Na última quarta-feira, dia 8 de fevereiro, foi debatido na Assembleia da República (AR) o decreto-lei que cria e promove o desenvolvimento de um mercado de carbono de âmbito nacional.
O debate foi interessante pela pertinência de algumas sugestões, bem como pelas clarificações que nos trouxe. Como se podia esperar, verificou-se uma aversão ao tema por parte do Bloco de Esquerda e PCP, alguns comentários por parte da bancada socialista de que o “capitalismo não é verde” e, curiosamente ou não, ficámos a perceber o extremo negacionismo climático por parte da bancada do Chega.
Mas havia a necessidade deste decreto-lei, sabendo que a Comissão Europeia está já a trabalhar neste tema?
Recordo a comunicação (2022) 672, de 30/11/2022 da Comissão Europeia (CE), nomeadamente quanto ao elemento central do mercado voluntário de carbono: “…two Governance options as to who would be responsible for recognising certification schemes: the Member States (option G1) or the Commission (option G2). The analysis concludes that option G2 performs best in terms of guaranteeing a robust and harmonised certification process and promoting the internal market for carbon removal certification, while minimising the administrative costs for public authorities.”
Confesso que defendo a proposta harmonizada, tal como a CE e em linha com o que vem sendo pensado por muitos especialistas do setor.
Mas será que as propostas legislativas, quer a nacional quer a europeia, vão de encontro a outras recomendações que vão sendo emanadas por organismos internacionais que trabalham este tema?
Recordo que a “Taskforce on Scaling Voluntary Carbon Markets (TSVCM)”1 aponta seis desafios para a escalabilidade destes mercados, nomeadamente:
- Uma harmonização de princípios que estandardize os créditos de carbono e o seu processo de verificação.
- Desenvolvimento de contratos com termos uniformes.
- Estabelecer uma infraestrutura de trading e pós-trading.
- Criação de um consenso sobre o próprio uso dos créditos de carbono.
- Instalação de mecanismo de salvaguarda da integridade do mercado.
- Sinalização da procura efetiva de créditos de carbono.
Pois bem, a proposta nacional, especificamente quanto ao ponto 1 e 5, atribui à Associação Portuguesa do Ambiente (APA) o papel principal na criação de uma metodologia de verificação (artigo 19º), deixando a porta entreaberta para validar outras que se apresentem. A emissão dos próprios créditos também será efetuada pela APA (artigo 2º, nº 2 e artigo 11º nº 1 da proposta de decreto-lei).
Todas as outras verificações e validações, ex-ante e ex-post, que têm de acontecer na vida do projeto, serão confiadas a organizações que não públicas, artigo 9º alínea a.) ii) e artigo 16º da proposta de decreto-lei.
Quanto a registos, todos os eventos que acontecerem no mercado voluntário de carbono nacional serão efetuados numa plataforma pública, ver artigo 2º nº 2 da proposta de decreto-lei.
Então, basicamente estamos na presença de um modelo assente na coisa pública, sinónimo de expectável ineficiência portuguesa e a fazer lembrar um “orgulhosamente sós”. Não me condenem pelo minha desconfiança nas organizações nacionais, pois estas linhas foram escritas tendo em mente o que se passa quanto aos licenciamentos de vários projetos de comunidades de energia renovável. Estarmos dependentes de uma só organização é limitar a liberdade de escolha, de ação e, na minha perspetiva, a existência do próprio mercado.
Já a proposta europeia respeita a atual infraestrutura do mercado, chamando para si apenas o desenvolvimento de uma metodologia, cujo conjunto de princípios designou por QU.A.L.ITY. Na verdade, é uma prática semelhante ao que vai fazendo, tal como, por exemplo, a taxonomia europeia e a SFDR. E podem outras metodologias apresentarem-se ao mercado para serem usadas? Sim, mas sempre e quando sigam o conjunto de princípios estabelecidos pela CE que, neste campo, é flexível tal como a proposta nacional.
Ainda segundo a CE, a operacionalização de todo o mercado não será tarefa única de um organismo público, mas sim de um conjunto de “registries” a quem será atribuída uma licença. Estes deverão manter um registo público e acessível de todos eventos que vão acontecendo neste mercado, tendo de cumprir critérios de independência face aos outros agentes que participarão em todo o processo. A função de atribuição dos créditos de carbono será responsabilidade destas entidades, ao contrário do projetado no nosso decreto-lei. Vem-me logo à mente a palavra “opções”, ou seja, liberdade de escolha.
