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São 800 m2 onde a transparência dos materiais quer permitir que a natureza respire, numa comunhão que se pretende muito aberta entre interior e exterior, artificial e natural
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São 800 m2 onde a transparência dos materiais quer permitir que a natureza respire, numa comunhão que se pretende muito aberta entre interior e exterior, artificial e natural

Kengo Kuma & Associates

São 800 m2 onde a transparência dos materiais quer permitir que a natureza respire, numa comunhão que se pretende muito aberta entre interior e exterior, artificial e natural

Kengo Kuma & Associates

Que história escreveu o Centro de Arte Moderna e o que já sabemos sobre a reabertura e o futuro?

Após quatro anos em obras, reabre a 21 de setembro. Vai mostrar a Coleção, mas também Leonor Antunes. Exibe um outro jardim, nova entrada e uma outra arquitetura. Qual o lugar do CAM, antes e agora?

Em agosto de 2020 fechava as portas para ser remodelado. Previa-se que as obras terminassem em 2023, mas acabaram por se arrastar por quatro anos. A coleção e as atividades artísticas que nos habituámos a ver a partir daquele entrada secundária na Rua Dr. Nicolau Bettencourt, contudo, foram-se espraiando pela cidade e, mesmo a comemorar 40 anos de vida, o Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian não voltou a casa. O regresso, cada vez mais aguardado, vai fazer-se finalmente a 21 de setembro. Cara lavada, mais crescido e com vontade própria, chega para chamar mais atenção, rivalizando, no bom sentido da palavra, com o irmão mais velho, o Museu Gulbenkian, instalado no edifício sede. Coleções diferentes, públicos e propósitos muito distintos, a mesma génese ou o grande princípio da fruição da arte. Ao mesmo tempo, um denominador comum: um magnífico jardim, agora também ampliado, a envolver quem os visita e a criar uma atmosfera única de contacto com a natureza bem no centro da cidade.

Esse já tinha sido o ponto de partida na década de 60 do século passado, quando se construiu a sede da Fundação Gulbenkian, e voltou a sê-lo em 1980, quando se projetou o CAM. De resto, o parque/jardim que rodeia os edifícios, uma área de 7,5 hectares, foi sempre saudado com a mesma deferência que os próprios edifícios. O alargamento do espaço ao ar livre, mais 8 mil metros quadrados, o equivalente a um campo de futebol, e que resulta da anexação do espaço contíguo ao parque original a sul – entre a Praça de Espanha e o Largo de São Sebastião da Pedreira — e que estava sob a alçada da Fundação Eugénio de Almeida (uma área propriedade de Maria Tereza Eugénio de Almeida) foi mesmo um dado decisivo para a renovação do Centro de Arte Moderna que agora culmina. O projeto de revitalização dessa área ficou a cargo do paisagista libanês Vladimir Djurovic, que alicerçou o trabalho na visão dos portugueses Gonçalo Ribeiro Telles e António Viana Barreto.

Já a ligação entre o antigo e o novo jardim será feita através do monumental hall do edifício do CAM criado pelo arquiteto japonês Kengo Kuma. São 800 m2 onde a transparência dos materiais quer permitir que a natureza respire, numa comunhão que se pretende muito aberta entre interior e exterior, artificial e natural. Esse espaço de passagem entre dois lugares, que é já a imagem de marca do edifício renovado, compõe-se de uma pala construída com “escamas” de azulejos brancos e revestidos a madeira por dentro, estendendo-se de nascente a poente ao longo de todo o edifício originalmente idealizado na década de 80 do século XX pelo britânico Leslie Martin. A nova estrutura orgânica vem acentuar a ligação com todo o espaço ocupado pela Fundação e que sempre marcou por seu lado a ligação que os lisboetas e todos os visitantes têm com a instituição.

