O desprazer sentido ao ler José Pacheco Pereira (JPP), no Público de 17 de novembro, sobre «Os que “amam” muito os touros e os torturam e matam» obriga-me a saltar à praça. Não fora alguém que conhece os clássicos, a história, a filosofia e a sociologia, mas um exercício de auto-promoção entre a fiscalidade e civilização, tinha encolhido os ombros.

Sempre lesto a clamar contra os populismos e a demagogia que atentam contra as liberdades das minorias, JPP fez um exercício digno de usar nas suas aulas para ilustrar precisamente essas doenças do nosso tempo que inquinam todos os debates e que ele tanto combate.

Extrapolar contra as “touradas” a partir da violência doméstica, com uma condescendente excepção em relação à caça, ou fazer paralelismos entre as “touradas” e a “exibição pública da tortura de um animal” para gáudio colectivo, que “vivem do sangue, da dilaceração da carne, do cansaço até ao limite e da morte”, não é intelectualmente sério e remete para um quadro de intolerância pouco saudável e com reminiscências noutras filiações.

Mas JPP vai mais longe e considera que invocar a “tradição” é como encobrir a “violência doméstica, a discriminação dos homossexuais, a excisão feminina, a pena de morte e a legitimação da tortura”, terminando numa comparação entre os argumentos dos defensores das “touradas” e o lobby das armas nos USA. JPP não se limita à demagogia, recorre ao terrorismo argumentativo.

Um pouco mais de tolerância! JPP não desconhece que da história e da cultura desta Península, à esquina entre dois mares (não esquecer a Terceira), sem qualificar como liberdade de expressão, artística ou outra, faz parte a Tauromaquia como um simples facto da vivência dos povos que a habitam, afirmar o contrário é mentir, alinhando numa prática muito em voga, a que JPP parece ter aderido.

A verdade é que sem Tauromaquia Portugal não teria uma cultura equestre própria, na equitação de gineta, que chegou aos nossos dias como verdadeiro património cultural imaterial da humanidade, nem o cavalo lusitano, criado e selecionado para a guerra e na lide do toiro bravo, apesar de cada vez mais ameaçado pelas modas e por falta de cuidado das instituições que o deviam preservar.

Os mestres das velhas escolas europeias equestres beberam de um dos primeiros livros que codificou as posturas da equitação e da lide a cavalo, escrito pelo nosso Rei D. Duarte, antes dele Péricles, Simon de Atenas ou Xenofonte, depois dele Grisone, Pignatelli, Salomon de Broue, Pluvinel, Cavandish, Guérinière, Manuel Carlos de Andrade, Baucher ou Nuno de Oliveira praticaram e ensinaram uma arte que é parte indissociável da civilização europeia e que, em Portugal, sem a Tauromaquia seria amputada e desvirtuada.

Sem a Tauromaquia e o toiro bravo o ecossistema do campo ibérico não seria o mesmo, inclusive como activo biológico, talvez aqui conceda na dificuldade que é para um intelectual urbano ter essa percepção, mas a Tauromaquia também tem uma dimensão transcendental, na visão de Bergamín e como disse Sánchez Mejías aos estudantes da universidade de Columbia: “el toreo no es una crueldade, es un milagro. Un milagro repleto de gracia, de beleza, de poesia. El milagro es la realización de lo impossible, el toreo. El triunfo de la vida sobre la muerte.”

Quando esse triunfo não acontece, a morte vence a vida e as palavras de JPP tornam-se grotescas e ofendem a memória recente de Victor Barrio, Iván Fandiño, Cubero Yiyo; Paquirri, Joaquim José Correia, José Falcão, Varela Crujo e tantos outros que não viveram o milagre do toureio, tal como o próprio Sánchez Mejías, Manolete ou José Gómez Ortega.

Um pedido de desculpas não lhe ficava mal, nem seria um gesto insólito de JPP, pois estaria na companhia de muitos outros escritores e poetas da idade de prata da geração de 27, do grupo de homenagem a Góngora no Ateneu de Sevilha, que celebraram a vida e choraram a morte do toureiro Ignacio Sánchez Mejías.

O histórico encontro literário, promovido pelo próprio Sánchez Mejías, contou com poetas vanguardista como Garcia Lorca, Rafael Alberti, Gerardo Diego, Dámaso Alonso, Bergamín, Jorge Guillé, Juan Chabás, que dificilmente poderão ser qualificados de reacionários ou incivilizados até por JPP.

Muitos outros se inspiram na representação daquela dor, José Maria de Cossio, Gerardo Diego, Miguel Hernandez, ou Pedro Salinas, mas todos foram suplantados pelo “Llanto por Ignacio Sánchez Mejías” de Frederico Garcia Lorca, transformado em poema maior da literatura universal que transfigurou em mito a morte de um toureiro e recriou a própria Tauromaquia enquanto realidade civilizacional com uma ética própria, tratada por Amorós ou Wolff, que merece respeito e que nem JPP conseguirá desqualificar.

“A las cinco de la tarde” está gravado para sempre na memória colectiva de quem sente a vida através da Tauromaquia e para além dela, mesmo que a descontento de ideologias de circunstância ou de JPP, pois a liberdade do Estado de Direito isso nos concede, como exaltou Miguel de Unamuno (hoje, Manuel Alegre) ao seu compañero de letras Sánchez Mejías, quando a Tauromaquia sofreu um ataque de José Maria Salaverría (hoje, JPP) nas páginas do ABC (hoje, Público).

Este não é um exercício de retórica, mas um dever de consciência e repúdio pela demagogia de José Pacheco Pereira que violentou de forma vulgar e grosseira valores em que acredito e que a nossa Constituição garante.

*Expressão emprestada de Sánchez Mejías — “nuevos sentimentales” – da conferência proferida em 1929, na companhia de Garcia Lorca, que não perde para o célebre prólogo de Ortega e Gasset, nos “Veinte años de caza mayor”, de Eduardo Figueroa Alonso-Martínez, Conde de Yebes.

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