Os santos são para a Igreja modelos de coerência evangélica que esta valida a alto nível através seu magistério pontifício, mas são ao mesmo tempo a sua consciência crítica. Ao longo dos tempos os santos assumiram-se, silenciosamente ou tonitruantemente, como profetas e espelhos críticos do distanciamento entre a instituição igreja e o ideal evangélico de vida proposto por Jesus Cristo. São referências para a Igreja acertar o caminho nos descaminhos da sua história e também se apresentam, com o seu exemplo, como um ideal de humanização, mostrando um horizonte mais alto e mais profundo de realização à vida dos seres humanos na demanda de sentido.

A canonização de Nun´Alvares Pereira com o nome São Nuno de Santa Maria suscitou uma verdadeira avalanche de publicações que revisitam esta extraordinária figura da história portuguesa e a sua época do fim da Idade Média: os séculos XIV e XV portugueses e europeus.

O Santo Condestável D. Nuno Álvares Pereira

Falar de Nun´Alvares é fazer uma viagem a um tempo conturbado e de gestação de um mundo novo que em breve se iria a revelar. O Século XIV foi marcado por muitos problemas que deixaram feridas graves na história da Cristandade europeia: a peste negra, a guerra dos Cem Anos, as lutas dentro do papado com o drama dos papas e dos anti-papas apoiados e combatidos por diferentes monarquias, a instabilidade social e política devida às lutas dinásticas …

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Nun´Alvares Pereira, que, depois, viria a tomar o nome religioso de Frei Nuno de Santa Maria e que, nos bancos de escola, conhecemos já como o Santo Condestável, nasceu em 1360 em pleno século de um Portugal que procurava consolidar a sua independência e que gerava a matriz diferenciada da sua língua e da sua literatura com as Cantigas de Amigo e de Amor na Corte de D. Dinis. Era um tempo de guerra, de fomes, de barbáries, mas também era um tempo de poesia, de fé e de grandes valores e ideais. Tempo de extremos, que propiciava grandes testemunhos. É neste contexto que se revela um dos mais extraordinários santos portugueses reconhecido, passados sete séculos, no mais alto grau de santidade da Igreja Católica por Bento XVI.

Sendo certo que um santo é filho do seu tempo e do seu país e, portanto, participa das preocupações e desafios do seu povo, também não deixa de ser certo que o fruto da santidade deve transcender a sua época e representar um testemunho com significado universal, capaz de ser digno de inspiração para toda a humanidade. Só com a constatação da dimensão de universidade é que a Igreja pode elevar um homem ou mulher ao mais alto patamar de santificação certificada.

A memória histórica portuguesa apresenta D. Nun’Alvares como um dos seus maiores heróis, cuja acção foi de tal modo importante tanto no domínio político, militar e social que a sua vida e obra tem sido valorizada em diferentes ópticas ideológicas. São Nuno reúne qualidades e valores de um herói universal, que fazem dele uma figura capaz de inspiração para várias gerações, épocas históricas e filiações políticas e culturais.

Notável líder militar e grande estratega, com coragem, valentia e determinação, dirigiu várias operações militares que garantiram a auto-determinação portuguesa em relação à vizinha Castela no quadro da revolução de 1383-85, sendo a batalha de Aljubarrota a mais conhecida peleja que venceu contra o exército espanhol. Politicamente, contribui decisivamente, num momento político em que o Reino de Portugal corria o risco de regressar ao seio da coroa castelhana, para elevar ao trono um rei português, o Mestre de Avis. Aquele que se tornaria D. João I inaugurou uma nova e florescente dinastia, a Dinastia de Avis, que iria, no século seguinte, dar ao país a chamada Ínclita Geração de reis, infantes e navegadores que escreveriam a mais universal página da história portuguesa: o Portugal dos Descobrimentos, construtor da modernidade e da proto-globalização.

Mas esta mudança de actores no governo de Portugal não teve apenas um significado político, mas também social. Representou uma revolução para a época, a chamada primeira revolução portuguesa: favoreceu uma inédita mobilidade social. Numa sociedade de Ordens, controlada pela Alta Nobreza e pelo Alto Clero, Nuno de Santa Maria lidera um movimento que vai permitir àqueles que contavam em segundo e terceiro lugar na hierarquia social – os filhos segundos e bastardos da nobiliarquia, assim como a burguesia comercial – de ascender socialmente e ter lugar na liderança dos destinos do seu povo. Por isso, muitos atribuíram, já na história contemporânea, a Nun’Álvares o estatuto de revolucionário social, sendo admirado por sectores ideológicos surpreendentes, que professavam crenças e ideais diversos dos deste herói medieval.

