento Participativo. No Orçamento do Estado para este ano ficou inscrita uma verba de 3 milhões de euros para o efeito e, até esta sexta-feira, havia mais de 200 propostas para os gastar, em menos de um mês de estrada e 10 sessões.
De Alenquer, o Governo levou 58 propostas, de 85 pessoas inscritas na sessão do “Orçamento Participativo Portugal”. De Lisboa, uma semana depois, recebeu 30 propostas de 120 inscritos. São dois concelhos habituados a esta lógica, já que ambos têm orçamentos participativos há anos. A secretária de Estado da Modernização, Graça Fonseca, admite que esse conhecimento facilita as sessões. “Onde há orçamentos participativos locais as pessoas estão socializadas com isto de apresentar propostas para o concelho. Aqui são obrigadas a ligar dois concelhos diferentes”.
“Olá, tem alguma ideia para apresentar?”
Mas nem sempre é fácil. Oksana é ucraniana, vive há 16 anos em Portugal sempre pela Póvoa de Santa Iria, e está às voltas com o formulário distribuído à porta da Associação Desportiva do Carregado, assim que cada participante dá o nome para entrar na sessão. Faz os óculos escorregar para a ponta do nariz e lê a folha A4 que tenta preencher. Impossível perceber o que comenta com a sua conterrânea Valentina… em ucraniano… No impresso há espaço para duas propostas: uma de âmbito regional e outra nacional. A primeira tem de abranger pelo menos dois municípios e a segunda tem de envolver duas regiões, entre Norte, Centro, Área Metropolitana de Lisboa, Alentejo, Açores e Madeira. Onde é que põe a cruz? A parte mais fácil é mesmo ter as ideias. “Ideias temos muitas, não temos é dinheiro”, diz Oksana já em português. Também tem de se calcular, por alto, o valor da proposta. Cada projeto pode ir até os 200 mil euros.
Não está sozinha. Naquela mesa de debate senta-se um grupo largo de ucranianos, que o presidente da Câmara de Alenquer convidou. São da Associação Sobor (de ucranianos em Portugal) e todos juntos trazem apenas e só uma proposta: um Centro Cultural Ucraniano. Oleksiy, 38 anos e há 18 em Portugal, explica que há muitos ucranianos naquela região por isso gostavam de criar um centro para “manter tradições” e que permita que as crianças convivam. “Estão sempre a ver TV, parecem zombies. Eu tenho 38 anos e não sei mexer em tablets, mas os meus filhos com 12 e 6 já sabem”. O grupo deixa a proposta, mas sai antes de acabar a sessão. Nem chegam a apresentá-la à sala, diante do microfone.
Ficou entregue e é isso que conta. A entrega tem de ser presencial, numa destas sessões, em que o Governo monta umas mesas para debate ou, noutras, em que o Movimento Ignite Portugal dá uma ajuda com uma palete para onde os proponentes sobem e onde têm de apresentar a sua ideia em cinco minutos. Este foi o formato usado em Lisboa, num estilo mais trendy, no Village Underground Lisboa (uma comunidade de coworking em Alcântara). Entra-se no barracão transformado em sala de apresentações e onde parece que toda a gente conhece toda a gente, sem conhecer. Uma rapariga loira sorridente abre os braços e exclama “Olá, tem alguma ideia para apresentar?”. Entrar só para ver não dá direito ao autocolante com a graçola “eu participo para… mandar bitaites”.
O Ignite Portugal apresenta-se como “evento de inspiração e partilha de ideias inovadoras”. Quem sobe à palete tem cinco minutos para falar e a 20 slides, cada um com 15 segundos, que vão passando de forma automática. Quando o tempo chega ao fim: “Woosh!” É a palavra que aparece a indicar que o tempo acabou. O movimento já era conhecido por Graça Fonseca, enquanto vereadora em Lisboa no Orçamento Participativo Municipal, e o Governo estabeleceu uma parceria com o Ignite para que, no Orçamento Participativo, organize 20 encontros pelo país. “Por cada encontro, o Ignite recebe 2.300 euros, que inclui o pagamento da equipa que divulga, apoia, organiza, fornece o catering e apresenta, bem como as deslocações e estadias respetivas, quando necessário”, esclareceu ao Observador o gabinete da Presidência do Conselho de Ministros.
Comboios, jardins de borboletas e cocó de cão
Em Alenquer, foi o presidente da Câmara a encarregar-se da mobilização de participantes para a sessão que, desta vez, foi no formato de debate pelas cerca de 15 meses mesas dispostas numa sala de ginásio, entre espaldares e bolas de pilates. Naquelas cadeiras e mesas brancas de jardim, como no descontraído mas fashion Village Underground, a ginástica é a mesma: esticar ao maior número possível de propostas os 3 milhões disponibilizados para o Orçamento Participativo.
“A escolha dos sítios é feita a partir das cinco regiões plano: Norte, Centro, Lisboa/Vale do Tejo, Alentejo e Algarve. Nesses sítios procurámos estar em locais dessa região que cubram o território do litoral ao interior. A organização é feita com a colaboração das autarquias. As câmaras são sempre envolvidas e ajudam a divulgar junto das pessoas”. A explicação é da secretária de Estado da Modernização, Graça Fonseca que garante que a cor política das Câmaras não pesa na escolha. “Ainda ontem estive no Barreiro, que não é socialista, e também noutra câmara social-democrata”. Uma pequena volta pela sala e numa das mesas de trabalho está José Manuel Mendes debruçado sobre vários formulários, ideias não lhe faltam, e repete o preenchimento porque afinal tem de ser feito em letra maiúscula, bem legível. Está concentrado e mal levanta a cabeça até que na sua mesa alguém desafia: “Olhe fale aí com o presidente da Junta. Ele até é do PSD!”.
