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Jeff Bierk

Jeff Bierk

Se as canções de The Weather Station não acordarem o mundo, que se dane o mundo

Em “Ignorance”, a canadiana The Weather Station ginga cheia de graça sobre o desastre climático. É um disco sobre o planeta e sobre nós, íntimo e expansivo, imenso e urgente. Vamos ignorá-lo?

Durante alguns anos, alguém que falasse de The Weather Station a outra pessoa habilitava-se a levar com uma pergunta como resposta: “Quem?”. Tamara Lindeman, a mentora e criadora deste projeto musical, uma canadiana de 36 anos que diz sentir-se uma felizarda por aos 20 e poucos anos não ter escolhido um nome artístico mais desajeitado para a carreira do que “estação meteorológica”, já faz música há mais de dez anos mas até aqui era uma perfeita desconhecida da maioria do público, sobretudo na Europa, até do público indie dado a descobertas musicais mais obscuras.

Não é certo que isso mude com o novo disco, Ignorance, acabado de editar — um álbum gravado antes da pandemia (misturado pós-Covid-19) com as alterações climáticas em pano de fundo do início ao fim, mas onde Tamara Lindeman continua a dar atenção àquilo a que se sempre dedicou, a psique humana, as nossas ações e pensamentos, o modo como nos relacionamos, os nossos medos e contradições, os motivos que nos impelem a fazer isto ou aquilo. Mas já é altura de despertarmos para ela, ainda mais agora que fez o melhor disco da carreira.

[A capa do novo álbum de The Weather Station:]

@ D. R.

Das comparações com Joni Mitchell às passagens discretas por Portugal

Os discos de The Weather Station eram, até hoje, lançados em pequenas editoras independentes do Canadá, primeiro, e, nos últimos anos, numa pequena editora dos EUA cujo selo de bom gosto está na proporção inversa à sua popularidade. Falamos da Paradise of Bachelors, que nos últimos anos revelou discos tão preciosos para os fãs de música americana e da música de guitarras quanto Way Out Weather, do guitarrista e cantor Steve Gunn, Thought Rock Fish Scale, dos (conterrâneos canadianos) Nap Eyes, Open to Chance, da cantautora Itasca, 50, o álbum que marcou o regresso do histórico inglês Michael Chapman às edições, What In The Natural World, de Jake Xerxes Fussell, ou os mais recentes Monarch Season, de Jennifer Castle, e Snapshot of a Beginner, nova investida dos já mencionados Nap Eyes.

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Até aqui, estávamos nós a escrever, The Weather Station era o protótipo perfeito do talento pouco conhecido, marginal: quem a ouvia exultava com a delicadeza das suas canções, o apuro da sua escrita, a beleza simples dos seus acordes de guitarra, o tom cristalino, belo e frágil q.b. da sua voz.

A popularidade das suas canções era diminuta, mas quem a ouvia comparava-a inevitavelmente à Joni Mitchell dos primeiros anos de carreira: a mesma capacidade de se virar para dentro e escrever com sofisticação sobre emoções e relações (expondo menos, é certo, a sua intimidade na música), a mesma simplicidade nos arranjos descarnados e nas melodias delicadas, a voz feminina usada como contadora de histórias e como veículo de reflexões cantadas sobre amor e desamor, intimidade e amizade, a música como ferramenta capaz de transformar inquietações em banda sonora reconfortante e comovente.

Quem a ouvia e domina a arte de fazer canções, quem melhor sabe distinguir o que é uma boa canção e o que é uma canção deslavada — porque as faz bem — também conseguia aperceber-se que Tamara Lindeman tem jeito para as cantigas. A portuguesa Francisca Cortesão, dos Minta & The Brook Trout, vocalista e compositora que também assinou nos últimos anos a composição de temas como “Anda Estragar-me os Planos” (feita a quatro mãos, com Afonso Cabral), “Delicadeza” (cantada por Cristina Branco) ou “I Can’t Handle The Summer” (cantada pelos Minta), chegou a convidá-la para um concerto do seu projeto musical colaborativo, They’re Heading West, na Casa Independente em Lisboa. Também chegou, se a memória não nos falha (a idade não perdoa) e não sonhámos com isso, a dividir o microfone com a canadiana noutra das raríssimas passagens de The Weather Station por Portugal, na primeira parte de um concerto de Damien Jurado no Musicbox em 2016.