O Condestável Santo

Como se compreende que aquele que foi elevado ao estatuto de Condestável do Reino, a figura mais importante a seguir o Rei, pelos altos serviços prestados em termos militares e políticos e, portanto, tão embrenhado nas coisas, nos negócios e nos compromissos do mundo tenha sido elevado aos altares pela Igreja Católica como modelo de santidade? Terá sido porque, à semelhança de Santo Agostinho, teria deixado a vida mundana, encerrando-se voluntariamente, nos últimos anos da sua vida, num convento carmelita em 1423, para se tornar o mais humilde dos irmãos e distribuir a sua riqueza pelos pobres e pelos que o tinham servido?

Sim, mas mais do que isso. A Igreja acabou, depois um longo processo de averiguação e de proposição à Santa Sé, por elevar D. Nuno, primeiramente, ao grau de Beato por Bento XV em 1918 e, em 2009, ao grau de Santo por Bento XVI, reconhecendo o Papa a Vox Populi que, desde a época em que viveu o Condestável, falecido em 1431, lhe atribuía prerrogativas de santidade.

Implicado no seu tempo e lutando pelos ideais de liberdade do seu povo, a santidade de D. Nuno afirmou-se pela diferença, pela radicalidade e pela humanidade dos gestos, pelo testemunho da sua fé e pelo sentido de oração em coerência com o Evangelho. Numa sociedade marcada pela guerra, onde a actividade militar era muito valorizada, na medida em que era garantia da protecção e da sobrevivência das comunidades, São Nuno, sendo um exímio guerreiro, pautou-se por uma extraordinária humanidade que fazia a diferença, numa época marcada por muita rudeza e brutalidade. Tratava os seus soldados com afecto e cuidado, repartindo bens e meios, procurava garantir o tratamento digno para os prisioneiros, não permitia que as populações civis fossem brutalizadas, nem as colheitas queimadas, como era prática corrente nas incursões militares do tempo. Rezava e criava momentos de oração para os seus soldados, revelando uma grande devoção a Nossa Senhora, na linha da mais genuína espiritualidade mariológica lusitana.

Tendo-lhe sido doadas imensas propriedades pelo rei como recompensa pelas suas acções militares que salvaram Portugal do apagamento no mapa dos reinos europeus, distribuiu, mesmo antes de entrar para a vida monástica contemplativa, muitos bens por familiares, companheiros, soldados e servos, além de se ter tornado um dos grandes mecenas da Igreja, financiando a construção de templos e conventos, como é o caso do Convento do Carmo, onde se tornaria o porteiro e irmão serviçal.

Sendo o homem mais rico e mais poderoso do reino, quis aceitar o desafio da radicalidade da mensagem de Cristo, fazendo-se o último e o servo de todos. Aqui reside o testemunho de uma vida extrema que o tornou modelo para Portugal, para o orbe cristão e para o mundo.

Afirmou que acima do poder e da riqueza valores mais altos se alevantam, em nome da afirmação da dignidade humana pela sua abertura à transcendência que transfigura e ilumina a história dos homens.

Inspirador permanente da alma e da liberdade do povo português

Se foi canonizado pela Igreja, também a literatura antecipou de algum modo a sua “canonização”, fazendo-o um lídimo protagonista da história de Portugal. Por isso, entre muitos outros, com justiça o mais icónico e clássico dos nossos poetas cantou-lhe os feitos e a vida n’Os Lusíadas, escrevendo no Canto VIII deste modo já canonizante:

“Se quem com tanto esforço em Deus se atreve,

Ouvir quiseres como se nomeia,

Português Cipião chamar-se deve;

Mas mais de Dom Nuno Álvares se arreia:

Ditosa Pátria que tal filho teve!”

E o nosso poeta mais contemporâneo, hoje tão globalizado como Camões o foi durante séculos, Fernando Pessoa, elege na sua Mensagem, Nun’Álvares Pereira como uma das figuras construtoras do “Projeto Portugal”:

“Que aureola te cerca?

É a espada que, volteando.

Faz que o ar alto perca

Seu azul negro e brando.

Mas que espada é que, erguida,

Faz esse halo no céu?

É Excalibur, a ungida,

Que o Rei Artur te deu.

‘Sperança consumada,

S. Portugal em ser,

Ergue a luz da tua espada

Para a estrada se ver!”

Assim, a figura de Nun’Álvares Pereira, a sua vida e a sua fama de santidade, tiveram, ao longo dos séculos, vários usos e significados inspiradores ao serviço da construção da identidade portuguesa, da definição plurissignificativa da legitimação da liberdade do povo português para gerir os seus destinos e até da projeção da sua missão teleológica no contexto mais abrangente da história global da humanidade.

* Nota: Este artigo retoma, atualiza e complementa texto já anteriormente publicado pelo autor.