O tema dos processos de captação e aprovação de grandes investimentos foi recentemente recolocado na agenda pública. A esse propósito, foram frequentes os comentários que tenderam a “normalizar” a intervenção concreta e casuística dos membros do governo na definição e negociação de grandes projectos. Mas esse tipo de intervenção não é, nem deve ser considerada normal ou desejável. Nem deve consentir o vulgar erro da generalização.
Em 2002, o governo de Durão Barroso – que integrei como Ministro da Economia – aprovou e aplicou um conjunto de princípios, regras e instrumentos dirigido à angariação de investimento produtivo, cuja filosofia era a desgovernamentalização e a criação de condições para que a Administração Pública desempenhasse o seu papel de forma eficiente e independente. O instrumento principal foi a criação da Agência Portuguesa para o Investimento (API), dotada de um estatuto e de meios adequados a esse fim. Na missão da API incluía-se a contribuição para a promoção de políticas e práticas de combate aos “custos de contexto” (designação a que pela primeira vez se deu acolhimento e conceito) e a proposta de soluções para a sua atenuação ou eliminação. E, como referido no preâmbulo do Decreto-Lei 225/2002, eram-lhe “conferidos, através do seu presidente, poderes especiais de solicitação e diligência junto dos organismos da Administração Pública que intervêm nos processos relacionados com o investimento em Portugal”. Assim se estabelecia um novo modelo institucional de promoção, negociação e concretização do grande investimento (estrangeiro ou nacional), através da sua entrega a uma Agência, com natureza empresarial e independência técnica, que tinha, além do mais, a possibilidade e a obrigação de intervir, através do seu presidente, junto dos organismos públicos pertinentes, para dar coerência, eficiência e agilidade à sua intervenção. Estabelecia-se ainda uma estreita articulação com a rede diplomática, incumbida de participar activamente na captação de Investimento Directo Estrangeiro, tendo o Conselho de Administração da API um embaixador em funções como administrador não executivo e sendo criado o Fórum de Embaixadores, ligado à API.
Ao Governo ficavam reservados o papel e as competências que deve ter: criar o quadro geral legal e regulamentar adequado – designadamente com vista à eliminação dos custos de contexto — e aprovar, quando necessário, as condições contratuais negociadas pela API. Em momento algum se previa a intervenção governamental na selecção dos investimentos, na negociação dos contratos ou nas relações entre órgãos da Administração Pública, muito menos a legislação ou regulamentação casuísticas.
O preâmbulo do DL 225/2002 referia que “com a criação da API nos termos descritos, concretizar-se-á uma profunda mudança no modo de promover o grande investimento em Portugal e na forma de relacionamento da Administração com os investidores.” Foi isso que realmente aconteceu. O modelo criado com a API permitia que tudo se desenrolasse sem necessidade de intervenção de membros do Governo, com todas as garantias de imparcialidade, celeridade e eficiência, incluindo a análise técnica da qualidade dos investimentos. E como não há boas instituições sem boas pessoas, escolhemos, para liderar a nova agência, o Dr. Miguel Cadilhe, personalidade de competência, independência, ética e rigor inexcedíveis, que aceitou prestar esse serviço ao País durante o primeiro triénio de vida da API. Presidia a um Conselho de Administração altamente qualificado – com Fernando Costa Lima como presidente executivo – e que construiu uma API exemplarmente estruturada e apetrechada. Por pouco tempo, porém.
Passados menos de três anos, foi instituído, pelo Decreto-Regulamentar 8/2005, um novo regime, que instituía a diferenciação de regras em favor dos projectos que fossem classificados como de Potencial Interesse Nacional (PIN). Nele eram passadas várias competências para uma Comissão de Avaliação e Acompanhamento que integrava representantes de diversos organismos públicos (embora ainda presidida pela API) e a quem cabia a classificação dos projectos como PIN.
Entretanto, a API foi extinta e parte das suas funções integradas na AICEP, entidade que acumulava a promoção do Comércio Externo, contrariando a lógica de especialização que tinha presidido à criação da API. E apenas dois anos volvidos sobre a criação do regime dos PIN, foi criado, pelo Decreto-Lei nº 285/2007, o regime dos projectos PIN+, aplicável aos PIN “de interesse estratégico”(!), onde os projectos incluídos seriam “os que como tal sejam classificados pelos ministros competentes em razão da matéria”. Os projectos PIN+ deveriam obedecer aos critérios dos PIN e, simultaneamente, a um conjunto de critérios, alguns dos quais com fortes margens de subjectividade e discricionariedade.
Assim se voltava a governamentalizar e a dar um carácter casuístico ao processo de atracção e negociação do grande Investimento em Portugal. Assim se introduzia também um elemento de discriminação entre investidores, cujos direitos passaram a depender da classificação ou não dos seus projectos como PIN ou como PIN+!
Em 2013, em pleno Programa de Assistência Económica e Financeira, proceder-se-ia a nova alteração – esta no sentido da desgovernamentalização – com o DL 154/2013, que substituiu a Comissão de Avaliação e Acompanhamento dos PIN por uma nova Comissão Permanente de Apoio ao Investidor (CPAI), com representantes de nove entidades públicas e que passava a acompanhar a tramitação de todos “os projetos de investimento que, pelas suas características, possam assumir uma importância relevante para a dinamização da economia nacional”, neles se incluindo os PIN, cujo reconhecimento passou a pertencer à CPAI. Sendo um passo na direcção certa, o modelo instituído em 2013 é bem mais complexo do que o previsto no quadro inicial da API e com maiores riscos de menor eficiência, para além de manter a discutível filosofia discriminatória e discricionária dos PIN.
Um aspecto particularmente positivo do regime aplicável aos investimentos abrangidos pelos diplomas de 2007 e 2013 foi a consagração de um regime geral de deferimento tácito, caso os pareceres devidos não fossem emitidos nos prazos estabelecidos (embora no de 2013 se tenha introduzido a salvaguarda de o contrário poder resultar de lei especial aplicável). Desconhecemos se e de que forma esta via – que, por si só, permitiria que não houvesse bloqueio administrativo dos projectos — foi usada. Ainda assim, parece evidente que a lógica simples, não casuística e não discriminatória do modelo inicial da API – a par de boas leis e regulamentos – continuaria a ser a mais eficaz e transparente para o processo de captação, negociação e execução do grande investimento.
O que foi sumariamente descrito constitui, além de um reavivar da memória, uma boa ilustração do cuidado que deve haver em evitar generalizações abusivas que, com frequência, são feitas a propósito de políticos e governos. Não, eles não são todos iguais e é bom que as falhas de ética ou de rigor não sejam objecto de uma certa generalização e normalização com que por vezes são encaradas, com o falso argumento de que “todos fizeram o mesmo”… A verdade é que não fizeram!