Fotografias:
António Cotrim/LUSA, conta Instagram @vamos_encontrar_a_avelina
A saída das urgências, os alertas do marido, a demora na reação. Os 76 dias em busca de Avelina
Avelina Ferreira desapareceu em dezembro do Hospital de São Francisco Xavier, onde deu entrada após dois desmaios. Horas depois, quando o marido a ia visitar (porque teve de aguardar na sala de espera), ninguém sabia onde estava. O hospital insistia que a doente não tinha saído, só no dia seguinte detetou imagens de Avelina a cruzar a porta, de chinelos. Durante mais de dois meses, família e amigos correram a cidade, seguiram supostos avistamentos. A “notícia que mais temiam” acabou por chegar esta segunda-feira: na mata junto ao hospital fora encontrado um corpo em avançado estado de decomposição. Da alegada “negligência” do hospital, às críticas feitas à PSP, que a família diz “não ter feito muito”: o que aconteceu desde que Avelina desapareceu até à confirmação da sua morte?
Avelina Ferreira chegou ao Hospital de São Francisco Xavier por volta das 13h do dia 12 de dezembro de 2023, na sequência de uma chamada do marido para o INEM. “Ela tinha desmaiado de manhã e novamente à hora de almoço, e o meu pai começou a achar que podia ser grave”, contou na altura ao Observador a filha, Susana Ferreira.
A mulher, de 73 anos, foi então levada de ambulância para o hospital mais próximo da sua residência, em Linda-a-Velha, tendo chegado “meio inconsciente”.
Durante a viagem, os paramédicos pediram algumas informações sobre Avelina ao marido, nomeadamente o histórico de medicação. “Fotografaram as receitas e disse-lhes nessa altura que a minha mulher tinha demência e lupus. Está lá escrito no relatório”, garantiu Manuel Ferreira ao Correio da Manhã, numa entrevista dada dias antes do aparecimento do corpo.
Chegados ao hospital, fizeram a inscrição e passaram pela triagem, onde foi atribuída uma pulseira amarela. Aqui, o marido aproveitou para dizer novamente que esta tinha sido diagnosticada com Alzheimer.
Avelina Ferreira foi depois levada “de maca para a zona de observação”, tendo Manuel recebido ordens para aguardar na sala de espera. “Como ela estava inconsciente, disseram: ‘Não, o senhor fica na sala de espera e nós damos notícias quando ela for para dentro'”, disse Susana. E o marido assim fez.
Passadas mais de três horas de ter dado entrada no hospital, Manuel levantou-se da cadeira para ir buscar alguma coisa para comer. No caminho de volta para a sala de espera, fez uma paragem no balcão de informações para saber como estava a mulher. “Olhe, a dona Avelina tem pulseira amarela, tem médico atribuído, mas ainda não foi observada. E ainda não pode receber visitas”, terão dito.
Além disso, informaram também o marido de que a tinham mudado para uma “poltrona reclinável”, pois “precisavam da maca” em que ela tinha chegado. “Voltei a frisar: ‘A minha mulher tem demência’”, revelou em entrevista ao Correio da Manhã.
Quando começou o horário de visitas, às 21h30, Manuel (que já tinha a pulseira de visitante desde as 21h) perguntou se podia finalmente ver a mulher. Mas a resposta não terá sido a que esperava: “A dona Avelina já cá não está. A dona Avelina já saiu”.
“Mas como saiu? Como saiu? Não foi observada sequer”, questionou-se o marido na altura, como viria a contar mais tarde em entrevista. “Fiquei em pânico. Completamente em pânico. Se me abrissem o chão, caía por ali abaixo.”
Segundo Manuel, instalou-se naquele momento “uma confusão”, com a “chefe de equipa e os enfermeiros” a procurarem por Avelina em todos os corredores.
Nessa altura, foi também pedido aos seguranças que vissem as imagens das câmaras de videovigilância. “Devem ter-se enganado, puxado mais para a frente ou mais para trás, porque não havia registo dela”, disse.
Manuel decidiu fazer queixa no posto da polícia do hospital, que não lhe terá dado a resposta que queria ouvir. “Não tinham elementos nenhuns. Disseram-me que não havia nada a fazer: ’Não há registos nas câmaras. Ela está aqui dentro do hospital’.”
O marido e a filha de Avelina Ferreira dirigiram-se ao hospital pela manhã para retomar as buscas. “Procurámos por todas as salas, todas as escadas, todos os corredores, em todo o lado”, lembrou Susana Ferreira, na mesma entrevista ao Correio da Manhã.
Neste dia, também terão pedido algumas informações à equipa que acompanhou a mulher sobre o que tinha acontecido enquanto ela esteve na zona de observação. Segundo a filha, Avelina terá pedido para ir à casa de banho não uma, mas duas vezes.
“Disseram que não podia ir, pois não havia ninguém para ir com ela. Então, foi sozinha.” O que terá acontecido depois, assumiu Susana dias depois do desaparecimento ao Observador, é que a mãe tentou regressar ao local onde se encontrava e, não sabendo o caminho, acabou por sair do hospital e rumar a casa.
