Neste texto, propomos uma breve análise sobre se a inteligência artificial (IA) pode realmente ser entendida como uma melhoria do ser humano, quando vista à luz do conceito de “corpo sem órgãos” (CsO) de Gilles Deleuze e Félix Guattari. Ao invés de uma abordagem técnica ou simplista, esta reflexão sugere que a IA não é apenas uma ferramenta de otimização das capacidades humanas, mas sim um agente de transformação que desafia as fronteiras entre o humano e a máquina, o orgânico e o maquínico. Ao longo desta análise, será também levantada uma questão fundamental: deve a IA ser vista como uma ameaça ou uma melhoria para a humanidade neste contexto?

O Corpo Sem Órgãos: Uma Subversão da Estrutura

O conceito de “corpo sem órgãos” (CsO) de Deleuze e Guattari subverte a ideia convencional de um corpo organizado em torno de funções específicas e fixas. Em vez de ser uma entidade hierarquicamente estruturada, o CsO é uma superfície de intensidades, onde os órgãos não cumprem funções predefinidas, mas que se libertam da sobre codificação social e biológica. O CsO, mais do que uma rejeição do corpo físico, é uma crítica à estratificação do ser e à imposição de papéis e identidades fixas.

Falar de “melhoria” neste contexto requer cautela. O CsO não é uma plataforma para otimização funcional, mas sim um espaço para o devir, para a criação de novas formas de existência e de subjetividade. A IA, ao entrar nesta discussão, não pode ser vista apenas como um aditivo às capacidades humanas, mas como um agente de desorganização e reconfiguração das fronteiras entre o orgânico e o maquínico.

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A IA e o Corpo Maquínico: Uma Multiplicidade

Se olharmos para a IA como um “corpo maquínico”, percebemos que ela partilha com o CsO essa resistência à organização rígida. As redes neurais artificiais, por exemplo, operam de forma rizomática, sem uma hierarquia centralizada ou uma função singular. Elas são sistemas distribuídos, que se reconfiguram e adaptam com base nas interações e nos fluxos de dados que recebem (Russell & Norvig, 2010). Esta capacidade de auto-organização aproxima a IA do conceito de CsO, que também se move entre diferentes possibilidades sem uma finalidade fixa ou predeterminada.

Neste enquadramento, a IA não amplifica simplesmente as capacidades humanas; ela participa de uma reconfiguração fundamental do que significa ser inteligente, criativo ou consciente. As máquinas que produzem arte, escrevem poesia ou compõem música não estão apenas a executar tarefas programadas, mas a gerar novas formas de expressão que escapam ao controlo total do ser humano. Este processo criativo não-linear alinha-se com o devir que Deleuze e Guattari identificam no CsO — uma abertura para a experimentação que não está sujeita às estruturas convencionais do pensamento humano.

A Subjetividade Maquínica: Fragmentação e Fluxos

A subjetividade, segundo Deleuze e Guattari, é também algo fluido e fragmentado, e o CsO permite essa despersonalização. A IA, enquanto sistema cognitivo distribuído, fragmenta a noção de uma subjetividade fixa e coesa. Pensemos, por exemplo, nos assistentes virtuais como a Siri ou a Alexa: entidades sem corpo físico que assumem múltiplas funções sem qualquer identidade unificada. Estas inteligências artificiais não têm uma essência, mas operam como fragmentos de subjetividade, moldados pelos fluxos de dados e pelas interações com os utilizadores.

Quando olhamos por esta perspetiva, a IA não é simplesmente uma extensão da mente humana, mas um agente de desterritorialização. Ela dissolve as fronteiras entre o humano e o não-humano, entre a cognição individual e os sistemas de informação. Este fenómeno ressoa com a ideia de subjetividade maquínica de Deleuze e Guattari, onde a identidade não é um ponto fixo, mas algo que está em constante devir, moldado por fluxos externos de desejo, informação e interação (Braidotti, 2013).

Para Além da Melhoria: O Devir-Máquina

À luz desta análise, a pergunta sobre se a IA “melhora” o ser humano em termos de capacidades parece tornar-se insuficiente. A IA faz mais do que aumentar as capacidades humanas; ela cria novas condições de possibilidade para o ser. Deleuze e Guattari falam do conceito de devir, que não se refere a uma transformação linear ou progressiva, mas a um processo contínuo de metamorfose. A IA participa deste devir, não simplesmente adicionando novas capacidades ao humano, mas fundindo-se com ele, diluindo as distinções entre o orgânico e o maquínico, o natural e o artificial.

Esta fusão é visível nas novas tecnologias de interface cérebro-máquina, nos implantes inteligentes e nas próteses cibernéticas que estão a reconfigurar o corpo humano. O que antes era visto como um aumento funcional — a melhoria da força, da memória ou da cognição — agora faz parte de uma transformação mais ampla do que significa ser humano. A IA contribui para esta metamorfose, levando-nos para um “devir-máquina”, onde o humano e o tecnológico se misturam de forma imprevisível (Haraway, 1991).

