A recente estreia do filme Mr Jones, o qual nos narra a história do jornalista galês Gareth Jones que em 1933 denunciou ao mundo aquilo que mais tarde viria a ser conhecido pelo holocausto ucraniano – o Holodomor (a fome provocada pelo regime soviético na Ucrânia e que causaria a morte de cerca de três milhões de ucranianos, maioritariamente camponeses), convoca algumas reflexões sobre a diferença de tratamento existente no espaço público e nos meios culturais entre o estudo do nazismo e do comunismo, com o primeiro a ser (e bem) um constante alvo de rejeição, ao passo que o segundo acaba por ser maioritariamente relegado para um quase esquecimento, como se fosse incómodo falar sobre os crimes contra a Humanidade que os regimes comunistas também cometeram em grande escala.

Ainda muito recentemente num livro editado na nossa vizinha Espanha sobre a guerra civil de 36-38 (“Vanguarda roja”), o seu autor, Fernando del Rey, reconheceu o enorme défice que continua a existir na historiografia (tanto ao nível de Espanha como ao nível europeu) sobre a violência e a repressão políticas que ocorreram no lado republicano durante este sangrento conflito.

Tornou-se habitual descrever e denunciar a barbárie cometida pelos nacionalistas ignorando que do lado dos partidários da república espanhola a violência e a repressão políticas eram também uma constante.

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A única diferença entre estas violências, como diz com humor negro o agente nacionalista Falco na trilogia de Artur Perez Reverte sobre a guerra civil espanhola, é que enquanto os fuzilados pelos nacionalistas dispunham de um padre para lhes dar a bênção final, os fuzilados pelos republicanos não dispunham de um tal “privilégio”.

Ora, a ocultação por parte de muitos historiadores dos crimes cometidos pelos partidários da República espanhola durante a guerra civil de Espanha reflete bem o desequilíbrio que existe na investigação na História Europeia do século XX entre os crimes do nazismo e os crimes do comunismo.

Apesar do grande contributo dado à investigação dos crimes do comunismo pela publicação, no final da década de 90 do século passado, do “Livro negro do comunismo”, editado por Stephane Courtois, o panorama na investigação histórica sobre o totalitarismo comunista continua a ser escasso (a excepção vai para Robert Conquest, um verdadeiro “herói” neste domínio) e nem os recentes trabalhos de Richard Overy, Timothy Snyder, Simon Seabag Montefiore e Anne Applebaum conseguiram preencher o vazio que ainda se faz sentir nesta área de investigação.

A realidade é que, como confessou recentemente o historiador britânico Ian Kershaw (autor de uma magnífica biografia de Hitler) numa entrevista dada ao Expresso, já pouco ou nada resta para dizer sobre o nazismo. Mas sobre o outro totalitarismo do século XX há ainda muito por dizer por parte dos historiadores.

Este aparente “esquecimento” sobre o lugar dado na História ao totalitarismo comunista tem, aparentemente, duas razões.

Em 1.º lugar porque no domínio das ciências sociais continua a existir uma fortíssima presença da esquerda a qual tende a desculpabilizar os crimes do comunismo, apresentando-os antes como “erros” ou “desvios” do ideal socialista, um ideal cuja pureza terá sido desvirtuado pelo estalinismo.

Em 2.º lugar porque Auschwitz tem surgido como um factor de inibição de denúncia dos crimes do comunismo, inibição essa causada pela acusação por parte da esquerda de que ao denunciar-se a natureza criminosa dos regimes comunistas estar-se-ia a “branquear” os crimes do nazismo.

Nenhuma destas razões é válida para justificar a maneira deficitária como a História tem encarado os regimes comunistas.

O estalinismo foi uma consequência lógica do marxismo-leninismo, dado que as raízes da violência e do ódio às classes sociais consideradas inimigas da classe operária faziam parte tanto do ADN dos seus textos fundadores como da prática política do partido bolchevique assim que conquistou o poder político.

Quanto a Auschwitz, é preciso recordar que a monstruosidade que ele representa, não pode de maneira nenhuma fazer esquecer as outras monstruosidades que ocorreram na ex-URSS.

Um tal esquecimento tem uma causa (mediática) que não pode ser desvalorizada, pois enquanto Auschwitz e os outros campos de concentração nazis foram, logo a seguir ao fim da guerra, amplamente fotografados, filmados e documentados (com o consequente impacto na opinião pública), os campos do Gulag não tiveram uma tal cobertura.

Assim, enquanto o campo de Auschwitz, porque amplamente publicitado, passou a ser conhecido como um símbolo de sofrimento e de morte, nomes como Slovetsky, Vortuga ou Kolyma (três importantes campos do mundo concentracionário do Gulag) são pura e simplesmente desconhecidos do grande público.

