Eu sei que ninguém me perguntou nada. E que a minha opinião valerá zero, embora habitante de uma antiga vila-tornada cidade dos arredores de Lisboa, desde há 40 anos. Ou seja, desde que nasci.

Mas a verdade é que a periferia da capital não é um grande bairro social, tal como o Porto, caracterizado pelos seus bairros tão pitorescos e típicos, não pode ser identificado como uma cidade perigosa – pese os locais, até há uns tempos, completamente impossíveis de penetrar. A exemplo, o “Morro da Pena Ventosa” (o bairro da Sé), tão bem descrito por Rui Couceiro, no livro com o mesmo título.

Ainda assim, é com profundo espanto (e revolta!) que desde a pandemia, vejo, sempre que há “problemas”, apelidarem-se as cidades dos arredores de Lisboa, que perfazem a grande área metropolitana da cidade, bairros sociais. Deixa de haver Benfica, Carnaxide, Alfragide, Queluz, Massamá, Cacém, até ao limite que a Serra de Sintra com os seus belos palacetes, impõe.

Nos últimos dias, a Cova da Moura, bairro social problemático (sim!), torna-se a Amadora por inteiro. O Bairro do Zambujal (paredes meias com a Buraca e de onde tantos marchantes saem ultimamente para desfilar no 13 de junho na Avenida da Liberdade, na avenida das “lojas PARA ricos”, também ele problemático, mas onde se localizam várias instituições estatais, como o Laboratório Nacional de Energia e Geologia, a Agência Portuguesa do Ambiente e quase, quase, o Estado Maior das Força Aérea), torna-se apenas Alfragide.

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Já passado o estigma de “cidades dormitório”, muitas delas que se desenvolveram com educação, cultura, comércio (não apenas o de vão de escada), veem-se, ou, “sentem-se”, novamente, no olho do furacão. Quando se colocam todos os bairros, todas as pessoas no mesmo saco — porque para a maior parte dos comentadores políticos e não só somos apenas trabalhadores da construção civil, empregadas domésticas, do comércio a retalho, de cafés, e não licenciados, pós-graduados, doutorados, cujos preços das habitações atiram ou mantêm nos nas mesmas localidades que nos viram crescer –, não há forma de voltar atrás.

Quando, após 1974, as políticas de receber os imigrantes vindos das ex-colónias (falamos de negros e não de “retornados”) falham a toda a ordem, esperamos o quê? Quando não existe integração, quando existe ostracismo, quando existe desconfiança, pobreza, construção de bairros ilegais, esperamos o quê? Quando as escolas não fazem o seu papel vigilante às crianças que sabem estar em “risco”, quando não há — porque não se quer — empenho, quando os pais dos outros alunos os proíbem de brincar, de conviver com os colegas “pretos”, estamos à espera do quê? Quando temos polícias cada vez mais jovens, muitos deles vindos também de bairros sociais, de famílias destruturadas e muitos vítimas de igual violência, com acesso a armas de fogo e com sangue quente na guelra, sendo colocados, exatamente, nas esquadras destes mesmos bairros, estamos à espera do quê?

Mas o essencial seria começar a perceber, de forma mais definitiva, e sabendo que a comunicação social apresenta muita culpa nesta questão, não, os arredores não são um bairro social gigante, no qual, a partir de agora (e como vi ainda hoje na Rua Elias Garcia em Queluz), a polícia tem todo o “pequeno poder” de fazer o que quer, nomeadamente, a quem não paute pelo privilégio da cor branca da pele.

Porque além de um problema social, enraizado ao final de 50 anos, temos um problema racial, que nunca foi apagado. Tal como há 600 anos atrás se achava que éramos donos de parte do mundo e das pessoas que nele habitavam, o mesmo aconteceu há 50 anos, quando tantos ainda achavam que os negros e negras eram propriedade, eram escravos, pese a abolição em Portugal (tardia) em 1869 “em espaço controlado pelo Império Português”, tal como hoje, há quem jure a pés juntos que são todos para voltar à terra deles — exato. Porque temos muitas pessoas, brancas, que estejam com vontade de acartar sacos de cimento, vigas de betão, trabalhar nas limpezas, nas estufas, e a ganhar menos que o salário mínimo. Esperem. Sim, há quem ache que os portugueses de “bem”, brancos, repito!, que vivem no tal bairro social gigante, dormitório, são todos pobrezinhos, sem habilitações literárias, e que podem fazer esses serviços. Podemos. Não me cairiam os parentes na lama. Mas não foi para isso que haja quem tenha feito sacrifícios para que eu estudasse, para que outras pessoas da minha geração estudassem.

Não há porque generalizar, mas generaliza-se. E sim, tem de haver justiça, porque a discriminação existe também, demasiada até. E sim, a revolta vai num crescendo, e começa a ultrapassar as fronteiras e fossos dentro dos bairros sociais, passando para as cidades que os acolhem, entrando pelas casas de todos os quantos habitam nas cidades dormitório.

E sim, é preciso cuidado, porque a paciência de uns não é a paciência de outros, porque a escala social vai-se desgastando e perdendo, porque nem todos podemos morar, como tanto tenho ouvido, em Campo de Ourique, ou no Parque das Nações, ou em condomínios fechados. Todos somos pessoas reais, todos pagamos impostos, podendo ser utilizadores de transportes públicos, cada vez mais insustentáveis e com uma péssima gestão, ou de veículos automóvel privados e individuais. Por isso não, não pensem que tudo é bairro social, porque o próprio conceito, se estivéssemos num mundo ideal, correto, justo, nem deveria existir,

Pobres daqueles que vivem em unicórnios dourados e que não sabem NADA da vida além das suas bolhas de proteção.

Nota: a autora é residente no «bairro social de Queluz».