Entre desenhos espalhados pelo chão, caixotes embalados, escadotes abertos e alguns projetores, Rui Chafes discute detalhes técnicos com a equipa, como os jogos de luz, a banda sonora ou a distribuição de peças no espaço. Há mais de 30 anos que faz exposições de escultura, mas a azáfama, a exigência e as dúvidas parecem permanecer intocáveis. “Faz parte”, desabafa. Chega à sala onde dará esta entrevista, lá fora ouvem-se gruas a funcionar no jardim, local onde até fevereiro irão morar algumas das suas peças, senta-se rapidamente e, antes de começar a falar, tira um pequeno papel do bolso e aponta poucas palavras com a primeira caneta que encontra à sua frente. “É para não me esquecer”, justifica.
Desde 2005 que o artista não expunha em Serralves, mas “Chegar Sem Partir” é “especial”. A exposição irá ocupar várias salas do museu e uma grande parte do parque com peças feitas numa fase inicial da sua produção artística, em 1986, e outras pensadas propositadamente para este momento – caso da “Travessia”, uma obra subterrânea que irá ficar permanentemente no jardim da instituição — numa vénia à sua diversidade, consistência, precisão e rigor. “Não é uma retrospetiva”, faz questão de sublinhar.
Rui Chafes é um dos escultores mais relevantes dos nossos dias, recorda como decidiu a sua vocação numa noite e as dificuldades no início da carreira, explica o prazer de desenhar, a dificuldade em escrever – a exposição terá uma caixa com as cinzas dos textos que já queimou — e a paixão pelo universo cultural alemão, mas também pelo ferro, “um modo de vida e não um material”.
É um com um fato especial, luvas, óculos e auriculares de proteção que trabalha sozinho no seu ateliê no Guincho, explorando o ferro, o fogo e a cor preta, a mesma que veste todos os dias. “Nos dias mais alegres chego ao cinzento.” A sua inspiração e os seus pontos de partida acontecem na rua e nas pequenas coisas, vendo além do que é mais óbvio. Acredita que a arte não é sinónimo de comunicação, defende que não tem nada para transmitir aos outros e o que faz não é autobiográfico. Não pretende que o seu ofício chegue ao maior número de pessoas possível, isso até seria estranho, e prova que é no cruzamento com a fotografia, o cinema, a literatura ou a dança que se coloca mais em causa e aprende outros métodos.
Sente-se um homem de sorte, “uma sorte consciente” que faz questão de agradecer todos os dias, revela que trabalha “noite e dia”, mas assegura que não está cansado. “Estou a pensar a começar, ainda não sei nada.” Seguro, direto, discreto e sem medo das palavras, Rui Chafes não tem receio da crítica, relativiza prémios, distinções e a curiosidade dos outros sobre si, não se deixando influenciar ou condicionar por isso, afinal, o que faz parece ser tão natural como a vontade de continuar.
Tem a fama de não gostar de dar muitas entrevistas e de ser um homem de poucas palavras. Isto corresponde à realidade?
Não sei.
Não sente necessidade de falar sobre o que faz, a sua profissão?
Não gosto, mas sei fazê-lo. Não gosto porque as pessoas às vezes ficam só com uma maneira de se aproximarem do trabalho dos artistas e há muitas maneiras para isso. Acho muito mais interessante quando as pessoas são confrontadas com a sua própria experiência das obras do que quando já têm uma espécie de justificação ou de guia de utilização das peças. O que os artistas dizem não é muito importante e o que se verifica é que os artistas dizem uma coisa e fazem outra, não convém ligar muito ao que os artistas dizem.
Não se leva muito a sério, portanto.
Não e acho que estou cada vez mais assim.
Porque decide estudar escultura? De onde veio este interesse? Queria ser veterinário.
Para um jovem descobrir o que quer fazer não é fácil, a menos que já nasçam com uma convicção de que querem ser médicos ou juízes. A maioria das pessoas em criança quer ser astronauta e eu também. Não tinha animais em casa, mas sempre gostei muito de animais, então achava que queria ser tratador de animais. Para um jovem é muito difícil e às vezes até muito duro saber com que idade saber o que quer fazer da vida, há pessoas que nunca sabem e passam a vida toda sem o saber, eu sempre desenhei muito desde criança, mas não esculturas.