E, no entanto, os campos do Gulag eram também campos da morte, só que, diferentemente de Auschwitz, aqui a morte não ocorria de forma rápida, antes consistia num longo e doloroso processo caracterizado pela fome, pelas doenças, pelo trabalho escravo e pelos maus tratos impostos aos prisioneiros destes campos.

Um prisioneiro do Gulag se conseguisse resistir ao primeiro ano de cativeiro, teria uma maior probabilidade de sair de lá vivo quando acabasse de cumprir a sentença a que fora condenado pelo regime. Mas houve milhões que não resistiram ao primeiro ano de cativeiro.

Os homicídios em massa foram assim uma característica dos dois regimes totalitários — no caso soviético com “picos” no período pós-guerra civil, no Holodomor ucraniano em 1933 e no grande terror de 1937 e no caso da Alemanha nazi entre 1941 e 45, com a ocorrências dos primeiros massacres de judeus na Bielorússia e na Ucrânia logo a seguir à invasão da URSS.

Ambos os regimes tiveram métodos diferentes na execução dos homicídios em massa (a “industrialização” arquitetada pelo nazismo, o que não se passou no comunismo soviético), mas com objectivos comuns: a deportação, o encarceramento e a eliminação dos indivíduos, grupos étnicos, nacionalidades e classes sociais consideradas inimigas dos respetivos regimes.

Por isso, os horrores do nazismo não podem constituir um factor de inibição na investigação dos crimes dos regimes comunistas, sobretudo a partir do momento em que o Parlamento Europeu, em Setembro passado, não hesitou em equiparar os dois totalitarismos precisamente por ter considerado que ambos foram sistemas que se caracterizaram por um gigantesco e absoluto desprezo pela dignidade da pessoa humana numa escala nunca vista na História da Humanidade.

Como é dito no ponto 3 da resolução do Parlamento europeu de 19 de setembro de 2019, este relembra e passa-se a citar que “os regimes nazi e comunista levaram a cabo homicídios em massa, genocídios e deportações e causaram a perda de vidas e da liberdade no século 20 numa escala nunca vista na História da Humanidade, relembrando o crime horrível do Holocausto realizado pelo regime nazi e condenando em termos muito fortes os actos de agressão, os crimes contra a Humanidade as violações em massa dos direito humanos perpetrados pelos regimes nazi, comunista e outros regimes totalitários.”

Ora, todo o contexto ora mencionado é relevante para compreender que Mr Jones é um filme importante porque desde logo ajuda a preencher um vazio sentido há muito no cinema relativamente à natureza totalitária dos regimes comunistas.

Contrariamente ao que se passa com o nazismo e em que o cinema já nos deixou verdadeiras obras primas que vão desde o “Grande ditador” de Chaplin, passando por “Noite e nevoeiro” de Alain Resnais, “A lista de Schindler” de Steven Spielberg e terminando no recente “O filho de Saúl” do cineasta húngaro Lázló Nemes (muito dificilmente se voltará a filmar o Holocausto depois deste filme impressionante), são escassos os filmes que assumiram uma postura crítica face aos regimes comunistas, o que é bem demonstrativo de uma certa indulgência que sempre existiu por parte dos artistas e intelectuais perante a natureza totalitária do comunismo.

Por tão escassos, é quase possível citá-los numa curta lista composta por filmes como “Ninoska” de Ernest Lubitch (o primeiro e talvez mais significativo filme crítico ao regime soviético porque realizado numa altura, 1938, em que ainda era difícil fazer uma tal crítica), “A confissão” de Costa Gravas (as purgas estalinistas na Checoslováquia comunista do pós-guerra), “Terra sangrenta” de Rolland Joffé (o genocídio dos Khmers vermelhos no Cambodja), “O círculo do Poder” de Andrey Konchalowsky (a visão do estalinismo pelo homem que projectava os filmes para as sessões privadas de cinema de Estaline), “Sol enganador” de Nikita Mikhalkov (as purgas estalinistas no terrível ano de 1937) “Reinaldo Arenas” de Julian Schnebel (a perseguição aos homossexuais pelo regime comunista Cubano), “As vidas dos outros” de Florian Von Donnersmark (os últimos anos da RDA pelos olhos de um oficial da STASSI), “Fuga para a liberdade” de Peter Weir (a fuga de um grupo de prisioneiros políticos de um campo de concentração na Sibéria no final da década de 30),“Regresso a Ítaca” de Laurent Cantet (a desilusão do regime cubano em jeito de “Amigos de Alex”) e os mais recentes “A morte de Estaline” de Armano Iannuci (uma sátira à luta pelo poder no círculo íntimo de Estaline após a sua morte) e “A revolução silenciosa” de Larks Kraume (a solidariedade demonstrada na sala de aulas por um grupo de estudantes liceais da RDA para com a revolta húngara de 1956).