Tamara Lindeman com os They're Heading West na Casa Independente em 2015

Vera Marmelo

Apesar de um álbum editado em 2017 em que a canadiana se afastava já das melodias mais simples e delicadas, procurando expandir a sua música preenchendo-a com arranjos mais complexos e até elétricos — em alguns momentos aproximando-se do folk-rock –, The Weather Station parecia caminhar, já com metade da década dos “trintas” passada, para ficar em definitivo na galeria de “melhor artista que quase ninguém conhece”. Em parte, há que assumir, porque a procura de um espaço novo evidenciada nesse álbum homónimo não era acompanhada de inspiração da mesma ordem.

O novo álbum é um passo aventureiro e ambicioso nas suas canções, pelos arranjos mais complexos e grandiosos (porque preenchidos de instrumentos) com que Tamara Lindeman as revestiu. E para já a crítica mostra-se interessada, da NPR ao The New York Times, da revista canadiana Exclaim! à norte-americana Paste Magazine, da prestigiada publicação musical Pitchfork à Rolling Stone, quase tudo a desfazer-se em elogios.

É importante notar, ainda assim, que o esqueleto das canções anteriores de The Weather Station já era um espanto, mesmo que com um álbum menos inspirado (de 2017) no caminho: era como se os temas de The Weather Station fossem, até aqui, super-modelos de pijama, jogadores da bola que fazem suspirar corações vestidos com roupa de casa. O que acontece em Ignorance é que The Weather Station aperaltou-se e aperaltou as suas canções. Aperaltou-se até com um casaco tão estupendo quanto pouco funcional, uma peça espelhada que funciona como quase manto de invisibilidade, que Lindeman usou nos vídeos dos singles do disco (que ela própria, pela primeira vez, realizou), que vê como uma metáfora para a forma como o público espera ver refletidas nos artistas as suas próprias emoções e inquietações mas que a cantora não usará nos concertos porque é desconfortável, pesado e não lhe permite nem mexer-se muito nem sentar-se.

[O teledisco de “Robber”, single do álbum (atenção ao casaco):]

Há uns meses, outra das figuras da música indie da América do Norte, Ryley Walker, escrevia no Twitter que tinha feito mais um disco com “material sólido B+” e que esse seu disco novo, como a maioria dos álbuns de que gostava, não era nota A e também (porque) “não o quer ser”. Tamara Lindeman parece ter procurado um disco nota A — foi para estúdio, quis fazer canções mais ambiciosas e saiu de lá com uma obra-prima difícil de igualar neste 2021.

Um disco mais de banda: complexo, expansivo, rico na instrumentação

Até aqui, a pérola da carreira de The Weather Station talvez fosse Loyalty, o disco que editou em 2015. Era um álbum em que esta mulher que cresceu num lugarejo rural de Ontario, no Canadá, filha de um piloto de aviação que passava muito tempo fora e de uma mãe doméstica e pintora que a estimulou artisticamente desde pequena, cantava sobre estradas e rios congelados, sobre o valor nem sempre sagrado da verdade (“you always tell me the truth / even when it hurts me or hurts you / could you go a little easy, would it kill you?”), sobre a relação humana com as expectativas.

Em Loyalty, ouviamo-la descrever paisagens naturais como a ouvíamos discorrer sobre a solidão que se abraça e sobre a lealdade mantida a qualquer memória de uma fagulha que seja de paixão (na canção título, a mais Joni Mitchelliana que já fez), sobre a natureza das mulheres tímidas (“to every loneliness, there’s a design / that we witness, you and I, shy women”), sobre complexos triângulos que podem ser só de amizade, sobre como as expectativas amorosas podem ser destrutivas e como é importante a independência no amor (“I don’t expect your love to be like mine / I trust you to know your own mind / As I know mine”).

Nesse disco como nos anteriores, porém, o método de feitura era muito diferente daquele que Tamara Lindeman empregou no novo álbum. A ideia que a dominava antes era que qualquer artifício instrumental corria o risco de ser excessivo, portanto tinha de ser parcimoniosamente usado. Se as canções eram reflexões sobre as vulnerabilidades, as contradições, as dores e a falível natureza humana — dela também –, a baixa fidelidade de som (o lofi) era o que se apropriava, a gravação tinha de ser feita no momento sem grandes invenções.