José Manuel ri-se. “É verdade, estou no segundo mandato E esta é a única Junta PSD no concelho”. A Junta Carregado/Cadafais é gerida numa coligação PPD/PSD, CDS-PP, MPT, PPM e o seu presidente ali está a aproveitar o Orçamento Participativo para tentar a sorte de quatro propostas que traz alinhavadas. Quer um livro sobre o Carregado, um curso de formação cívica e também outra formação sobre como tratar animais. A pergunta-impõe-se: é autarca, pode executar estas propostas, porque vem aqui? A primeira resposta é a que fica bem: “Devia haver mais participação da população”. A segunda já traz crítica, a Alenquer onde já contribuiu para outros participativos: “A participação seria diferente se o método de votação fosse diferente”. À terceira insistência encolhe os ombros: ” Não gosto de estar daquele lado [aponta para o topo da sala, onde está o presidente da Câmara], gosto mais deste”. E garante que o que propõe “não será deixado cair em saco roto”, caso não passe na votação final do Orçamento Participativo Portugal: “Vamos dar o melhor seguimento a estas ideias, dentro do possível”.
Na sua mesa está Hernâni Figueiredo que gostava de ver nascer na terra um centro interpretativo do primeiro caminho-de-ferro em Portugal, a linha que liga Lisboa/Carregado. A primeira viagem foi a 28 de outubro de 1856 e esse marco histórico orgulha o jornalista que mostra a proposta que traz num dossiê. Na mesma mesa também está Raquel com mais uma proposta sobre um símbolo na região Oeste: uma rede de moinhos que tivesse também um objetivo pedagógico sobre o seu funcionamento e o ciclo do pão. Graça Fonseca mete conversa com ela e diz-lhe: “Já houve uma proposta dessas em Torres Vedras. Se houvesse várias até se podiam juntar”. A secretária de Estado diz notar diferenças nas propostas que têm surgido, consoante a região do país.
Em Lisboa, poucos são os que sobem ao palco que estranhem um microfone ou apresentações em público. Um dos proponentes, Fernando Mendes, aparece familiarizado com a linguagem deste modelo mais moderno. Dirige o espaço Coworklisboa, traz um conjunto de slides de quem sabe do que a casa gasta, e sobe à palete para propor o Cáwork, “um vale de 1 mês para desempregados, ou não, usarem na rede nacional de coworking“. Surgem também dois projetos de ciências, num deles, Vítor Palminha leva até carros movidos por energia solar para melhor demonstrar a sua ideia sobre fotões. Sandra Soares vai à palete pedir um programa nacional de cariz científico mas adaptado às pessoas com necessidades especiais. Surge também a ideia de um jardim de borboletas ou de um equipamento para converter resíduos orgânicos para produzir gás natural e fertilizantes orgânicos.
Curiosamente é Manuel Faustino que mais capta a atenção da sala, com slides pouco sofisticados e uma primeira fotografia sem pudores: um cão a satisfazer as suas necessidades fisiológicas num jardim. A ideia chama-se “passeios limpos” e passa pela atribuição de bonificações, através de um sistema de cartões, para os cidadãos que apanhem os dejetos dos espaços públicos. Ou então uma segunda proposta, uma solução mais radical para o mesmo problema que ao mesmo tempo facilita a vida aos donos dos animais: um spray dissolvente. Magia…
Outra ideia que virou cabeças: a do arquiteto José Romano que cativa atenções ao dizer que quando pesquisa no Google “nadar+Rio Tejo” a primeira imagem que aparece é a de Marcelo Rebelo de Sousa a nadar no Tejo, na campanha autárquica de 1989 em que concorreu por Lisboa. Romano mostra imagens de várias cidades do mundo e desafia a um maior aproveitamento do rio, com uma ideia ambiciosa que batizou de “nadar no rio”. Quando sobe à palete, avisa logo que está ali para propor mas que também tem interesse no evento noutra perspetiva, já que está a fazer uma tese de doutoramento em participação política na era pós-troika.
O Governo não se queixa da participação que tem tido, que a secretária de Estado garante estar, em média, entre 60 a 80 pessoas. Por agora estão agendadas cerca de 60 sessões. As propostas vão sendo logo registadas, por funcionários na sala, na base de dados do Orçamento Participativo e mais tarde são transformadas em projetos, já depois de analisadas pelos serviços públicos das áreas a que se referem. Podem ser propostas alterações ou até fusões de projetos, mas só com o consentimento de quem propôs. Numa fase final, entre 1 de junho e 15 de setembro, serão votados por todos os cidadãos, por SMS ou no site do Orçamento Participativo. Cada pessoa terá dois votos: um para os projetos a nível regional e outro para os que são de aplicação nacional. Durante o mês de setembro conhecem-se as propostas vencedoras.
A ideia foi trazida do Brasil por António Costa, como autarca, e estava inscrita no programa eleitoral do PS. Era um ponto de honra de Costa que, na campanha, chegou a comparar a gestão de uma câmara à do país: “É um município um bocadinho maior”. Aplicou-lhe a sua coqueluche local e também apoiado pelo movimento Ignite e o seu beer-break. Sim, se em Alenquer há ginjinha, em Lisboa há minis e aperitivos, no intervalo de 15 minutos.