“Sem grande espalhafato, sem ter que se impor, bem sintonizado com o espaço e com uma personalidade forte”, diz o arquiteto Pedro Campos Costa sobre o novo edifício

Kengo Kuma & Associates

“A renovação do Centro de Arte Moderna vem dar uma nova visibilidade à Gulbenkian e recolocar Lisboa nos circuitos internacionais”, acredita o arquiteto Pedro Campo Costa. “A requalificação do anterior edifício levada a cabo por Kengo Kuma acrescenta realmente imenso ao antigo CAM e a todo o espaço, de uma transparência incrível significa uma enorme mais-valia para a cidade. É um trabalho de arquitetura extremamente sensível e muito, muito interessante”. Campos Costa, que visitou o novo edifício na companhia do arquiteto japonês que o idealizou fala de uma “experiência” para definir a sensação de atravessar o novo CAM que se ancora numa estreita relação entre “o jardim, a escala do edifício e da pala que o caracteriza”. “Olhando para o projeto no papel, ou em fotografia, podemos pensar que aquela pala é despropositada, mas quando estamos no local, percebemos que é lindíssima, maravilhosa, impressionante. Atravessá-la é de facto uma experiência sensorial”, afiança Pedro Campos Costa. “Sem grande espalhafato, sem ter que se impor, bem sintonizado com o espaço e com uma personalidade forte”, descreve o edifício. O arquiteto e curador, “numa comparação injusta” com outras duas estruturas recentes da museografia lisboeta assinadas por grandes nomes da arquitetura, o Museu dos Coches, de Paulo Mendes da Rocha, e o MAAT, de Amanda Levete, lembra a dificuldade de relacionamento com a cidade do primeiro edifício, “uma nave espacial, exemplo de uma arquitetura fora do sítio”, e aponta “o autismo” do segundo relativamente à escassez de condições museográficas do seu interior, apesar da boa relação com o exterior, para agora defender que “a remodelação do CAM é exemplar”. “Foi dado à cidade um ótimo edifício que recolocará também a Gulbenkian e o CAM no circuito internacional dos grandes museus europeus”, considera.

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Cristina Veríssimo, arquiteta e também curadora, responsável pela programação da última Trienal de Arquitetura de Lisboa, que também já visitou o novo CAM, garante que a “diferença é brutal” em relação ao edifício antigo. Classifica como “generosa” a nova entrada do espaço expositivo e fala em “questões de luz muito atrativas”, frisando que o aumento do espaço em termos de área útil para a coleção faz todo o sentido, permitindo que o “investimento da fundação a nível da arte moderna e contemporânea possa ser muito significativo e que a coleção possa ser mais revisitada e de forma mais diversificada”. Diz Cristina Veríssimo: “O edifício concebido por Leslie Martin ficou datado a dada altura enquanto equipamento cultural. Este é um espaço mais aberto, acrescenta, é muito rico do ponto de vista dos materiais e é muito bonito. Tem muitos detalhes e todos bem feitos. É de tal forma sensorial que mesmo estando no exterior nos sentimos acolhidos. A pala, que protege do sol, é o elemento mais emblemático do edifício, é icónico. Vai ficar na memória de quem o visitar e nesse sentido o CAM já conseguiu, enquanto espaço museológico, estar mais próximo do público. Além disso, a nova entrada, pela Rua Marquês de Fronteira, dá-lhe uma verdadeira abertura à cidade. Por outro lado, há que realçar a capacidade que houve em manter o que era importante do trabalho de Leslie Martin, nomeadamente a manutenção do mezanino que criou nos anos 80”.

O grande destaque na inauguração do CAM é dado à coleção, que põe em exposição pela primeira vez as aquisições mais recentes, em "Linha de Maré", com curadoria de Helena Freitas, Leonor Nazaré e Ana Vasconcelos, na novíssima e muito aguardada Galeria da Coleção. E também em nome individual — a honra cabe a Leonor Antunes.

Kengo Kuma (n. Japão, 1954) quis trazer para Lisboa um conceito arquitetónico com base na tipologia Engawa, que se traduz tradicionalmente num caminho protegido pelo beiral do telhado, que não é totalmente interior ou exterior e que se encontra frequentemente nas casas mais antigas japonesas, e que aqui serve de receção ao visitante e o introduz em simultâneo no interior do espaço e no seio do jardim, esbatendo fronteiras entre esses dois mundos. A função que cumpre acaba assim por ser dupla: levar quem se passeia pelo jardim a visitar o Centro de Arte Moderna e levar quem visita o Centro de Arte Moderna a passear-se pelo jardim. O convite à cidade está permanentemente aberto e põe em diálogo os vários edifícios da Gulbenkian criando um circuito fluído e agregador. “Criámos uma fusão perfeita, onde a arquitetura e o jardim dialogam em  harmonia. Inspirados pela essência do Engawa, abrimos uma nova relação com o exterior, convidando os visitantes a abrandar e a fazer deste espaço o seu próprio espaço. A ideia de suavidade e transição estende-se ao interior do CAM, onde desenhámos novos espaços, replicando a ligação do edifício ao jardim e à luz exterior”, diz Kengo Kuma.