Olhando novamente para o modelo nacional, não descuro o papel da APA e do ICNF, mas, na minha ótica, dever-se-ão manter limitados a uma tarefa de fiscalização de todos os atores que se encontrem no terreno.
Então e a agregação da informação, não é importante? E as transações dos créditos de carbono? E o seu uso? Quem monitoriza o risco de dupla-contagem? E o reporte?
Tal como já mencionei, defendo que essas funções se devem manter nos vários “registries” que já existem e que esperemos que venham a surgir. Todavia, peço-vos que voltem atrás e releiam as 6 recomendações da Taskforce on Scaling Voluntary Carbon Markets (TSVCM). Não vos parece algo parecido com o que já temos nos mercados de carbono regulados? Não apresenta uma ótica financeira?
Pois bem, a IOSCO, organização que a CMVM integra, teve em consulta até ao dia 10 deste mês a sua abordagem dos mercados voluntários de carbono e o papel dos reguladores financeiros na promoção da sua integridade. Relembro que estes agentes têm práticas de fiscalização muito eficientes e sistemas de difusão de informação já instituídos, podendo ser adaptados a uma dimensão ambiental, sempre e quando os créditos de carbono sejam compreendidos como um ativo financeiro, nomeadamente sob a forma de commodity. Aliás, a The Integrity Council for the Voluntary Carbon Market, entidade com elevada notoriedade, considera um crédito de carbono como “… a tradable financial instrument that is issued by a carbon-crediting program”.
É essa a perspetiva americana, mas não a ótica da legislação europeia. Confesso que gostaria que assim fosse, em virtude do sucesso e da escala do mercado europeu de licenças de carbono.
Só esta caracterização permitiria a participação dos reguladores financeiros e melhor controlo das plataformas de crowdfunding partilhado, das bolsas de valores, das agências de rating e fundos de investimento, que poderão ser o veículo profissional mais eficaz para ultrapassar o facto de 97% da floresta nacional estar atomicamente dispersa. Vamos então desperdiçar as práticas de todos os agentes atrás mencionados? Não podemos! Estes já se encontram posicionados para aumentar a notoriedade, escala e liquidez dos mercados de carbono voluntários.
Então e a agregação da informação a mais alto nível? Não fará também falta uma câmara de compensação global?
Espreitem o que está a ser desenvolvido através da “Climate Warehouse Initiative”, que é basicamente um “global registry”, se quiserem, podemos dizer que será um “agregador-mor” e um “distribuidor de jogo”. Deixo à vossa imaginação a melhor designação.
Se depois a CMVM, em articulação com a APA, quiser seguir os projetos nacionais de mais perto, pode sempre recorrer a esta informação e até complementar com o que o ICNF vai recolhendo no terreno. Note-se que A CE não se pronunciou sobre um “agregador”.
Então, talvez não houvesse a necessidade de estarmos a criar um projeto isolacionista nacional. Certo? Desperdício de tempo por parte dos nossos governantes? Acho que não, pelo menos motivou uma “conversação”, onde o debate trouxe considerações inovadoras e que devem ser atendidas, mesmo a nível europeu. Revejo-me por exemplo, no pensamento do PAN quando diz que os preços “devem refletir o verdadeiro custo de poluição para a sociedade”. E que tal criar preços base? Seriam uma espécie de preços mínimos que a entidade que pretendesse fazer o “offset” teria de pagar ao criador original do projeto, mesmo que estes créditos já tivessem sido transacionados um sem número de vezes.
O PAN também centrou o debate no ambiente, quando afirmou que “a compensação de emissões por uma organização deve fazer parte de uma estratégia clara de descarbonização e redução de emissões…”, na verdade, o DR acompanha esta mesma opinião, no artigo 5º nº1. Digo mesmo que essa estratégia deve estar assente em critérios científicos e devem ser condição primária para uma organização poder fazer o “offset”, ou seja, o uso dos créditos de carbono.
Como poderão notar pela leitura da proposta do decreto-lei, há elementos muito interessantes e bem formulados, tirando obviamente o isolacionismo nacional e a atribuição de papel principal às estruturas públicas, assim sendo, havia claramente necessidade de se falar sobre o tema.
Consciente desta realidade, relembro que o decreto-lei se encontra em consulta pública. Participem!
1 https://www.mckinsey.com/capabilities/sustainability/our-insights/a-blueprint-for-scaling-voluntary-carbon-markets-to-meet-the-climate-challenge