O que desenhava em criança?
Desenhava os meus sonhos, mais pessoas, e, tal como hoje, desenhava compulsivamente, por acaso ainda tenho alguns desses esboços guardados. A escultura surgiu numa noite em que com uns amigos fui mostrar desenhos ao José Almada, arquiteto e filho do Almada Negreiros, fui a casa dele e ao ver os desenhos deu era um escultor e nessa noite decidi o que queria ser.
Até aí nunca lhe tinha passado isso pela cabeça?
Não. Por isso é que é preciso os jovens prestarem muito atenção ao que está dentro deles, mas também o que as pessoas à sua volta lhes dizem, porque acredito que há observações que podem mesmo mudar as nossas vidas. Acredito que as palavras podem mudar a vida de alguém.
Estudou em Lisboa e depois continuou a sua formação na Alemanha. O seu interesse pela cultura e literatura alemãs começa bem cedo, porquê?
O primeiro interesse é o da música, da pintura e da literatura. Foram paixões que ganhei. E pela língua alemã que para mim é língua mais bonita do mundo, é uma língua muito sistemática, é uma construção, é língua arquitetónica, em que as peças se encaixam rigorosamente. O inglês, por exemplo, é uma língua muito ambígua, em que não há género, no alemão tem três géneros, é a língua da precisão e a precisão sempre me interessou enquanto método de pensar, trabalhar e fazer esculturas.
Continuar a expor o seu trabalho no país, tem um significado especial?
Sim, é uma segunda casa mental. Vou bastantes vezes lá e tenho feito bastantes trabalhos lá, quando estou lá sinto-me em casa. Isto acontece com os jovens que têm a sorte de estudar no estrangeiro, quase sempre ficam com uma ligação muito especial e emocional a esses sítios.
Nunca pensou viver lá?
Pensei e ainda hoje penso, é um sítio onde me sentiria muito feliz. Fiquei lá temporadas e meses, mas quando terminei os estudos, tive a sorte, sou uma pessoa de sorte, de ter um ateliê feito, onde hoje ainda trabalho, em casa dos meus pais, perto do Guincho, é uma sorte. Entre ficar na Alemanha e arranjar um ateliê e construir um caminho, fiquei em Portugal onde já tinha todas as condições emocionais, económicas e de trabalho reunidas.
Em 1986 faz a sua primeira exposição individual em Lisboa e um ano depois começa a usar da sua matéria prima de eleição: o ferro pintado de preto. Como descobriu este material? Ainda na faculdade?
Sim, na faculdade experimentei muitos materiais, madeira, plástico, mármore, entre materiais precários a outros mais perenes, e em 1988 comecei a trabalhar sistematicamente só em ferro porque descobri que era o material da minha natureza, do meu corpo, da minha alma e do meu coração.
Diz que o ferro tem tanto de vida como de morte e é associado a utilidade. De que forma é que o vê no mundo real e artisticamente e de forma o trabalha com o fogo?
Até ao modernismo, o ferro nunca foi um material artístico, era algo absolutamente utilitário no ambiente doméstico, militar e agrícola, só chega ao universo artístico no século XX com o Picasso, o Rudi Gonçalez, Marcelo Smith, passa do mundo prosaico para o mundo da inutilidade. Faço parte de uma tradição, da escultura em ferro do século XX, mas para mim continua a ser muito forte a presença da idade que é um material que vem do centro da terra e que é o trabalho com o fogo, a mim interessa-me muito o fogo, sinto-me bem com ele.
Diz que o fogo é mais purificação do que outra coisa qualquer, porquê?
Há razões simbólicas e culturais para isso, os corpos são cremados no hinduísmo e no budismo. O fogo destrói e traz vida, tudo o que é impuro é queimado. Quando temos frio acendemos fogo, o que se passa entre duas pessoas é fogo, às vezes é gelo, a nossa vida é combustão. Estamos destinados a arder, respirar é combustão. O fogo é uma imagem muito real desse processo.
Não corre o risco de se esgotar em si e no seu trabalho?
Não, estou apenas a começar.