O Engawa dera já ânimo à Gulbenkian e ao novo perfil do CAM durante todo o último ano. A Temporada de Arte Japonesa chegou a Lisboa para comemorar os 40 anos do Centro de Arte Moderna em julho do ano passado e assinalara de forma muito expressiva a sua presença pela cidade. Agora vai apenas restringir-se fisicamente ao novo espaço expositivo onde as mostras de Go Watanabe, onde o artista questiona a nossa perceção da realidade através de imagens distorcidas em 3DCG de objetos do quotidiano, numa experiência sensorial em câmara lenta extrema, e de Yasuhiro Morinaga, uma instalação sonora multifacetada, polifónica e imersiva, terão lugar de destaque no Espaço Projeto e na Sala de Som do CAM, respetivamente. A sua inauguração será o culminar de uma colaboração frutífera entre diferentes artistas e instituições culturais japoneses e da diáspora japonesa e Portugal concebida pelas curadoras Emmanuelle de Montgazon e Rita Fabiana. No fim de semana inaugural, em setembro, espaço ainda para várias performances, concertos, sessões de poesia, debates e outras práticas artísticas que vêm do Japão incluídos no programa de eventos live arts a acontecer no jardim.

"da desigualdade constante dos dias de leonor": detalhe da obra de Leonor Antunes em exposição no CAM a partir de setembro e a obra e Ana Hatherly que a inspirou

Nick Ash

Ainda com um pé no Japão e outro em Portugal, ou um braço no Brasil, o CAM celebra Fernando Lemos (Lisboa, 1926 – São Paulo, 2019), o fotógrafo e artista multifacetado lisboeta que se radicou em terras de Vera Cruz e que foi um dos primeiros bolseiros Gulbenkian e seguramente o primeiro a deslocar-se até ao Japão para estudar caligrafia. É dessa sua relação como o Oriente que nasce a mostra O Calígrafo Ocidental, a decorrer até 20 de janeiro de 2025 no Espaço Engawa do novo Centro de Arte Moderna.

Mas, claro, apesar de tudo, o grande destaque na inauguração do CAM é dado à coleção, que põe em exposição pela primeira vez as aquisições mais recentes, em Linha de Maré, com curadoria de Helena Freitas, Leonor Nazaré e Ana Vasconcelos, na novíssima e muito aguardada Galeria da Coleção. E também em nome individual — a honra cabe a Leonor Antunes (Lisboa, 1972) com a exposição da desigualdade constante dos dias de leonor, que retoma o título de um desenho de Ana Hatherly da Coleção do CAM, e que ocupará a nave e o mezanino. Leonor Antunes, baseada em Berlim desde 2005, inaugura também a nova estratégia expositiva da casa e que marcará a programação futura do CAM, uma carta branca a cada artista convidado a expor em nome próprio para trabalhar a sua obra com os trabalhos que quiser da Coleção CAM, fazendo a sua própria curadoria daquele que é considerado o melhor espólio de arte contemporânea portuguesa. “É com enorme prazer que faço parte deste novo ciclo do CAM. Aceitei o convite de Benjamin Weil [diretor do CAM] para fazer uma curadoria da coleção do CAM em simultâneo com a exposição das minhas obras, que faz sentido à luz da minha prática e também pelo facto de poder estar rodeada de artistas que foram e continuam a ser importantes para a minha formação enquanto artista”, afirma Leonor Antunes. A artista traz ao CAM uma instalação imersiva concebida para a totalidade do espaço da nave, que questiona a invisibilidade das mulheres na história da arte moderna, tendo como mote o  trabalho quase desconhecido de Sadie Speight, a arquiteta e designer britânica que colaborou com o primeiro projeto de arquitetura do CAM, concebido no início dos anos 1980 e assinado pelo galardoado Leslie Martin. A proposta de Leonor Antunes inclui “uma escultura de ‘chão’ em cortiça com embutidos de latão e linóleo, cujo padrão modificado parte de um desenho original para um único tapete realizado para os pais da artista e designer Marian Pepler, e um conjunto de outras esculturas que se propagam no espaço, criando uma experiência multissensorial e orgânica que transforma o espaço arquitetónico da galeria. Esta ativação do espaço convoca gestos ancestrais e saberes tradicionais e utiliza materiais naturais e orgânicos como a cortiça, a madeira, as missangas de vidro, o latão, o couro, entre outros”.