Mesmo um cineasta internacionalmente consagrado como é o caso de Andrej Wajda (com dois grandes filmes sobre a Polónia comunista, “O homem de ferro” e o “Homem de mármore”) viu o seu penúltimo filme dedicado ao infame massacre de Katyn (o assassinato de mais de 5000 oficiais polacos pelo NKVD em 1940) ausente do circuito comercial (felizmente que há o DVD).

Mr Jones é o segundo filme que o cinema conhece que centra a sua ação na História do Holodomor e dizemos o segundo porque efetivamente há um primeiro filme realizado há dois anos sobre a fome imposta por Estaline aos ucranianos nos anos 30 – “Bitter Harvest”, com o veterano Terence Stamp, mas que, inexplicavelmente, tal como “Katyn” de Wajda, nunca chegou a entrar no circuito comercial de exibição (até há pouco tempo era possível visionar o trailer no youtube).

Em 1933, Gareth Jones, numa viagem feita à URSS com o objectivo de entrevistar Estaline, nos seus primeiros contactos em Moscovo descobre que qualquer coisa de muito grave se estava a passar na Ucrânia pelo que resolve viajar até lá para tentar descobrir o que é que de muito grave se estaria ali a passar.

Tendo conseguido escapar ao controlador do regime que o acompanhava, Jones percorreu longamente os campos e as aldeias da Ucrânia rural para verificar e testemunhar a catástrofe que se tinha abatido sobre os camponeses ucranianos: a fome.

Jones viu e sentiu na pele os horrores que a fome estava a causar aos camponeses ucranianos numa escala gigantesca e assim que conseguiu sair da URSS (com dificuldade, diga-se) resolveu denunciar na imprensa ocidental a falsidade do regime soviético, um regime que, no seu entender, em vez de trazer a felicidade e bem-estar ao seu povo, estava a deixá-lo morrer à fome.

Mr Jones consegue, com autenticidade histórica, recriar os lugares e os ambientes em que se desenrolou a odisseia de Gareth Jones ( embora o seu posterior encontro com George Orwell provavelmente nunca tenha chegado a ter lugar), odisseia essa que por pouco não o condenou ao ostracismo em virtude de existir muita gente no Ocidente que via com muita simpatia o regime soviético e que pensava que Gareth Jones tinha inventado a fome ucraniana apenas para desacreditar um regime que estaria a fazer maravilhas pelas classes trabalhadoras.

Apesar de o filme ter evitado, por expresso desejo da sua realizadora (uma cineasta polaca), mostrar toda a terrível dimensão desta tragédia, no entanto não esconde aquilo que de mais tenebroso a fome ucraniana teve — o canibalismo.

Contudo, Mr Jones, por se centrar na jornada de Gareth Jones no interior da Ucrânia rural em 1933, não nos revela as causas da fome ucraniana entre 1932 e 1934.

Hoje, sabe-se, sem sombra de dúvidas (e o mais recente trabalho de Anne Applebaum, “Red Famine”, demonstra-o) que a fome ucraniana que teve o seu pico terrível em 1933, não se deveu a razões climatéricas ou a colheitas fracas, mas, muito simplesmente, a uma política deliberada de Estaline e do regime soviético de sufocar a rebelião da Ucrânia rural contra a coletivização da terra e a instituição das chamadas quintas colectivas.

Mais do que em qualquer outro lugar da URSS, foi na Ucrânia que se registou a maior oposição à política bolchevique da colectivização das terras iniciada no final da década de 20.

Os camponeses ucranianos, maioritariamente, recusaram aderir a tal política, como recusaram integrar as quinta colectivas.

O castigo para tal insubordinação acabaria por fazer inscrever na lista dos inimigos do regime soviético uma classe social (o campesinato rural) a aniquilar — os Kulaks, aniquilação essa que, para além das deportações dos insubmissos para outras regiões da URSS, utilizou uma arma que se viria a revelar fatal para os camponeses ucranianos: o confisco de todos os bens alimentares de sua propriedade.

Foi este confisco que acabou por traçar o destino trágico dos camponeses ucranianos: a morte de cerca de três milhões de pessoas, três milhões de pessoas mortas pela fome.

Estaline sabia perfeitamente o que se estava a passar, pois, como assinala Anne Applebaum em “Red Famine” das vezes (poucas, diga-se) em que foi avisado para a tragédia que se tinha abatido sobre os camponeses ucranianos, culpou-os pela situação que estavam a viver pois, nas suas próprias palavras, se os camponeses ucranianos estavam a morrer à fome isso devia-se ao facto de terem recusado acatar a política da colectivização da terra do regime soviético e a sua integração nas quintas colectivas.

Mr Jones pode não ficar para a História do cinema como um filme excepcional, mas é certamente um filme que deve ser visto para nos recordar que, a par da bestialidade do nazismo, há um outro totalitarismo que não pode, de modo algum, ser esquecido.