“És enfermeiro?”
“Sim…”
“Ah, boa. Onde trabalhas?”
“Saúde Mental? Hummm…ok…”
Lembro-me como se fosse ontem deste diálogo que aconteceu vezes sem conta: amigos, familiares, meros conhecidos que com entusiasmo sabiam do fim da minha licenciatura.
“Boa já és enfermeiro.“ As sinapses levava-os a olharem-me como uma pessoa cuidadora, com “paciência a mil” e, acima de tudo, que certamente saberia puncionar, algaliar, entubar e executar todos os outros procedimentos técnicos que neste momento poderão estar a pensar.
Do entusiasmo inicial passávamos rapidamente para a fase de espanto/surpresa quando eu, com toda a tranquilidade, os informava da minha área de eleição: Saúde Mental.
“A sério? É diferente…”
“Mas és o quê? Psicólogo, psiquiatra ou simplesmente aquele enfermeiro que vemos nos filmes a dar comprimidos?”
“Olha que aturar malucos não é fácil, mas tu é que sabes”.
Nesta fase não sei qual seria o maior desafio: trabalhar na minha área de eleição ou tentar explicar a importância/papel que um enfermeiro tem nesta especialidade.
Para mim, não são as buzinas de monitores cardíacos, as gotas do contador do soro ou mesmo os garrotes, seringas e sondas que me motivam ou complementam, mas sim as buzinas de angústia, as gotas de ansiedade ou os garrotes de agressividade que, umas vezes pela palavra, outras pelo corpo, me fazem-me vivenciar momentos verdadeiramente terapêuticos.
Posso-me denominar insano sim, por gostar de tremenda loucura, mas é isto que desde o curso base me preenche. Em boa verdade, ser enfermeiro nesta área é muito mais do que os clichés que nos apregoam ou o que se viu até hoje nos filmes.
Sim, é possível ser enfermeiro em Saúde Mental não nos restringindo à mera imagem que ainda hoje persiste do especialista restrito a um espaço de internamento de situações de doença mental aguda e cuja única intervenção se rege por uma linha de montagem para dar o “importante” comprimido.
A verdade é que, para além deste espaço, o enfermeiro especialista em Saúde Mental está e deverá estar presente, cada vez mais, na comunidade, nomeadamente nos Centros de Saúde ou mesmo nas Escolas.
Mas com que objetivo, questiona o leitor.
Para situações tão importantes como estar desperto para sinais e sintomas de sofrimento mental – uma alteração do seu padrão de sono, um cansaço extremo a nível laboral, um quadro de tristeza prolongado ou mesmo uma maior dificuldade para gerir a ansiedade podem ser identificados por um enfermeiro com esta especialidade na consulta de enfermagem.
Nem tudo o que nos leva a recorrer a serviços de saúde é manifestamente “físico” e, na realidade, o enfermeiro pode ser o primeiro elo de contacto na prevenção de situações de sofrimento/ doença mental.
Por outro lado, este enfermeiro é um profissional de saúde preponderante na comunidade, permitindo por exemplo, em visita domiciliária, não só a prevenção de situações agudas, mas também o acompanhamento daqueles que vivem diariamente com uma doença mental.
É importante clarificar que estes acompanhamentos não se restringem à supervisão de toma de medicação ou a uma simples conversa de circunstância. A especialidade de Enfermagem de Saúde Mental e Psiquiatria dota o enfermeiro de um conjunto de competências que permite que as suas intervenções sejam autónomas e munidas de intencionalidade terapêutica.
Simplificando, o enfermeiro especialista em Saúde Mental, na sua intervenção, tem uma intenção terapêutica em tudo o que faz ou diz com o utente. “Não fala por falar”, tem um foco, um objetivo de intervenção, que deverá ir encontro da melhoria contínua do estado de saúde da pessoa alvo dos nossos cuidados.
De nada vale e nem é terapêutico compararmos situações vividas por outros ou dizer que “vai correr tudo bem” à pessoa alvo de cuidados. Deveremos sim, junto da mesma, perceber quais os recursos internos e externos com vista à melhoria franca, neste caso em concreto da sua saúde mental.
Metaforicamente costumo dizer que as famosas “paragens” que vivencio no outro são importantes pausas do mundo exterior excessivamente ansiogénico e ameaçador. São verdadeiros pedidos de ajuda, uns mais ruidosos, outros silenciosos, uns mais apáticos, outros tremendamente destrutivos, que certamente não revertem só com medicação de carro de urgência, mas sim com desfibrilhadores de palavras intencionalmente terapêuticas e atos que, mais do que efeito momentâneo de reversão da crise, procuram um regresso a um novo sentir, um novo viver com mais Saúde Mental.
André Maravilha é enfermeiro especialista em Saúde Mental e Psiquiatria e exerce funções em internamento e ambulatório com crianças, adolescentes e jovens adultos no CHULC (Centro Hospitalar Universitário Lisboa Central). É promotor de iniciativas de combate ao estigma na Saúde Mental.
Mental é uma secção do Observador dedicada exclusivamente a temas relacionados com a Saúde Mental. Resulta de uma parceria com a Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD) e com o Hospital da Luz e tem a colaboração do Colégio de Psiquiatria da Ordem dos Médicos e da Ordem dos Psicólogos Portugueses. É um conteúdo editorial completamente independente.
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