“Exigi que vissem outra vez as câmaras, porque tinham de a encontrar”, acrescentou Susana numa outra entrevista. “Só aí é que conseguiram identificar que tinha saído às 18h46. Isto é grave, porque perdeu-se imenso tempo. Se tivesse sido logo identificado, obviamente que tínhamos ido à procura.”
Também o marido de Avelina tece duras críticas à segurança do hospital, por não ter detetado a saída da mulher. “Quem está com a função de controlar entradas e saídas é o vigilante. Se é vigilante ou boneco de cera não sei. Se calhar os bonecos de terracota ali da Quinta da Bacalhôa faziam melhor serviço”, disse.
“Como é que uma pessoa sai com traje ligeiro em dias de frio, com chinelos de quarto, sozinha, porta fora? Não abordam as pessoas? Isto arrasa comigo”, confessou em lágrimas.
Após ter recebido a certeza de que Avelina tinha saído do hospital, a família foi procurar por ela nas imediações. Percorreu também Algés, onde alegadamente tinha sido vista de manhã, perto da Farmácia Ocidental, e novamente ao final da tarde, e na zona ribeirinha, onde um grupo de jovens, que jantava no restaurante La Siesta, garantiu que a tinha visto. Pista essa que acabou por se verificar ser falsa.
Um grupo de 250 funcionários da faculdade Nova School of Business and Economics (Nova SBE), onde a filha de Avelina é diretora de Marketing e Comunicação, mobilizou-se para fazer buscas nas zonas do Restelo e de Algés. As aulas continuaram a funcionar, mas os serviços administrativos foram suspensos, visto que vários departamentos operacionais da escola participaram da ação.
Foi também criado um grupo de Whatsapp com 350 funcionários, “entre staff, professores e alunos de mestrado” e canceladas as reuniões e o evento de Natal, como explicou Filipa Luz, diretora executiva de comunicação, à Rádio Observador na altura.
As buscas começaram às nove da manhã e duraram o dia inteiro, tendo os voluntários recorrido a uma mapa interativo para cobrir várias zonas. Cerca de cem pessoas organizaram um cordão humano e fizeram um “arrastão”, que partiu do Aquário Vasco da Gama em direção à estação de Algés.
A Polícia de Segurança Pública (PSP) também decidiu alargar o alerta do desaparecimento, estendendo a área desde a zona da Ponte 25 de Abril até Caxias, confirmou na altura Susana Ferreira ao Observador.
Três dias após o desaparecimento de Avelina, a PSP fez buscas na mata próxima do hospital. Segundo apurou o Observador, junto de uma fonte do grupo de voluntários, a operação aconteceu entre as 15h e as 17h, envolvendo 17 agentes, cães pisteiros e drones. O Observador contactou a PSP para perceber o que tinha sido feito para encontrar a mulher, que encaminhou os esclarecimentos para mais tarde.
Ao fim de uma semana, o grupo de voluntários tinha também percorrido as zonas de Linda-a-Velha, Belém, Jamor, Belém, Caxias e até Monsanto, apurou o Observador, junto de fonte próxima das buscas.
Segundo a mesma fonte, foram afixados cartazes em todas estas localidades e abordados moradores e lojistas, alertando-os para que reportassem às autoridades caso vissem Avelina.
Foi criada uma conta na rede social Instagram, com o nome @vamos_encontrar_a_avelina, para apelar a que mais pessoas se juntassem às buscas, nomeadamente através de dois grupos no Whatsapp criados para o efeito.
Nestes, os voluntários articularam-se com associações, de forma a acompanharem as rotas de distribuição de alimentos a pessoas em situação de sem-abrigo, nomeadamente o CASA (Centro de Apoio ao Sem Abrigo) e a Comunidade Vida e Paz.
Mais de uma semana depois do desaparecimento de Avelina, os voluntários decidiram regressar à mata junto ao hospital. Às 14 horas de 21 de dezembro, pelo menos 20 pessoas reuniram-se para procurar pela mulher na zona, tendo as buscas demorado cerca de duas horas.
Além destas diligências, os voluntários participaram novamente nas rotas noturnas com ambas as associações. Com o CASA reuniram-se todos os dias às 20 horas no Museu do Oriente, em Alcântara, percorrendo vários locais até às 22 horas. Já a Comunidade Vida e Paz, como faz rotas mais longas, exigiu uma mobilização mais extensa, com ponto de encontro à mesma hora na sede, na rua Domingos Bontempo, em Lisboa, e com passagem por vários pontos até às duas da manhã.
Segundo o mapa interativo a que o Observador teve acesso, os grupos cobriram mais de 30 locais nas buscas, passando, por exemplo, pelo Carmo, pela Praça da Figueira (Rossio) e pelo Martim Moniz, assim como pelas zonas já exploradas anteriormente.
Susana, filha de Avelina, desde cedo acusou as autoridades de “não fazerem grande coisa” para encontrar a mãe. “Essencialmente o que a PSP fez foi lançar um alerta e fazer buscas na mata à frente do hospital, com recurso a cães e drones. Depois disso, está só à espera de notícias”, explicou Susana ao Observador, seis dias após o desaparecimento da mãe, à porta da esquadra de Belém, onde terá ido pedir mais informações.
