O período revolucionário está em crise. Com a queda abrupta da valorização dos criptoativos, os mais céticos começam a puxar dos galões e a vangloriar-se porque sempre disseram, que nunca acreditaram nessa história das cripto e obviamente que se trata de um ponzi scheme mais complexo.

Por outro lado, os mais crentes, ou aqueles que tentaram entrar na onda das cripto e investir no fenómeno (full disclosure: o autor deste artigo está dentro deste grupo, e em sofrimento pelas perdas, pelo que, qualquer parcialidade subjacente será justificada), das duas uma: ou estão a tentar lutar contra o pensamento constante de que investiram numa nova Herbalife, ou estão a considerar investir em bots sediados algures no subcontinente Indiano, de forma a inverter tendências no Discord para que o seu JPEG volte a ter a valorização surreal de há um ou dois meses.

Depois desta introdução, e sem ser capaz de fazer qualquer tipo de futurologia sobre o mercado, serve esta segunda parte do artigo para teorizar sobre algumas das aplicações que criptoativos podem ter fora da crypto bubble.

De forma geral e independentes entre si, há três aplicações para a tokenização1.

Tokenização de direitos de formação

Imagine que o Cristiano Ronaldo jogou no Sporting dos 12 aos 23 anos, e o clube decide tokenizar os seus direitos de formação. Agora suponha que o jogador, já no Manchester United, era vendido por 100.000.000,00 € (cem milhões de euros). Teria então o Sporting direito a 5.000.000 € (cinco milhões de euros), correspondentes a 0,25% do valor da transferência vezes 4 anos (entre os 12 e os 15 anos), e 0,50% do valor da transferência vezes 8 anos (entre os 16 e os 23 anos), perfazendo um total de 5% do valor total da transferência somente a título de mecanismo de solidariedade da FIFA.

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Esse valor viria a ser distribuído entre o clube e quem tivesse comprado tokens associados aos seus direitos de formação. E todas as vezes que o Cristiano viesse a ser transferido, o Sporting teria direito a esta compensação, nos mesmos moldes e percentagens, apenas variando o valor, conforme o valor total da transferência.

Tokenizando estes direitos de formação, o clube disponibiliza uma fração destes direitos a quem queira adquiri-los, podendo adquirir tantas frações quanto o clube disponibilizar. Isto criaria vários efeitos e, entre eles, para o clube, uma alternativa de financiamento rápido (isolando um só jogador poderá parecer pouco face às necessidades de um clube mas se forem disponibilizados tokens de vários jogadores, ou até packs de jogadores, os possíveis ganhos de financiamento rápido e eficaz podem ser interessantes – imaginando clubes com camadas jovens promissoras, como são o caso do Vitória de Guimarães, Vitória de Setúbal, Leixões, entre outros, o financiamento aqui poderá até ser bastante importante para os clubes).

Seria também uma jogada de marketing revolucionária2, já que uma investida destas trará mediatismo e poderá até alcançar públicos que não são vistos como o típico público-alvo/alcançável pelos clubes de futebol. Também aqui o negócio do futebol ganharia um novo dinamismo, o que viria a contribuir para a cada vez maior necessidade de novos estímulos para alcançar novos fãs.

Dentro desta temática, o engagement dos adeptos aumentaria, e um sentido de pertença por parte destes seria valorizado. Aquelas velhas máximas de quem diz que o Clube X é dos adeptos, ganhariam também uma nova dimensão. Neste caso, não seria sobre os clubes, mas sobre o jogador “A” ou “B”, podendo aqueles dizer que são donos de parte de um jogador mediático de classe mundial.

Por fim, no meio de tantas vantagens e possibilidades, cria-se a ideia de que os adeptos podem vir a ganhar dinheiro com os jogadores, e, tendo em conta o que foi referido no início do artigo, quanto maior o número de clubes em que o jogador jogar, melhor para quem detiver o seu token (por esta altura, algum leitor deve estar com pena que o Taraabt não tenha sido tokenizado).

Tokenização como forma de prova e registo de propriedade

Voltando-nos para outro tema, com certeza que o leitor nos últimos meses deverá ter ouvido falar de Non Fungible Tokens, NFTs.

Se considerarmos a utilidade que os JPEGS associados a uma blockchain que garante a unicidade de um bem podem ter, perdemos a conta das oportunidades que podem surgir.

Pensemos nos países subdesenvolvidos, onde a prova de propriedade é praticamente impossível, e o número de pessoas que se arroga como proprietária do mesmo terreno é imprevisível. Suponhamos que, após a compra de um determinado imóvel, é imediatamente criado um NFT que esteja associado àquele e que comprove que alguém é o legítimo proprietário do imóvel. Segundo um artigo da Forbes, mais de mil milhões de habitações ainda não tem um comprovativo de registo de propriedade seguro e público. O que significa que pessoas nesta situação vivem com a insegurança de poderem ficar sem casa a qualquer altura. A titularidade de um NFT que constasse de uma blockchain descentralizada, e por isso resistente a ataques informáticos, apossamento ou reivindicações ilegais seria um enorme avanço na democratização e transparência e criaria oportunidades de investimento que até agora são totalmente colocadas de parte quando pensadas para certos países, por mais promissores que estes sejam.

Tokenização de obras de arte

A par do imobiliário, o investimento em arte é tido como um investimento seguro, já que uma obra de arte nunca desvaloriza, e até pode valorizar bastante, principalmente em casos infortúnios para o artista… Há quem diga que o maior risco do investimento em arte é a possibilidade de o local onde as obras se encontrem arder. Independentemente do que dizem, é um tipo de investimento que gera várias dúvidas, tais como a razão de determinado artista valer tanto, se a peça é efetivamente original, qual a sua origem ou quem já a deteve. Todas estas questões que se levantam são naturais e colocam dúvidas sobre este tipo de investimento. Um comprador com certeza quererá saber por quantas pessoas/galerias o quadro já passou, os valores a que foi transacionado anteriormente e se a origem é fidedigna ou não. Associar à obra de arte um NFT permitiria que o comprador/proprietário não levantasse questões como as referidas, aumentaria a certeza no investimento, e garantiria a originalidade da peça.

Para o lado do artista, também seria importante saber o paradeiro das suas obras, e, eventualmente, conseguir ganhar royalties sobre futuras transações.

O que estes tipos de tokenização têm em comum é a existência de underlying assets associados ao token, algo que, ainda que intangível, como é o caso dos direitos de formação, poderá vir a ter um resultado visível, algo que tem faltado à grande maioria de projetos de criptoativos que existem. A isso acrescenta-se o fim da pandemia, depois de dois anos e meio em que todos os serviços online viveram um enorme boom, o mercado está a voltar ao normal, a acompanhar o retorno do mundo à vida social, o que leva a que assistamos a quedas abruptas tanto do mercado de criptoativos, como de serviços como a Netflix, Shopify, Stripe, entre outros. Estas propostas não são tentativas de seguir por caminhos facilitados, mas baseiam-se em factos: o bem tangível associado ao token tem uma muito maior esperança de nascer, sobreviver, ter utilidade e resolver problemas como alguns que foram abordados.

1 As propostas são expostas de forma generalizada e abrangente, merecendo, cada uma delas, estudo e aplicação ponderadas.

2 A jogada seria revolucionária na Europa e particularmente em Portugal, já que vários clubes brasileiros já fizeram este tipo de tokenização com os direitos de formação de jogadores como Neymar, Lucas Veríssimo, entre outros.