Se um dia lhe apetecer trabalhar com outra coisa, vai fazê-lo?
Não vai acontecer. Não acredito em materiais, para mim o ferro não é um material, é um modo de vida. Ainda não sei nada, estou a aprender e a descobrir.
Com o ferro faz peças enigmáticas e misteriosas que recusa chamar objetos, chama-lhes sombras. Porquê? Há esse lado obscuro na sua arte?
Isso não me cabe a mim dizer. Um candeeiro é um objeto, cumpre uma função, tem tamanho, forma, pode ser tocado e utilizado. A escultura, como eu a entendo, não é um objeto, é um movimento que está parado, é um estado de transição e não é definitiva. Uma escultura pode ser destruída, é apenas um modelo de pensamento, uma hipótese, para mim não há esculturas definitivas. Não são objetos que podem ser agarrados ou que se possam utilizar, são apenas uma demonstração possível de uma ideia, de um acontecimento ou de um momento. É como um desenho, mas em vez de ser em papel é em ferro e, por isso, demora mais tempo a fazer. É apenas uma proposta, não hás esculturas definitivas. Para mim, de certeza que há outros escultores que pensam de outra maneira.
Como é o seu processo criativo? Solitário ou coletivo? Acontece na rua ou no seu ateliê no Guincho?
É essencialmente solitário, mas depende da dimensão das peças. Há peças em que o sentimento se torna coletivo, não no meu atelier, onde estou sempre sozinho e não tenho assistentes, mas em fábricas ou na pequena indústria com que trabalho já há 30 anos, aí sim torna-se coletivo, para realização de peças maiores ou para acabamentos. O meu ponto de partida é sempre extremamente solitário.
O que é que pode representar um ponto de partida, esse fio da navalha?
Tudo.
O local das peças, a dimensão, a escala, condiciona esse processo criativo ou é só uma consequência?
O processo criativo é bastante simples. Eu tenho que ver a escultura antes.
Idealizá-la?
Vou na rua, olho para uma parede e está lá uma escultura, depois é só fazer. Se eu não a vir, nunca vou conseguir fazê-la. Basicamente antes de fazer uma escultura já tenho que a ter visto. Depois de a ver, começo a tentar desenhá-la, que é muito difícil. Depois entre o desenho e a memória da escultura que já vi, começa a nascer a escultura em ferro.
E o local onde ela vai estar exposta?
Nem todas as esculturas funcionam assim, mas é muito importante trabalhar com locais já destinados.
O seu trabalho tanto pode estar numa floresta como numa praia, num museu, numa igreja, isso pode condicioná-lo de alguma forma?
Totalmente. Gosto de ter uma proposta para um determinado sítio, porque aí penso, imagino e desenvolvo a peça partir de uma situação concreta, se é naquela flores ou naquela praia.
Mas a peça pode ser transportada para outro sítio completamente diferente.
Sim, mas então deixa de ser aquela peça, sobretudo se forem esculturas mesmo muito pensadas para um sítio, aí deixam de existir. Algumas são mais vagabundas, mais vagueantes, e podem ir de um sítio para outro, outras nascem mesmo naquele sítio.
E consegue decidir essa questão logo à partida?
Sim, costuma ser uma coisa mais ou menos clara.
Há muitos desenhos que não dão em nada?
Muitos. Diria que 10% dos meus desenhos foram materializados em escultura. Nem tanto, menos, provavelmente.
Porque é que não seguem viagem?
Não nasceram, não corresponderam àquilo que tinha visto, por isso, não tiveram capacidade de nascer.
Essa sensibilidade de ver além daquilo que é óbvio, sempre esteve consigo ou foi algo que foi adquirindo ao longo do tempo?
Provavelmente a maior parte dos artistas visuais são viciados em observar, desde crianças, se calhar. Uma criança que desenhe muito é uma criança que tem prazer em olhar, tem intensidade no olhar. Há crianças que não desenham tanto e há adultos que não desenham nada, dizem que não têm jeito… nem acredito nisso, acho que desenhar é olhar, mas acho que todos os artistas visuais, de uma forma ou de outra, têm essa capacidade de olhar.