Já a seleção de obras do acervo do Centro de Arte Moderna feita por Leonor Antunes favoreceu trabalhos de artistas mulheres e de práticas artísticas historicamente menos valorizadas, muitas das quais mostradas aqui pela primeira vez, abrindo a Coleção a novas associações e leituras.

"Queremos ser um interface entre os projetos artísticos mais ousados e um público diversificado. Sendo os jardins da Fundação Calouste Gulbenkian um local muito procurado, concebemos o CAM como um lugar onde as pessoas podem regressar vezes sem conta e incluir a experiência da arte na sua rotina, como fazem com um passeio no parque."
Benjamin Weil, diretor do CAM

A novidade, de resto, em fusão com o risco são um dos traços mais claros da experimentação. E o CAM nasceu assim, nasceu como espaço experimental dando os primeiros passos através de um ambicioso projeto programático, o ACARTE (Serviço de Animação, Criação Artística e Educação pela Arte), que não sobreviveria a 1990, mas que continua, hoje, a trazer saudades, tornadas expetativas em torno do futuro deste novo CAM, que a atual direção pretende que seja “ousado” e que as palavras de Benjamin Weil definem da seguinte maneira: “O CAM é uma nova instituição, com 40 anos de história e uma extensa coleção: um lugar onde assenta o futuro. Queremos ser um interface entre os projetos artísticos mais ousados e um público diversificado. Sendo os jardins da Fundação Calouste Gulbenkian um local muito procurado, concebemos o CAM como um lugar onde as pessoas podem regressar vezes sem conta e incluir a experiência da arte na sua rotina, como fazem com um passeio no parque. Ofereceremos a todos a oportunidade de fazer uma visita curta ou desfrutar de uma experiência mais prolongada. O essencial é participar. É isto que significa, para nós, estarmos centrados nos artistas e orientados para o público”. Vago q.b., como manda a etiqueta em hora de prenúncios e antevisões, mas alargado o suficiente para cair nas boas graças da vontade de todos.

“O CAM continua a ter um papel muito importante na promoção da sua coleção e naquela que é a história da arte do século XX em Portugal, mas, também, como lugar de experimentação e de risco, naquilo que foi e que deve ser ainda a dimensão herdada do ACARTE”, diz ao Observador Isabel Carlos, diretora do CAM entre 2009 e 2016. A curadora, recentemente escolhida para dirigir o Pavilhão Azul, que vai albergar a Coleção de Julião Sarmento, mais um equipamento da antiga EGEAC, agora Lisboa Cultura, com abertura prevista para o final deste ano, na Avenida da Índia, lembra a extraordinária importância do Centro de Arte Moderna à data da sua inauguração, quando era o primeiro museu de arte contemporânea a abrir na Península Ibérica. “Foi uma marca de grande contemporaneidade, ainda não havia o Museu Reina Sofia, em Madrid, nem o MACBA [Museu de Arte Contemporânea de Barcelona], nem Serralves.” Isabel Carlos destaca do acervo CAM as obras de Amadeo de Souza-Cardoso, “as melhores”, de Paula Rego, “as fundamentais”, a coleção de arte britânica, frisando que o que se espera é que a partir de agora haja forma de “contextualizar ali a arte portuguesa e todo o conhecimento sobre a história da arte contemporânea em Portugal, quer através das exposições temporárias, quer através da ativação da coleção em termos expositivos, sem que isso faça com que o CAM deixe de antever o que se está a passar a nível internacional”.

