Cada um de nós conhece sobejamente a volatilidade das relações humanas. A fluidez das comunicações. A sociedade líquida baumaniana incorporada na construção dos compromissos. Todos nós fazemos parte desta existência social enquanto produtos da cultura, mas também compomos este mesmo paradigma de vida. Ou seja, somos ativos naquilo que constantemente criticamos como sendo a falta de uma visão de profundidade sobre as emoções dos seres humanos.

Contudo, nunca tanto se falou de saúde mental e da importância de não só as pessoas, na sua generalidade, atribuírem maior importância a esta dimensão do bem-estar, mas também de se criarem serviços médicos públicos com maiores verbas e especializados nos problemas. No fundo, a saúde é um investimento devido à sua característica holística, dado que se a população estiver bem sentirá mais apoio das instituições e do Estado e será mais produtiva, aumentando a competitividade do país. Toda esta perspetiva multidimensional do funcionamento dos seres humanos e dos seus contextos, que parece já muito antiga, é, na verdade, fruto de uma postura contemporânea de valorização de várias causas e fatores para o entendimento dos fenómenos e processos do mundo.

Ou seja, por outras palavras, jamais, em tempos passados, sentimos a conexão de tal forma entre as coisas da realidade como hoje acontece. Por isso mesmo é tão questionável que o discurso seja de um suposto reconhecimento da centralidade da mudança social e, ainda assim, a prática nos demonstre um egocentrismo progressivamente insuflado. Parece que as condições de vida melhores fomentaram o sonho de que se pode ter tudo e, portanto, de que tudo deve ser nosso, sem respeito pelos limites dos outros, da sua alteridade.

Se apontarmos, por exemplo, para a temática dos relacionamentos amorosos podemos perguntar-nos como é possível que o ghosting seja um acontecimento tão frequente entre pessoas que estão a conhecer-se. É legítimo as pessoas desaparecerem sem deixar rasto? Bem, não é ilegal, mas trata-se de um comportamento profundamente antiético, já que é uma manipulação, uma espécie de jogo cínico com os sentimentos de quem está do outro lado. A Internet, que deveria ser um lugar de democracia plena, promove, todavia, a anarquia afetiva, como se o amor fosse uma selva onde, para não sofrer, temos de causar sofrimento a outrem. Talvez venha daí toda a indiferença contínua dos “Hey/Oi/Olá, tudo bem? Sim e contigo?”, a ausência da originalidade de temas discutidos ou a obsessão pela procura de sexo e da satisfação carnal. Onde todos deveríamos ser mais avessos aos rótulos, e sobretudo num momento em que as minorias que outrora foram discriminadas deveriam mostrar a diferença, cai-se no monótono, no óbvio, no tétrico.

Se há coisa que lamento é que a sociologia não seja uma ciência mais próxima do povo e que não a acionemos com mais frequência nas análises e nos diálogos que temos com a realidade. Poderíamos aprender muito mais com a desnaturalização de mundividências que ainda à data temos como claras quando o seu teor é altamente excludente. Veja-se o caso da educação. Muitas questões podemos também colocar a este propósito: de que forma é que existem miúdos tão jovens a afirmar que o seu partido favorito é o Chega? Que votam nele por acreditarem ser a única força política capaz de mudar o país? Como é plausível que ouçamos alunos descomprometidos com regras de cidadania ameaçando professores, pais e outros colegas? Onde se perdeu a pressuposta capacidade de avaliarmos os indivíduos pelo seu valor de humanidade e não pela cor da pele, crenças religiosas, gostos ou sexualidade? Quando se reduziu o indivíduo a uma única característica que ele apenas manifesta?

A modernidade trouxe aspetos positivos que prometeram e mesmo possibilitaram alguns desenvolvimentos dos países. O crescimento económico, a diversidade de negócios e o início da luta por direitos sociais marcam as últimas décadas do século passado. Mas há valores que não podem permanecer com o rosto dos anos 1900 e a incerteza de uma hodiernidade líquida está a ruir com as fronteiras entre o que é moderado e o que é extremado. Os antigos conservadores prosseguem com o seu cavalgar populista, enquanto os novíssimos radicais respondem de maneira acusatória a um mínimo de divergência que encontram entre opiniões. Assim sendo, lanço uma última questão: quem nos resta no seio de tanta água derramada?

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Mental é uma secção do Observador dedicada exclusivamente a temas relacionados com a Saúde Mental. Resulta de uma parceria com a Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD) e com o Hospital da Luz e tem a colaboração do Colégio de Psiquiatria da Ordem dos Médicos e da Ordem dos Psicólogos Portugueses. É um conteúdo editorial completamente independente.

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