Diz que a arte não é comunicação e que não faz o que faz para transmitir uma mensagem ou porque tem algo a dizer, mas também defende que a arte só faz sentido quando há uma interação.
A arte só existe quando alguém a vê, nem que seja só uma pessoa, não precisa ser uma multidão. Basta uma pessoa ver uma obra de arte para ela passar a existir e isso não tem necessariamente a ver com comunicação. Comunicar é eu querer transmitir uma ideia concreta, uma ordem ou um conceito e fazê-lo segundo um código, que podem ser palavras, letras, cores, como os semáforos ou os cartazes de rua. A arte que me interessa não tem nada de concreto a transmitir, é um acordar de forças entre as pessoas. Quando uma pessoa vê uma obra de arte, acorda nela forças, imagens e memórias que traz dentro de si e com as quais constrói outra imagem e outras memórias. Isso não é transmitido por escrito, se assim fosse, não valia a pena fazer a obra de arte. Aliás, se eu pudesse explicar uma obra de arte não precisava de a fazer. É esta nebulosa de sentimentos, de memórias e de olhares que existe quando uma obra de arte se apresenta ao mundo, acontece sempre essa passagem, essa transmissão de formas e de ideias.
Essa troca não é comunicação?
Não, comunicação é passar uma ideia claramente a outrem, ou um sentimento, ou um significado, uma dúvida.
A arte não tem de ter um significado?
Tem o significado que as pessoas lhe atribuírem e isso foge ao meu controlo. Não tenho nada pessoal a dizer às pessoas e o meu trabalho nunca foi uma expressão pessoal de nada. Quando pensamos na arte gótica de uma catedral feita por artistas anónimos ou das estátuas budistas no leste asiático, não existe ali nada pessoal a transmitir. O que há é a construção de formas que continuam a trazer-nos ideias, sentimentos e dúvidas que todos nós partilhamos.
Mas a missão da arte é sempre fazer pensar, sentir, questionar, refletir?
Não sei se é uma missão, acho mais interessante a arte que me faz pensar do que arte que seja só hedonística.
Atrair essas massas e chegar ao maior número de pessoas nunca foi uma intenção sua?
Não, pelo contrário, como dizia o Oscar Wilde, a popularidade é a coroa de louros na cabeça da má arte. Acho um grande mal-entendido confundir a qualidade de uma manifestação artística com o número de espetadores ou visitantes, até desconfio disso. Acredito que as boas coisas na arte, por natureza, não conseguem chegar a muitas pessoas porque muitas vezes lidam com códigos, formas e linguagens muito subtis para as quais as pessoas têm de estar preparadas e não é porque qualquer tipo de discriminação. Se os códigos forem populares e reconhecidos por uma grande parte das pessoas, naturalmente que chegarão a mais gente. Se forem códigos mais subtis, com raízes mais profundas e com dúvidas mais complexas, por definição haverá menos pessoas disponíveis para reconhecer esses códigos.
Acha que vai ser sempre assim?
Acho. Infelizmente as pessoas não conseguem beber todos esses códigos e tornar a sua experiência de vida mais subtil e mais complexa. Seria melhor que todos tivessem essa sorte, mas para a maioria essa experiência acaba por ser muito básica, muito ligada aos valores mais básicos da existência. Por todas as razões, ou por ignorância, por falta de tempo ou por falta de vontade. Não são razões reprováveis, é assim, há sempre menos pessoas que conseguem ter uma experiência na sua passagem no mundo mais profunda.
Isso condiciona-o enquanto artista, esse modo de viver mais básico, mais elementar?
Não, não pode. Cada artista faz o que pode, o que está ao seu alcance, o que lhe cabe na mão, o que está dentro de si e não o que está dentro dos outros.
Trabalhando para todos, mesmo não sendo compreendido por todos, é isso?
Sim… Acho que é isso que os artistas fazem.
A sua arte também se cruza com outras artes, como é que essa multidisciplinaridade o alimenta e contribui para a sua escultura?
Gosto muito de trabalhar com artistas que admiro e que são importantes para mim. Muitas vezes são de outras áreas, áreas muito distantes de um ateliê de ferro, como o cinema, a dança, a música ou a fotografia. Cada vez que contacto com esses trabalhos, o meu trabalho coloca-se em dúvida, tenho outras maneiras de o olhar e isso torna-se muito importante para mim.