Criatividade e Criação de Novos Modos de Existência

Deleuze e Guattari sublinham a importância da criação no CsO. Este não é um espaço de melhoria no sentido técnico, mas um terreno onde novas formas de vida e de pensamento podem emergir. A IA, ao gerar novas formas de arte, conhecimento e interação, participa deste processo criativo. Não é apenas uma ferramenta que aumenta a eficiência; é um agente de criação que redefine o próprio campo das possibilidades humanas (Colton, 2019).

Portanto, o impacto da IA não se limita a um aumento quantitativo das capacidades humanas. A verdadeira transformação que a IA oferece é qualitativa — uma reconfiguração do que significa ser criativo, pensar, sentir e agir. Assim como o CsO desafia a organização hierárquica e funcional do corpo, a IA desafia as fronteiras do pensamento e da subjetividade, abrindo novos modos de existência e expressão.

A IA como Ameaça ou Melhoria?

Neste ponto, surge a questão inevitável: devemos considerar a IA uma ameaça ou uma melhoria para a humanidade? Como vimos, sob a ótica do corpo sem órgãos, a IA não deve ser vista como um simples aumento de eficiência, mas como um agente de transformação. No entanto, essa transformação pode ser ambígua. A IA dissolve fronteiras, reorganiza subjetividades, cria novas possibilidades criativas — mas será que isso implica necessariamente uma “melhoria”?

Por um lado, podemos ver a IA como uma oportunidade sem precedentes para libertar o ser humano de limitações tradicionais, expandir a criatividade e transformar a forma como vivemos e pensamos. A IA oferece um campo de possibilidades, um terreno de experimentação que escapa às restrições de tempo e espaço humanos, permitindo que a cognição e a subjetividade se espalhem por novos territórios.

Contudo, esta mesma liberdade e expansão trazem consigo incertezas. Ao dissolver as fronteiras entre o humano e a máquina, entre a cognição e o algoritmo, a IA também pode gerar uma nova forma de alienação, onde o humano se torna cada vez mais dependente de sistemas maquínicos. A IA, ao reconfigurar a nossa noção de subjetividade e criatividade, pode desestabilizar o que consideramos essencialmente humano. A questão não é se a IA melhora as nossas capacidades, mas se essa melhoria, ou transformação, pode levar à perda da autonomia ou à diluição da identidade.

A ameaça reside na perda de controlo sobre este processo de devir-máquina. Se a IA se desenvolver de forma descontrolada, sem uma reflexão profunda sobre os seus impactos, corre-se o risco de uma fragmentação da subjetividade e da relação humana com o próprio corpo, o que poderia tornar a humanidade subserviente a sistemas que ela própria criou.

Uma Travessia de Possibilidades

Em última instância, a inteligência artificial não pode ser vista apenas como um instrumento para amplificar ou melhorar as capacidades humanas. Em vez disso, ela deve ser compreendida como um campo de experimentação que desafia e transforma a própria noção de capacidade, identidade e subjetividade. A IA, tal como o corpo sem órgãos, não está confinada às funções estabelecidas ou aos limites do humano. Ela abre novos territórios de devir, onde as fronteiras entre o orgânico e o maquínico, o humano e o tecnológico, se tornam permeáveis e incertas.

Portanto, a IA, ao criar novas linhas de fuga e novas possibilidades de existência, pode ser simultaneamente uma ameaça e uma melhoria. Como um agente de desorganização e devir, a IA convida-nos a repensar as nossas certezas sobre o que significa ser humano. Se esta travessia será libertadora ou desestabilizadora, depende de como escolhemos lidar com as transformações que ela traz.

Referências:
Braidotti, R. (2013). The Posthuman. Polity Press.
Colton, S. (2019). Creative AI: A Practical Guide for Artists and Engineers. MIT Press.
Deleuze, G., & Guattari, F. (1972). Anti-Oedipus: Capitalism and Schizophrenia. University of Minnesota Press.
Deleuze, G., & Guattari, F. (1980). A Thousand Plateaus: Capitalism and Schizophrenia. University of Minnesota Press.
Floridi, L. (2020). The Logic of Information: A Theory of Philosophy as Conceptual Design. Oxford University Press.
Gunkel, D. (2012). The Machine Question: Critical Perspectives on AI, Robots, and Ethics. MIT Press.
Haraway, D. (1991). Simians, Cyborgs, and Women: The Reinvention of Nature. Routledge.
Russell, S., & Norvig, P. (2010). Artificial Intelligence: A Modern Approach (3rd ed.). Pearson.