Mais do que isso: a vertente técnica tinha de estar tão em segundo plano que até uma certa rudeza no som era bem-vinda. Era, como notava um melómano que a entrevistou recentemente, o método Neil Young e Crazy Horse: a ideia de que para a gravação ser genuína, soar a algo vivo e humano e inspirado, “toda a gente tinha de estar um pouco bêbada, toda a gente tinha de estar um pouco pedrada”. Nessa entrevista recente, Tamara anuía à comparação. As drogas e o álcool podiam ser retirados da equação — mas era também a procura de uma honestidade musical que a fazia não embelezar e adornar em demasia o som. E a cantora e compositora explicava: tinha algum medo de perder a emoção e a honestidade que as suas canções emanavam se as enchesse de instrumentos, se as gravasse procurando a estética tecnicamente mais apurada possível.

[Um dos raros concertos online e a partir de casa feitos pela cantora, durante o confinamento de 2020:]

https://www.facebook.com/CityHallLiveSpotlight/videos/2525809841069750

Tamara Lindeman é uma temerosa destemida, por isso — garante a quem a ouve — tende a procurar seguir os caminhos que a atemorizam. Desta vez, pensou: “Porque é que não faço simplesmente um disco que soa realmente bem, num bom estúdio?”. Ponderou: talvez fosse altura de fazer um álbum que fizesse o ouvinte apaixonar-se e sentir-se pequeno no meio de tanta sumptuosidade nos ouvidos, perante um som luxuriante, exuberante.

Para contrabalançar o peso de “esta porra negra” que andou a escrever sobre as alterações climáticas e a forma como ela e outros humanos lidam com o drama ambiental a que já se chegou, a autora quis fazer um disco “divertido”, cheio de ginga e swing, “sonicamente avassalador para os ouvidos”, um daqueles álbuns que quanto melhor o sistema e qualidade de som em que se ouve (pelo menos uns bons headphones…), mais impressionante soa. Um disco impressionista, nesse sentido técnico.

Bastava olhar aliás para a lista de créditos do disco para se perceber que o som que aqui temos é novo na carreira de uma artista que se moveu até aqui genericamente na folk: temos pelo disco bateria e percussões (Kieran Adams, Philippe Melanson, Marcus Paquin e Ian Kehoe), guitarras e baixos (Christine Bougie, Ben Whiteley e a própria Tamara Lindeman), flauta (Ryan Driver), saxofone (Brodie West), voz (Tamara Lindeman e, em duas faixas, Felicity Williams) e vários instrumentos tocados pela autora e por Johnny Spence: de piano acústico aos pianos elétricos Wurlitzer e Hohner, de órgão a sintetizadores Moog e Juno. E ainda temos, em seis canções, uma secção de cordas com arranjos delineados por Tamara Lindeman — com a ajuda de Owen Palett em dois temas — para violino, clarinete, clarinete baixo, viola de arco e violoncelo.

Damien Jurado Performs in Concert in Barcelona

Um concerto de The Weather Station em 2016, em Barcelona, no âmbito da digressão europeia em que assegurou as primeiras partes dos concertos de Damien Jurado

Redferns

O título do disco, Ignorance, pode induzir em erro, indiciando que Tamara Lindeman está a chamar burros aos negocionistas das alterações climáticas — não é bem isso. O que o título quer transmitir é que é a incapacidade de reconhecer a própria ignorância e de dizer “não sei” que leva a certezas de barro, a “conhecimento falso”, à pouca apetência para o auto-questionamento, à aversão a informação nova ou que nos contradiga as convicções, a que não queiramos saber mais sobre um tema desconfortável que a atormenta há dois ou três anos quando reforçou as pesquisas sobre o aquecimento global. Mais complexo do que isso: Tamara encontra a mesma raiz para o ativismo (que pratica) e para o negacionismo, teorias da conspiração e despreocupação face à destruição do planeta (que quer evitar): um medo imenso do futuro, uma raiva enorme motivada pela sensação de incerteza e desesperança quanto ao que aí vem.

As canções traduzem todas essas preocupações, mas se não fossem bem cantadas e bem tocadas, como são, talvez fossem um meio pouco acertado para as expressar. Inspirada, como contou ao The New York Times, pela maneira como Weyes Blood trouxe para a pop alternativa reflexões sobre o planeta e um futuro sombrio (apocalípticas, nesse sentido), Tamara Lindeman foi ao bom pop-rock clássico e solar dos anos 70 e 80, ao jazz-rock e à folk-rock infundida de jazz, que desde logo Joni Mitchell já explorara, buscar inspiração para Ignorance.