Muda de alguma forma o seu método?
Muda. Se calhar não diretamente, mas assim no espaço mais alargado, muda.
Tem vários livros lançados, diz que a sua obra imprime algum tipo de poesia, apesar de não se considerar um escritor. Como convive nessa dualidade?
Não sou de todo um escritor, sou um miserável escritor. Gosto sobretudo de línguas e de palavras. Gosto de aprender línguas, de falar línguas diferentes, gosto de perceber a maneira como as frases são construídas. Interesso-me muito pela fala, pela língua e pela escrita, é uma consequência do meu interesse pela palavra escrita. Às vezes escrevo coisas, mas custa-me muito, é muito difícil. É a atividade mais difícil que existe à minha volta. Se tiver que escrever um texto de meia página posso passar três meses a pensar nele. É mais fácil fazer escultura.
Mas tem vontade de mergulhar nessa dificuldade?
Não. Quase sempre escrevo por qualquer tipo de necessidade, ou porque alguém me convidou ou porque senti necessidade de exteriorizar qualquer coisa dessa forma.
Diz que a arte é fricção entre a nossa alma e o mundo exterior. A sua escultura tem muito mais do que se passa lá fora, na rua e nos outros ou tem alguma alguma coisa de si, da sua memória, da sua infância, das suas referências?
Memórias não tem, a minha escultura não é autobiográfica, é tudo mundo interior, ou seja, o que capto do mundo exterior, mas não de forma autobiográfica.
De que forma faz essa captação?
É um mistério. Acho que, como acontece com quase todos os artistas, o mistério mantém-se. Como é que as formas aparecem? De onde é que elas veem? Não se sabe. Em alguns casos é muito concreto, quando um artista está a usar uma forma reconhecível para ele ou para os outros, é mais fácil dizer esta imagem vem deste determinado sítio. Mas de onde é que vêm as imagens do Pollock? Não sei.
Em Serralves o seu trabalho ocupará o museu e o parque, entre peças antigas, reconstruídas ou pensadas propositadamente para este espaço. Como foi estruturada a exposição?
Uma exposição num museu pode ter várias direções, pode ser uma retrospetiva, uma grande instalação, pode ser uma exposição antológica, mas há aqui um ponto principal que é a arquitetura. Se os museus tiverem uma arquitetura indiferente, a aproximação aos espaços e à narrativa das exposições é completamente diferente do que se um museu, como é o caso, for uma obra de arquitetura. A coluna vertebral da exposição é, obrigatoriamente, a arquitetura, eu, pelo menos, vejo assim. Quando comecei a pensar na exposição optei por usar cada sala de uma forma muito concreta, aqui as salas são bem definidas, não são amorfas. Fazendo isso, quis que houvesse uma sequência de experiências e que fosse também um salto no tempo. Haverá peças feitas ontem e reconstruções de peças antigas que já tinham sido destruídas, por exemplo, uma peça de 1987 é efémera e aqui foi reconstruída através de fotografias. Uma outra de 1998 também foi reconstruída e adaptada ao espaço. O arco temporal pode dar a ideia de que esta é uma exposição retrospetiva, mas não é de todo.
Cada sala corresponde a uma fase cronológica?
Não está organizada assim. Está organizada como um spa: tentamos ter água quente, água fria e banho turco com dezenas de peças.
Uma delas será subterrânea e ficará de forma permanente no Parque de Serralves. Que relação é que o seu trabalho tem com a natureza?
Aqui não estamos numa floresta, estamos num parque e é um parque completamente planeado, tem ruas, espaço urbano, eixos, é um parque domesticado com vários percursos. Propus fazer uma peça permanente no jardim, mas que não se veja de fora, ou seja, tem de se penetrar na terra e só se vê lá dentro. Queria que as pessoas tivessem uma experiência solitária de encontro consigo próprias, sem ninguém presenciar, para que sejam confrontadas com os seus próprios medos e as suas próprias caminhadas por dentro da terra.
Por isso se chama travessia?
Não é por isso, mas é também.
Como é que vê o estado da arte em Portugal e não só, sobretudo comparando com a fase em que começou?