Ainda com um pé no Japão e outro em Portugal, ou um braço no Brasil, o CAM celebra Fernando Lemos (Lisboa, 1926 - São Paulo, 2019), o fotógrafo e artista multifacetado lisboeta

Catarina Maria Gomes Ferreira

De orientação esperançosa, José Luís Porfírio, critico de arte que exerceu funções de diretor do Museu de Arte Antiga entre 1996 e 2004, revive a necessidade da existência de um verdadeiro museu de arte contemporânea, lembra o poder económico da Fundação Calouste Gulbenkian, ontem como hoje, para tornar viável a fruição permanente dos Souza-Cardoso, por exemplo, “um núcleo do primeiro modernismo fundamental”, mas também dos ingleses dos anos 60, frisando, no entanto, as dificuldades de uma instituição “muito majestática, embora aberta” para levar a cabo “manifestos de novas intenções”, sobretudo num tempo, o atual, em que “a política de contenção” passou a fazer parte da casa. José Luís Porfírio desafia, no entanto, o novo CAM a mostrar o que vale nem que seja pela “responsabilidade” de ser quem é e de se apresentar ao público depois de quatro anos fechado.

Com uma perspetiva histórica muito vincada, Pedro Lapa, curador que já dirigiu o Museu Nacional de Arte Contemporânea – Museu do Chiado, bem como o Museu Berardo, lamenta que o CAM, nos seus 40 anos de vida, não tenha assumido o papel de museu de arte moderna, que a sua coleção tão bem patentearia, mas celebra a criação, por parte da Gulbenkian, de bolsas para artistas que desde a década de 60 permitiram aos portugueses ir estudar para o estrangeiro. “Esse é um facto de uma importância gigantesca para o panorama nacional e aquilo que condicionou a transformação que a arte portuguesa sofre desde então, esse foi um programa verdadeiramente valioso. Tornou-se depois evidente, com a constituição da Coleção, a necessidade de criação de um espaço para a arte moderna e contemporânea. Mas o projeto foi feito apressadamente, ao invés do que tinha acontecido com o magnífico edifício Gulbenkian”, explica. Mesmo assim, continua Pedro Lapa, “havia a expetativa de que o CAM pudesse constituir-se como um museu de arte contemporânea portuguesa e integrar-se na rede de exposições internacionais de grande qualidade, dado o prestígio que a Fundação tinha na época. Mas não foi essa a decisão da administração. As grandes exposições que por cá passaram, bastante protocolares, não tiveram caráter de continuidade e muito menos programático. E a afirmação do CAM como parceiro das importantes estruturas europeias acaba por não acontecer também nos anos 90, mas a presença da coleção no CAM foi importante para a criação de uma perspetiva sólida sobre o século XX em Portugal. O que se nota é que, a partir de um determinado momento, a coleção do século XX não tem estado exposta. Como consequência há a perda de referencial sobre o que é a história da arte em Portugal, traduzindo-se isso num esquecimento aceleradíssimo e extremamente perigoso sobre diversos tipos, épocas, vertentes… O efeito que essa ausência tem no próprio mercado de arte sobre nomes fundamentais da história da arte portuguesa do século XX, sobretudo de meados e inícios do século, é enorme, esses nomes estão completamente esquecidos e desvalorizados.” Da análise de Pedro Lapa surge também outra certeza: “O CAM tem seguramente a melhor coleção de arte portuguesa do século XX, e teria idealmente de ter ali um lugar de permanência”.

“Neste momento, há condições para que o CAM possa dar um sinal claro da clarificação do lugar e da posição estratégica que quer ocupar no panorama português. A oportunidade é muito boa.”
Alexandre Melo, crítico e curador de arte

Com uma política de aquisições que se manteve ativa ao longo dos anos, porém, o CAM tem efetivamente tudo para mostrar o que guardam as suas reservas, e, obviamente, para expor as obras que mais recentemente chegaram ao acervo. Para a inauguração do novo espaço, a mostra Linha de Maré, vai apresentar uma centena de obras de diferentes tipologias artísticas, nomeadamente pintura, desenho, vídeo, fotografia e escultura, que ficarão expostas até maio de 2026, naquela que será a primeira exposição de longa duração da Coleção. Das 99 obras expostas, muitas são compras recentes nunca antes apresentadas no CAM, por artistas como Mónica de Miranda, Filipa César, Graça Pereira Coutinho, Kiluanji Kea Henda e Paulo Nozolino. Encomendado para esta exposição, Gabriel Abrantes apresenta um novo trabalho em vídeo. Sendo que a maioria das obras contemporâneas presentes dialoga com uma seleção de obras modernistas, por forma a ilustrar a abrangência temporal da coleção, ao mesmo tempo que fixa linhas de tensão entre esses diferentes períodos. Organizada à volta de grandes instalações, Linha de Maré vai evoluindo no espaço através das relações que essas obras de grande escala conferem às outras obras que se situam perto delas. Em termos gerais, estas instalações traduzem um conjunto de ideias que subjazem à escolha das peças: “transgressão (da ditadura portuguesa), manifesto (o primeiro manifesto ecológico artístico português), interioridade (da experiência que se retira da obra), mutação (tecnológica, pós-humana) e evocação (de uma ligação real com o mundo vivo).”

