A par dos famosos movimentos de translação e de rotação, que balizam as trajetórias do nosso planeta, detetam-se hoje, ao nível da administração da justiça, sintomas de um avassalador movimento de regressão. Pergunto-me, muitas vezes, sobre o que aconteceria, se refizéssemos hoje a nossa Constituição. Consagraríamos a presunção de inocência? Constaria o direito ao recurso do naipe das garantias do processo criminal? É verdade que a Constituição se mantém imaculada na pureza dos seus valores de referência. Está, porém, no tabuleiro do processo penal, a perder a batalha com a prática.
As pessoas queixam-se, regra geral com razão, da lentidão da justiça. Às vezes julgam-na com alguma injustiça também. Não se apercebem do enorme volume de processos com os quais tem de se haver e a complexidade crescente das questões em conflito. Mas que ela é lenta lá isso é. Procuram-se, de forma sumária, culpas e culpados em debates exaltados e demagógicos. Na área penal a parceria está detetada. A culpa é das garantias e os culpados são os advogados. Porém o cordeiro mais dado em imolação tem sido o recurso.
O recurso é visto como algo a apostatar. Chamam-lhe manobra dilatória, truque ou similar. Injetou-se no debate público uma convicção, que se quer, à força da repetição incessante, transformar em dogma de fé: os recursos são a origem de todo o mal, a fonte de todos os atrasos e o esteio em que assenta o prolongar da impunidade.
Pois bem: garanto a quem me leia, mas garanto mesmo, que, de forma consistente, ao longo das últimas décadas, os recursos têm sido reduzidos, desfigurados e esvaziados de forma continuada. Falo na área do processo penal, mas poderia estender o diagnóstico ao processo civil. Acreditem caras leitoras e caros leitores, porque se pode demonstrá-lo com muita facilidade. Uma ou outra exceção que se encontre, não contraria a regra. O âmbito dos recursos tem vindo a encolher. O momento em que são julgados atrasa-se cada vez mais, por opção do legislador. A faculdade de suspenderem as decisões recorridas também tem mirrado a olhos vistos.
Um artigo de opinião não permite fazer a prova plena do que afirmo. Seria um exercício algo longo, embora bastante fácil. Mas, dificilmente, sem ignorância ou má-fé, alguém poderá defender o contrário. Basta comparar alçadas e efeitos, entre o que seria há trinta anos e aquilo que é hoje. Se a eficácia da justiça crescesse na proporção inversa do extermínio dos recursos, o nosso sistema mostraria vitalidade e pujança imparáveis.
Temos percorrido o caminho errado, embora, pontualmente, com algumas soluções corretas. O recurso é um elemento vital para a definição e funcionamento de um sistema judicial próprio de um Estado de Direito. Não pode estar na lei como um ornamento. Não pode esgotar-se numa coreografia, que nos permita, apenas, louvarmo-nos na contemplação e exaltação de um sistema com garantias de fachada. O recurso visa submeter à apreciação de um tribunal superior, aquilo que, na ótica de quem recorre, terá sido mal visto, mal analisado, mal apreciado. O recurso tem, desse modo, um papel crucial no aperfeiçoamento da justiça em geral, mediante a correção, em cada caso concreto, do que possa ter sido incorretamente julgado. Por isso deve ser assegurado na sua eficácia.
Como ensinou Montesquieu: “Uma coisa não é justa por estar na lei. Mas por estar na lei deve ser justa”. Contaminado pelo vozear constante feito pelo coro do movimento de regressão, também o sistema passou a ser alérgico aos recursos. E trata-os da pior maneira possível, ora administrando medidas cirúrgicas, ora operando numa perspetiva mais global a caminho, se não da sua extinção, pelo menos da sua desvitalização.
O que se percebe com este pequeno exemplo. Cabe à lei tomar sempre uma opção: quando se admite um recurso — e, repito-o, isso tem vindo a ser feito em banda progressivamente mais estreita — em que momento ele segue para o tribunal superior? Logo que é interposto, ou no final do julgamento, isto é, só após a sentença final? Eis a regra agora quase totalitária, a que nós, juristas, chamamos de subida a final. Em consequência, se foi impugnada (por exemplo) uma perícia, se foi impedida a prestação de um depoimento ou rejeitada a junção de documentos em molde que um tribunal superior entenda errados, então, a procedência do recurso, lá impõe que se faça marcha atrás, que se anule total ou parcialmente o julgamento, produzindo-se nova sentença, causando um dano que seria desnecessário, ou que teria uma dimensão bem mais reduzida se o sistema fosse o correto.
Daqui resulta um efeito mais danoso do recurso sobre o julgado e, em consequência, uma maior antipatia para com o instituto. Ora os tribunais superiores existem, basicamente, para corrigirem erros e não podem ser inibidos nessa sua missão pelos estragos que causarão no que já parecia estar arrumado. Mas, na verdade, pretende-se que sejam inibidos. O sistema defende-se dos recursos sinalizando-os como coisa má, reduzindo o seu perímetro, dificultando o seu julgamento e potenciando, deliberadamente, alguma danosidade nos seus efeitos. Por esta última via serão mais odiosos em abstrato e mais odiados em concreto. Mas vai um pouco mais longe, tornando aquilo que deveria ser muito mais rápido e muito mais simples, se fosse baseado na oralidade e nas tecnologias disponíveis (ouvir a prova, debater a prova e decidir com base na prova servida ao tribunal de recurso naquilo que lhe fosse submetido), numa trapalhada legal acerca do modo de recorrer, criando dificuldades em atravessar um labirinto legal e jurisprudencial confuso, oscilante e desigual na sua aplicação, que premeia, claramente, a forma, em detrimento do conteúdo e da celeridade. A lei faz o mal e a caramunha. Cria condições para a inoperacionalidade dos recursos, torna-os serôdios, confusos e pastelões, para depois melhor os tornar proscritos.
Isto para já não aludir ao que se passa no direito de admissão dos recursos de constitucionalidade. Ainda há dias, no Congresso da Ordem dos Advogados, o referi: no paradigma bíblico da dificuldade anunciada, o rico foi substituído pelo recurso e o céu pelo Tribunal Constitucional. Valeria a pena, por isso, reabrir um debate saudável sobre tudo isto, feito com calma, com verdade e com profundidade. Os direitos humanos não estão na moda. O Estado faz-se de sonso, embora seja cada vez mais intrusivo, mais castigador e mais cobrador. Escuta, interceta, apreende, arresta, prende, e tudo o mais que sabemos e conhecemos. Mas diz-se sempre fraquinho, para que lhe demos sempre, confiantes, mais poder. Pois bem: ao poder crescente do Estado deve corresponder a reafirmação das garantias individuais, sob pena de desequilíbrios repugnantes e inaceitáveis nas democracias modernas.
O bom caminho faz-se muitas vezes contra a corrente. Que o digam todos aqueles que lutaram contra as ditaduras. Desta vez não há ditadura, exceto a da demagogia e a do politicamente correto. Mas há liberdade para debatermos. Usemo-la então.
Advogado