Felizmente mudou tudo e tudo está em permanente mudança, é sinal de que as coisas estão vivas. Felizmente que para os jovens que estão agora a começar há muito mais hipóteses e muito mais campo de trabalho do que havia na minha altura, não há comparação. Hoje para os jovens saltar a fronteira e ir estudar para fora, não tem nada a ver. Quando eu comecei, a menos que tivesse recursos extremamente altos e uma capacidade financeira anormal, uma pessoa ia a Espanha e já era bom, passava a fronteira e tinha que mostrar o passaporte. O mundo mudou, a Europa unida mudou tudo, as pessoas que nasceram há pouco tempo nem fazem ideia do que era. Tudo o que havia para saber e para se fazer era uma luta, havia poucos artistas que conseguissem viver do seu próprio trabalho, poucos conseguiam viajar e havia poucas galerias. A Quadro, a EMI-Valentim de Carvalho, a Graça Carmona e Costa, são grandes heróis da altura. Tudo mudou, ainda bem que os jovens têm muito mais colecionadores e muito mais hipóteses, na minha altura não era nada assim.
Sentiu muitas dificuldades?
Sempre fui uma pessoa de sorte, nasci com sorte. Uma sorte consciente que agradeço todos os dias.
Mas a sorte também dá muito trabalho, dizem.
Isso dizia a Amália. No meu caso concreto, o que posso dizer é que trabalho de manhã à noite. Acho que a sorte é fantástica, facilita muito a vida, mas é preciso trabalhar muito. Há pessoas que dizem que não sabem como é que arranjo tempo para trabalhar tanto, eu de facto tenho noção que trabalho muito.
Está cansado?
Não.
Há um pouco a ideia, talvez seja preconceito, de que a escultura atrai menos a atenção das pessoas do que outras artes, mesmo dentro das plásticas. É mesmo assim?
Não gosto nada de escultura, nunca gostei.
Não gosta de ver?
Não me interessa a escultura. Vejo exposições de tudo, mas a escultura só em si não me interessa, interessam-me as forças que estão por trás das esculturas, interessa-me a escultura enquanto movimento, enquanto força. Vejo exposições de artistas mais jovens ou mais velhos, tento acompanhar o que se faz, gosto de ver o que os meus colegas fazem… a palavra “colega” é assim um bocado estranha, mas pronto. Interessa-me a escultura gótica medieval e dois ou três escultores na atualidade e do século XX, não mais do que isso.
Interessa-lhe mais a pintura, por exemplo?
Acho que sim, há muito mais coisas interessantes noutras áreas do que na escultura. É muito difícil, não é para todos.
Isso explica que não seja tão mediática e tão entendida?
Também, mas explica mais coisas. Por exemplo, se eu analisar a história da arte, a relação entre pintura realmente importante e escultura realmente importante, será de 10 para 1. Sempre houve mais pintores interessantes do que escultores, o que não quer dizer que não tenha havido escultura, só que existe muita escultura que é ginástica, não confundo escultura com ginásio, não é bem a mesma coisa. A escultura tem de ter a mesma magia que a pintura, a fotografia ou o cinema têm, mas é uma arte muito difícil.
Quando o Ai Weiwei passou por Serralves disse que a arte deve sempre representar o nosso tempo, mas tornou-se decorativa e não progressista. Concorda?
Acho que não. Vejo a arte como representando o ‘não-tempo’, partindo do que está perto de nós. A arte que me interessa é intemporal, não é do meu tempo e espero que fique além do meu tempo.
Disse que tudo mudou, felizmente para melhor. Não há nada que tenha mudado para pior?