“É essa âncora histórica que o CAM representa e que teve um papel formativo nas nossas vidas que faz com que a reabertura daquela estrutura venha criar outro dinamismo na cena artística contemporânea da cidade e do país”, diz Sara Antónia Matos, diretora do Atelier-Museu Júlio Pomar desde 2012. “Lisboa vai encontrar uma nova dinâmica com a abertura de cada vez mais estruturas culturais. Agora foi o MUDE, vai ser o CAM, depois o Pavilhão Azul, há o novo MAC – CCB, o MAAT, enfim… cada instituição tem a sua função, nenhuma se vai sobrepor à outra, cada uma tem o seu lugar e trabalha de forma diferente na constituição de um sistema artístico pujante e capaz de pluralizar visões. A chegada do CAM é um bom auguro! Já se sente. Há uma vontade crescente entre os programadores de trabalhar em conjunto e em complementaridade. Aproxima-se um bom momento, onde a cidade vai fervilhar!”

Obras de Mónica de Miranda e Antony Gormley, que vão fazer parte da exposição "Linha de Maré", vai apresentar uma centena de obras de diferentes tipologias artísticas até maio de 2026

Intuição, impressão, desejo de Sara Antónia Matos traduzem-se nos votos de Alexandre Melo para o renovado CAM: “As maiores felicidades para a Gulbenkian nesta nova etapa!” O crítico de arte e curador tem ainda na memória o tempo, absolutamente necessário, em que “o CAM teve um papel fulcral como polo de uma ideia de instituição ou dinâmica culturais que se veio depois a chamar-se de arte contemporânea e que, mais tarde, através de múltiplas iniciativas, continuou a exercer” e que só veio a desvanecer-se “com a criação do Ministério da Cultura, de ação muito inconsequente, e com o aparecimentos de estruturas como a Culturgest, o CCB, Serralves, o MAAT, bem como das grandes coleções privadas como a Coleção Berardo ou a Coleção Ellipse, e até com a chegada de acervos como o de Armando Martins. Foram estas instituições que fizeram com que o lugar do CAM fosse reposicionado e, até certo ponto, que a instituição Gulbenkian tivesse que repensar o que devia e o que podia fazer. Houve períodos de muita hesitação, de grande desfasamento. O surgimento de grupos com dinâmicas próprias, endógenas, não estavam previstos pelo CAM, aconteceram sucessivas metamorfoses em relação às artes visuais. E a posição do CAM mudou devido a essas alterações no mapa e foram sendo feitas tentativas de repensar de forma estratégica o novo lugar do CAM”, observa Alexandre Melo. “Neste momento, há condições para que o CAM possa dar um sinal claro da clarificação do lugar e da posição estratégica que quer ocupar no panorama português. A oportunidade é muito boa”, garante.

“Penso que as instituições culturais em Portugal quanto mais dependentes do poder político pior, se estiverem ligadas ao poder central então, têm um peso que limita e inibe a sua ambição e imaginação estratégica. Chegam a ser irritantes, como é o caso do CCB, que vai andando para trás e para a frente e não se percebe maior imaginação. Outras, porém, como o MAAT e Serralves têm notável vitalidade. No entanto, o grupo artístico e cultural Gulbenkian é o único que se pode colocar em pé de igualdade com os grandes do mundo. Nada impede que assim continue a ser. O CAM, a vertente mais contemporânea da Gulbenkian, pode continuar a ter o papel mais importante na cidade e no país, quer do ponto de vista da coleção que tem, como das potencialidades financeiras, e pode efetivamente ombrear com os grandes, e reassumir esse papel sem ter que substituir, rivalizar ou competir com nada. Está na primeira divisão. Pode trabalhar ao mais alto nível, tem a melhor coleção de arte feita em Portugal no século XX. Pode, portanto, tudo!”

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