Ainda que Susana tenha garantido que, “quando os agentes” recebiam “uma chamada do 112”, iam “verificar a situação”, considerou também que deveria ter havido um briefing que colocasse todos informados sobre o que fazer em caso de possíveis avistamentos.
“No sábado [16 de dezembro] , passei por um agente que estava na estação de comboios de Algés e perguntei se tinha visto a minha mãe. Ele disse que não sabia de nada e eu perguntei se ele não tinha recebido um e-mail. Foi ver e depois disse: “De facto está aqui”, contou Susana, recordando o contacto com aquele agente. “Portanto, o caso não está centralizado. Deve ter sido um e-mail que circulou, que alguns leram e outros não.”
Com o acumular da revolta e de forma a sensibilizar as autoridades para o caso de Avelina, e também para prevenir o desaparecimento de outras pessoas com demência, Susana e o grupo de voluntários decidiram criar uma petição.
Pedia-se a alteração da lei 15/2014 – que consolida a legislação em matéria de direitos e deveres do utente dos serviços de saúde –, de forma a sancionar aqueles que não cumpram o direito ao acompanhamento de pessoas em situação de vulnerabilidade, como terá sido o caso de Avelina. Pedia-se também o reforço da segurança nos hospitais e a criação de um ponto de contacto único para casos de desaparecimento. À data da publicação a petição deste artigo contava com mais de 9.500 assinaturas, era dirigida a várias entidades, nomeadamente Governo, Assembleia da República, Ministério da Saúde, PSP, Polícia Judiciária e Câmaras Municipais.
Durante a manhã de 26 de fevereiro, um homem que passeava cães estava a caminhar junto à mata do hospital, mais precisamente na zona atrás do Externato de São José, quando um dos cães que passeava, sem trela, correu para longe. Segundo apurou o Observador, quando o homem o seguiu, deparou-se com um cadáver em avançado estado de decomposição. Nesse momento contactou de imediatamente a polícia.
A notícia de que um cadáver tinha sido encontrado junto ao Hospital de São Francisco Xavier foi avançada pouco depois pela CNN Portugal, tendo logo levantado suspeitas de que se tratava do corpo de Avelina – sobretudo devido à proximidade do hospital. O Observador contactou na altura a filha de Avelina, que disse ainda não ter recebido qualquer informação das autoridades.
Horas depois, contudo, o grupo de voluntários que participou nas buscas veio confirmar que se tratava do corpo da mulher desaparecida há mais de dois meses.
“A dor é enorme, mas foi o desfecho de que a família – e todos nós, de certa forma – precisava”, escreveu o grupo, numa publicação no Instagram. “Agradecemos o enorme carinho, apoio e solidariedade de toda a comunidade que se mobilizou em torno deste caso.”
“Infelizmente, a nossa Avelina não voltará a casa, mas as nossas assinaturas não serão em vão. Vamos lutar para que não haja mais Avelinas e levar a petição ao Parlamento”, garantiu ainda.
Publicação no Instagram do grupo de voluntários
Ao Observador, uma fonte da PJ explicou que a identificação do corpo foi conseguida com base numa combinação de fatores secundários. Nomeadamente, o facto de o vestuário coincidir com o que Avelina estava a usar no dia em que desapareceu, a existência de uma pulseira amarela – apesar de não ter elementos identificativos –, e a aliança que a mulher usava no dedo, que evidenciava o nome do marido e a data do respetivo casamento.
Além disso, a mesma fonte revelou que a investigação continua a decorrer, para apurar se houve uma intervenção direta de terceiros, apesar de não existirem indícios de crime.
O advogado da família, João Medeiros, explicou ao Observador que, apesar de não ter agido judicialmente contra o hospital, apresentou uma “queixa-crime contra incertos” no Departamento de Investigação e Ação Penal de Lisboa, para pedir “o apuramento das responsabilidades”. “Como é evidente, temos a noção de que a negligência terá existido no âmbito do hospital, mas a família não sabe quem foram as pessoas concretas que estavam ao serviço nesse dia ou quem deu instruções para não ser permitida a entrada do marido”, acrescentou.
Um dia após o aparecimento do corpo, a administração do Hospital de São Francisco Xavier manifestou-se solidária com a família e “totalmente disponível” para colaborar com as entidades que estão a investigar o caso.
“A confirmação do falecimento é, também para esta Instituição e para os seus profissionais, motivo de tristeza e consternação, pelo que aqui se deixa a expressão de solidariedade neste momento”, refere um comunicado enviado às redações.
Três dias depois de ter aparecido o corpo, a Inspeção Geral das Atividades em Saúde (IGAS) comunicou que tinha aberto um inquérito “às circunstâncias em que ocorreu o desaparecimento, no dia 12 de dezembro de 2023, de uma idosa após sair do Hospital de São Francisco Xavier".
No esclarecimento, enviado ao Notícias ao Minuto, acrescentou ainda que este processo pretende "avaliar o risco de abandono das instalações do estabelecimento de saúde, designadamente do serviço de urgência, por doentes que apresentem vulnerabilidades que possam induzir esse comportamento".