Claro que há, mas não consigo fazer uma lista. No geral, acho que é melhor haver mais hipóteses, mais possibilidades e mais portas para bater, mas também é pior a ignorância e a falta de conhecimento. Quando tinha 18 anos, amava a escultura de Giacometti, como ainda amo, e sei que hoje chego à Escola de Belas Artes e há miúdos de 18 anos não sabem quem é o Giacometti. Isso mudou para pior. As pessoas têm menos tempo e disposição para ler, toda a gente vai à Wikipedia, poucos pegam num livro para ler porque tudo pode ser consultado rapidamente online. Antigamente os conhecimentos que eram passados lentamente, da avó para a mãe e da mãe para a filha. Como o fazer tricot? Hoje há um tutorial no Youtube e em cinco minutos a pessoa pensa que já consegue fazer tricot, mas não foi a avó nem a mãe que ensinaram. As coisas aceleraram-se, mas tornaram-se mais superficiais, isso mudou para pior. Acho que a noção de memória está a ficar relativa, porque as pessoas mal têm uma dúvida vão ao Google e em três segundos têm a resposta, fazemos tudo isso. Antigamente todos tínhamos um repositório de memórias na cabeça e lembravamo-nos do nome do escritor e de datas de nascimento. Não sei se é pior ou melhor, é a mudança, mas se alguém entra em Belas Artes e não sabe quem é o Giacometti é um problema grave. Muita coisa mudou para melhor, nomeadamente na quantidade de campo que se abriu às pessoas, mas a ignorância não é uma coisa boa.
Trabalha em Portugal, há um novo ministro da Cultura. Que expectativas tem?
Não tenho nenhuma. Não sigo o assunto.
Mas reconhece que há alguma política cultural feita em Portugal?
Não estou dentro do assunto, não me interessa. A política cultural de um país é essencial para a afirmação de uma nação, só quem for completamente cego é que não percebe isso. Tem que haver apoios a artistas, sobretudo os que mais necessitam, tem que haver apoio às artes performativas e às artes que vivem de um palco e de bilhetes, como a dança ou a música. Não sei se este governo ou se este ministro é melhor do que o anterior, não sei responder. O chamado mundo ocidental divide-se entre os países que têm uma política cultural que apoia os seus criadores, os seus artistas, e os que não têm.
E Portugal?
Podia ter muito mais. É uma injustiça incrível ver pessoas com vidas precárias ou a viver no limiar da pobreza porque não têm qualquer tipo de apoios, algo que em países no Norte da Europa são vistos como prioridade. As artes performativas e o cinema vivem muito bilheteira, por isso ou há hábito por parte público ou então têm que existir apoios. Nas artes plásticas podemos vender uma obra de arte e isso não é a mesma coisa que ter dez pessoas a comprar um bilhete de quatro euros. Há sectores culturais que são extremamente frágeis, são a cara de um país e deviam ser apoiados.
Em 2015 ganhou o Prémio Pessoa, foi o segundo artista plástico a consegui-lo. Mudou alguma coisa?
Talvez na curiosidade.
Como é que lida com a curiosidade dos outros?
Acho legítima. O Prémio Pessoa é um prémio que tem um prestígio nacional muito grande e que as pessoas respeitam muito, tem a vantagem de premiar pessoas de várias áreas, da ciência, da economia, não só da cultura num sentido estrito. É legítimo as pessoas ganharem mais curiosidade acerca dos premiados.
Tem tendência a relativizar os prémios?
Nem sei se a atribuição do prémio é justa, há tantos artistas que poderiam merecer o prémio, até mais do que eu, não sei. É sempre circunstancial e é o momento em que determinado número de pessoas reconhece a validade do trabalho de alguém, seja ele um artista, uma cientista, o que for. Claro que é agradável, claro que é bom, mas não acho que seja melhor do que antes.
Que projetos ou exposições tem programadas para este ano?
Tenho a exposição no Pompidou, com o realizador Pedro Costa e o fotógrafo Paulo Nozolino, até 22 de agosto. Foi muito importante para nós, deu muito trabalho, é uma exposição muito complexa. Em setembro tenho uma mostra mais pequena na fundação Árpád Szenes—Vieira da Silva e depois tenho finalmente um livro, com a editora Pierre Von Kleist, com todos os meus desenhos que estiveram expostos em Guimarães, em 2018, e em Almada em 2019. É uma editora de fotografia e é o primeiro livro que vão fazer noutra área. São 340 desenhos, já estamos a trabalhar há três anos nisto e agora está pronto para ser impresso, poderá ser lançado em setembro, eventualmente até aqui, em Serralves. É um livro enorme e os Pierre Von Kleist não trabalham com pressa, só fazem o que querem, como querem, não há maneira de apressá-los.