Numa época marcada por avanços tecnológicos e científicos sem precedentes, incluindo na gestão, é paradoxal observar os desafios críticos que enfrenta o Serviço Nacional de Saúde, com impactos em várias dimensões da sociedade. Na área da saúde mental, que me é cara, a situação é preocupante. De 2021 para cá, a percentagem das consultas de psiquiatria que respeitam os tempos máximos de espera passou de 90% para menos de 50%, mas só 10% dos casos enviados pelos médicos de família conseguem uma consulta. Para consultas de psicologia o problema é ainda maior.
Fica claro, portanto, que há um problema no acesso aos cuidados de saúde no SNS, e um dos principais determinantes é a escassez de recursos humanos. Embora esta se verifique em todas as classes de profissionais, é a falta de médicos que tem feito correr mais tinta. Muitos apontam a abertura de mais faculdades de medicina como solução para esse problema, mas Portugal é já o segundo país da OCDE com mais médicos: 5,6 por mil habitantes, bem acima da média de 3,7. O problema não parece ser, portanto, a inexistência de médicos, mas sim a incapacidade de os contratar. Os baixos salários, transversais a todos os profissionais de saúde, não ajudam, mas não são a única causa. A rigidez dos modelos de contratação e a sua lentidão (dependentes de morosos concursos públicos ou de autorizações da tutela), dificultam uma gestão ágil dos recursos.
Ao contrário dos salários, o orçamento para a saúde tem aumentado todos os anos. Infelizmente, há muito que a regra é que cerca de metade do orçamento anual fique por executar. Dirão os defensores das políticas de saúde recentes que, comparando com anos anteriores, há mais consultas, mais cirurgias e mais urgências. Mas devemos perguntar: e há mais saúde? Para além dos subterfúgios burocráticos que podem contribuir para esses números – o aumento de registos não significa necessariamente um aumento do número real de atos clínicos, e não reflete a atividade clínica informal, que é provavelmente reduzida pela pressão para produzir – importa analisá-los com alguma profundidade. Os números são cegos a muitos problemas que persistem no acesso e qualidade dos cuidados.
Assim, apesar dos números crescentes, a saúde das pessoas está pior. Segundo o relatório Health at a Glance 2023, 13,3% dos portugueses classificou a sua saúde como má ou muito má — 5,2% acima da média da OCDE. Além disso, as despesas diretas dos cidadãos com a saúde foram de 29%, mais 11% do que a média. Por outras palavras, as pessoas têm cada vez mais que pagar por cuidados de saúde, por ausência de resposta do SNS, o que resulta num fosso maior entre ricos e pobres no acesso à saúde.
Mas, se é verdade que o acesso à saúde está a piorar, não podemos ignorar que a procura está simultaneamente a aumentar. O aumento da esperança média de vida incrementa a probabilidade de doenças ligadas ao envelhecimento e uma população mais velha exerce uma maior pressão sobre os serviços de saúde. Mas esse não é o único problema: olhando mais uma vez para a saúde mental, verificamos que a prevalência das doenças mentais comuns, como a depressão e as perturbações de ansiedade, tem vindo a aumentar nas últimas décadas, independentemente da idade — e Portugal é dos países do mundo com as maiores taxas.
Estas doenças representam hoje uma grande pressão para os serviços — estão ambas no top 10 de diagnósticos pelos médicos de família — e tudo faz prever que isso vá piorar. Além disso, a doença mental tem grandes impactos económicos, a começar pela depressão, que é a maior causa de dias de vida doente e incapacidade para o trabalho no nosso país. Mas também devemos fazer a reflexão inversa – qual o impacto da nossa organização social, e em particular do trabalho, na nossa saúde mental?
Olhando para os próximos dez anos é urgente deixar de gerir “urgências”. Deixar de “tapar” os problemas com sucessivos aumentos do orçamento e anúncios de “mais e mais” atos clínicos que não se refletem em melhor saúde, e passar a planear a gestão dos recursos de forma eficiente. Devemos desenhar objetivos para melhorar o acesso aos cuidados para quem fica doente, mas também para aumentar saúde das pessoas de forma a reduzir a procura.
Do lado do acesso, há que descentralizar a gestão do SNS, dando autonomia às unidades de saúde para gerirem os seus orçamentos, nomeadamente para a contratação célere dos recursos humanos de que necessitem em cada momento. As contratações também devem tornar-se mais flexíveis. A rigidez relativa ao número de horas de trabalho e à atribuição de funções, que fica bem clara no regime de dedicação plena vai reter poucos mais dos que já ficariam no SNS – um exemplo de aumento de custos, para obter que resultados? Nos outros casos, não é melhor ter dois médicos a 20 horas por semana do que nenhum a 40?
Em profissões intelectualizadas a produtividade não diminui linearmente com a diminuição do horário de trabalho. Além disso, os aspetos que vinculam médicos ao SNS, como a possibilidade de discutir doentes entre pares, estar associado ao espírito de missão e prestígio das instituições, não são dependentes da duração do horário de trabalho semanal, contrariamente a aspetos repulsivos, como más condições de trabalho, que podem ter a sua tolerância aumentada com a diminuição do tempo de exposição.
Observando o lado da procura, para diminuir a carga de doença, programas de saúde pública e preventiva devem ser prioritários para o investimento público, mas nem sempre merecem a atenção dos decisores políticos, já que, aqui, o prazo de dez anos é curto. Essas medidas exercem efeitos muitos anos depois, mas são a única forma de modificar de forma consistente a saúde da população. Veja-se os exemplos dos rastreiros oncológicos, da prevenção da doença cardiovascular ou da vacinação.
Nesse âmbito, a saúde mental terá de ser uma das áreas de principal atenção – pela enorme e crescente prevalência das doenças mentais, pelo seu impacto económico, mas também pelo seu impacto na restante saúde, aumentando o risco das outras doenças, como as cardiovasculares e metabólicas, com os seus próprios impactos subsequentes.
Porém, intervenções preventivas em saúde mental podem revelar-se muito desafiantes, sobretudo se considerarmos os fatores de risco que se relacionam com a própria sociedade. A esse nível, acumula-se evidência científica de como mudanças na organização do trabalho tem benefícios mensuráveis para a saúde mental das pessoas e, secundariamente, na saúde global das populações. Para o cumprimento deste último objetivo, dez anos serão provavelmente pouco – mas é altura de começar.
Gustavo Jesus é médico psiquiatra, diretor do Serviço de Psiquiatria e Saúde Mental do Hospital de Vila Franca de Xira e diretor clínico do centro PIN – Partners in Neuroscience em Lisboa. É membro do Clube dos 52, uma iniciativa no âmbito do décimo aniversário do Observador, na qual desafiamos 52 personalidades da sociedade portuguesa a refletir sobre o futuro de Portugal e o país que podemos ambicionar na próxima década
Mental é uma secção do Observador dedicada exclusivamente a temas relacionados com a Saúde Mental. Resulta de uma parceria com a Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD) e com o Hospital da Luz e tem a colaboração do Colégio de Psiquiatria da Ordem dos Médicos e da Ordem dos Psicólogos Portugueses. É um conteúdo editorial completamente independente.
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