O swing e a opulência de instrumentos a dialogar uns com os outros notam-se logo na primeira canção do disco, “Robber”, que destacámos como uma das melhores de 2020 e onde entre cordas, teclas e saxofone, Tamara vai gingando e cantando sobre este ladrão em que “não acreditava”, com quem quando era jovem “aprendeu a fazer amor”, que na verdade teve “permissão” para a agir por “palavras, agradecimentos, leis, bancos”.

Essa primeira cantiga traça um paralelismo entre o capitalismo e a destruição ambiental, os modos de vida contemporâneos que aprendemos a amar e a erosão do planeta — e traça o tom para as seguintes, como a belíssima “Atlantic”, na qual Tamara canta sobre a tensão entre a beleza e a destruição, entre os bons momentos da vida (“my god, what a sunset (…) with a wine in my hand, laid back in the grass of some stranger’s field”) e o desastre ambiental, entre a vontade escapista de fugir a reconhecer que tudo se está a deteriorar em redor (“I should get all this dying off my mind”) e a importância de não nos alienarmos do mundo.

É como se logo à segunda canção, ritmada como se a cantora estivesse acompanhada de uma banda mais jazzística e roqueira do que folkie, Tamara Lindeman mergulhasse a fundo nas nossas relações emocionais com o mundo, na raiz do que nos leva a evitar o desconforto de temas tão tortuosos quanto as alterações climáticas. Ainda melhor é “Tried To Tell You”, com aqueles falsetes nada exibicionistas, com aquele ritmo de dança ligeira, lenta e caseira já com um copo a mais, com aquela voz estupenda a cantar o refrão:

Like the wind on the water
I tried to tell you

That is the way that you want her
I tried to tell you

Para mais tarde nos deixar com a belíssima metáfora de uma árvore inútil num parque de uma cidade a permanecer ali, solitária, como símbolo do que foi destruído em redor:

Some days there might be nothing you encounter
To stand behind the fragile idea that
Anything matters
I’ll feel as useless as a tree in a city park
Standing as a symbol of what we have blown apart

Na verdade este texto poderia prolongar-se canção a canção, tal o meticuloso e laborioso trabalhado revelado nos temas, tal a capacidade de Tamara deslizar com a voz por este festim de instrumentos, acordes e elaboradas texturas rítmicas das canções, por entre crescendos épicos e grooves gingões. Não é um acaso que pela primeira vez na carreira esta canadiana tenha chegado a gravar as composições musicais e instrumentais antes sequer de ter arranjado palavras para temas (foi o caso de “Atlantic”, por exemplo): Tamara Lindeman encontrou aqui um equilíbrio dificílimo entre manter um tom íntimo e suave das canções e arranjos portentosos de banda.

Oiça-se “Parking Lot” e o swing na descrição de um voo de um pássaro visto “fora da discoteca, num parque de estacionamento”, com “o seu pequeno peito a crescer e a cair enquanto cantava a mesma canção, repetidamente, uma vez atrás da outra, sobrevoando o trânsito e o barulho”:

Is it alright if I don’t wanna sing tonight? 
I know you are tired of seeing tears in my eyes
But are there not good reasons to cry?
(…)
I know you are tired of seeing tears in my eyes
But everywhere we go there is an outside

over all of these ceilings hangs a sky
And it kills me when I

you know it just kills me when I
see some bird fly
it just kills me and I
know why

[“Parking Lot”:]

Atente-se a “Separated”, a sexta canção, uma cantora canadiana e a sua vasta banda a dançar sobre a catástrofe ambiental, a voz a parecer que se vai quebrar e estilhaçar, fininha, mas é só um  drible no canto, uma prova evidente de que Tamara Lindemann não é só uma grande escritora de letras e uma grande compositora, é também uma grande cantora.

Repare-se na elegância clássica do piano e da melodia de “Trust”, que poderia ser uma das grandes baladas dos anos 70. Maravilhemo-nos com o ritmo sincopado dessa grande canção que é “Heart” e as suas contradições (“I guess that I’m soft / but I’m also angry”), deliciemo-nos com o encerramento perfeito do disco com “Subdivision”, que nos esvazia de palavras que lhe façam justiça. Depois de Ignorance, o mundo até pode não despertar para The Weather Station, fazer-lhe ouvidos moucos, continuar a perguntar “quem?” O mundo que depois se amanhe com o que perde.

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