Até que enfim! — é o mínimo que se pode dizer… Há quantos anos se espera, afinal, que a individualidade artística de Sarah Affonso (1899-1983) se revele por inteiro, saindo enfim da sombra de seu marido, o magnético José de Almada Negreiros, a quem sobreviveu 13 anos? Sequer o centenário do seu nascimento, ocorrido quando ainda não estava lançada a atenção devida às artistas modernistas do nosso país, lhe pôde valer de muito — para não ter de dizer que valeu de bem pouco —, celebrado que foi com um documentário televisivo e uma única e modesta mostra, em Viana do Castelo, coincidente, aliás, com o tópico inspirador desta exposição na Fundação Calouste Gulbenkian — que serve de antecâmara ao que a partir de Setembro se há de revelar no Museu Nacional de Arte Contemporânea, quando as duas exposições ficarão em diálogo por quase quatro semanas.
Diálogo ou conversa (este admirável vocábulo) é, precisamente, o estimulante programa desta galeria vizinha ao Museu Gulbenkian e à Biblioteca de Arte da fundação, onde rapidamente se constata a míngua da bibliografia acerca de Sarah Affonso desde sempre, permitindo que o livro de sua nora, Maria José Almada Negreiros (Conversas com Sarah Affonso, publicado em 1982 pela Arcádia e três vezes reimpresso: em 1985 pel’O Jornal, em 1989 pela Imprensa Nacional e em 1993 pela Dom Quixote) se instituísse como a principal referência da artista e pudesse ir valendo — para o bem e para o mal, na ausência de monografias e de estudos aprofundados apontando a uma retrospectiva que nunca houve — enquanto registo pró-memória e talvez um contraponto directo às bem recebidas Memórias de Fernanda de Castro (2 vols., 1986-87, pela Verbo), a escritora casada com António Ferro, e sua grande amiga também.
Defendida em 2004, a tese de mestrado de Maria João Gomes Pedro, Sarah Affonso: vida e obra, jamais chegou às livrarias e às bibliotecas (nem a sua autora tentou ir mais adiante), e o extenso artigo de Idalina Conde para uma Análise Social de 1995 pouco mais é do que um pot-pourri do citado discurso directo de Sarah, atado às pressas com o cordel do preconceito de “injustiça” viril em casais de artistas — no caso, bem desmentida por retratos de Almada, mostrando Sarah como uma mulher forte, poderosa, determinada (v. A Cena do Corpo, p. 261; e Exposição em Cascais 1996, p. 175).
De facto, o que esta belíssima exposição vem mostrar é que a artista, se acaso foi injustiçada, o foi pela crítica e a história da arte, incapaz de perceber, como haveria de escrever Sílvia Chicó num tardio 1978, que “a fusão da modernidade com a voluntária representação ingénua, onde a experiência do bordado tem grande peso, dão à obra de Sarah Affonso uma dimensão lírica raramente encontrada na arte moderna portuguesa”.
Essa rara dimensão lírica alcançou precisamente nos primeiros anos do seu casamento, num regresso sazonal ao Alto Minho litorâneo onde a artista vivera a sua infância, um cume de produção artística e de virtuosismo técnico que ora a aproxima da pintora brasileira Tarsila do Amaral (1886-1973), caso muito evidente no quadro em que mulher e criança carregam feixes à cabeça, ora invoca a concepção de pintura de Eduardo Viana (1881-1967), como talvez no maravilhoso retrato de duas lavradeiras de lenço ao pescoço.
E porque “tudo são quadros feitos à espera de pintores, e eu sinto isso profundamente”, o quotidiano rural seduz a artista que pinta uma camponesa amamentando o filho, uma menina apreciando um boi que pasta, ou duas lavradeiras num momento de repouso, em densas e pastosas massas de cor que em poucos anos vão diluir-se completamente, cedendo o lugar a um cromatismo mais alacre, em representações que começam a incorporar objectos e motivos do artesanato minhoto e da sua festiva e religiosa maneira de viver (incluindo um ex-voto: Sereia, 1939, 120 x 80 cm), que se transplantam também para bordados — retomando uma técnica em que Sarah Affonso foi exímia e que já mostrara no Salão Bobone, em 1928 —, desenhos a grafite, tinta da china e estilográfica, ou pinturas a guache e aguarela. Em especial dois quadros mais antigos, Piquenique de 1918 e Varinas de 1923 (aproximando-se da obra de Alvarez) — e não podemos ver aqui o seu auto-retrato —, convencem-nos de quão talentosa pintora ela foi nos seus anos de Paris e Lisboa.
Identificando-se com o Minho, Sarah Affonso usou um grande pendente em forma de coração, como numa fotografia que Joaquim Vieira descortinou (Almada Negreiros, 2006, p. 123), e o marido desenhou-a assim c. 1935, um retrato a dois creio que raramente visto (v. ibid., p. 110). Um ou outro bem poderiam ter sido mostrados aqui.
Este espaço expositivo da Fundação Gulbenkian tem sido dedicado, sob a direcção inovadora de Penelope Curtis, ao diálogo — sempre a tal boa conversa… — de artistas com artes decorativas ou tradições culturais antigas, como sucedeu recentemente com
“Francisco Tropa: o Pirgo de Chaves”, de 22 de Fevereiro a 3 de Junho, e antes sucedera com “Praneet Soi e Terceira Fábrica: de Caxemira a Lisboa, passando pelas Caldas da Rainha” e “Ana Hatherly e o Barroco”, entre outros, e é por isso que agora podemos ver ali dezenas de artefactos de arte popular — como os representados no pequeno quadro de Mário Eloy (Mulher com barros ou Mulher da barraca, c. 1923-25) que abre a exposição — que o Museu Nacional de Etnologia aceitou que fossem retirados ao mais obscuro ostracismo a que sucessivas direcções daquela instituição grosseiramente os condenaram.
Razão mais do que suficiente para elogiar a persistência das curadoras Ana Vasconcelos e Vera Barreto, idealmente celebrando tal conquista, em boa tradição local (já agora…), com um estridente foguetório minhoto e um alegre, retumbante alívio suplementar: “Até que enfim! Caramba!!!”
[Museu Calouste Gulbenkian, Galeria do Piso Inferior, de quarta-feira a segunda-feira, das 10 às 18h30, até 7 de Outubro de 2019]
Imagem principal deste artigo: Varinas, 1924; Óleo sobre tela / Oil on canvas; 43,5 x 40,5 cm; Coleção particular / Private collection; Foto: Catarina Gomes Ferreira