Há dias, o economista Jorge Fonseca de Almeida explanou, em artigo no DN, o que pensa da relação dos Portugueses com a sua história e um leitor inteligente escreveu na caixa de comentários desse artigo o seguinte: “Se alguém se dedicar a encontrar um disparate maior do que o aqui expresso, vai sentir muitas dificuldades”. O leitor em causa tem razão. O artigo é um disparate pegado, mas como é muito revelador e eloquente sobre os erros de raciocínio dos que, seguindo o movimento Woke, pensam como Jorge Almeida vale a pena analisá-lo e dar-lhe alguma atenção.

O artigo é sobre o passado colonial português, que o articulista classifica globalmente como crime e relativamente ao qual exige o respectivo arrependimento. Para melhor fazer passar a sua mensagem penitenciadora, Jorge Almeida arranjou uma analogia. Imaginou dois criminosos, A e B, ambos condenados por crimes e a cumprir prisão. Reunido um painel para avaliar se deveria ser-lhes concedida a liberdade condicional verifica-se que o assassino A está muito arrependido do seu crime e pediu perdão às famílias das vítimas; o assassino B, pelo contrário, não mostra arrependimento algum, orgulha-se do seu passado e até possui (e venera) uma réplica em madeira da pistola que usou para cometer os seus crimes. Assim sendo, a decisão do painel é fácil: o criminoso B não merece a liberdade.

Num segundo passo, Jorge Almeida parte desta fábula moral e transpõe-na para o país para constatar que “a extrema-direita e parte crescente da direita portuguesa” são incapazes de se “arrepender dos crimes que o nosso país cometeu no passado”, nomeadamente “a inumana escravização de pessoas” e “o colonialismo brutal e sangrento”. Afirma, até, que essa direita tem “orgulho nesses momentos” e uma “vontade aberta de os repetir”.

Imaginar que uma parte da direita iria, por exemplo, repetir a escravização de negros é do domínio do delírio. Mas deixemos isso e fixemo-nos no erro lógico que é o suposto não arrependimento das pessoas de direita, à maneira do assassino B, porque ele é o típico erro lógico da cultura Woke. De facto, porque é que as pessoas de direita teriam, a título individual, de se arrepender de crimes que não cometeram? Os assassinos da fábula cometeram crimes pelos quais foram condenados. Mas os Portugueses de agora, sejam de direita, do centro ou de esquerda, não os cometeram. Ainda assim, Almeida quer que peçam desculpa por coisas que não praticaram e que, para além disso, nem sequer eram juridicamente consideradas crime em boa parte do tempo em que foram praticadas. Almeida tenta contornar essa dificuldade alegando que o Tribunal Penal Internacional “hoje” considerá-las-ia crime. Mas o século XVII, por exemplo, não é “hoje”; é ontem e um ontem a grandíssima distância de nós.

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Esse abismo temporal, cultural, histórico, que os partidários do movimento Woke anulam, constitui o principal erro da sua visão dos acontecimentos passados. Jorge Almeida erra a tal ponto, que censura o facto de os livros escolares ensinarem as nossas crianças “a admirar homens” que fizeram coisas que hoje em dia condenamos. Em quem pensará Almeida? Em Afonso de Albuquerque? Não nos diz, mas também não é preciso.

O que importa responder-lhe e aos que pensam como ele é que essa é justamente uma das coisas que se ensina aos alunos na disciplina de História, isto é, que hoje não é ontem, que as coisas mudam e mudaram, que aquilo que actualmente é inaceitável se defendia ou tolerava no passado, e vice-versa. Que uma criança francesa, por exemplo, pode admirar Napoleão ainda que ele tenha sido o responsável político e militar pela devastação de vários países e pela morte de muitos milhares de pessoas. E se os alunos tiverem idade para compreender, explicar-lhes, igualmente, que o movimento Woke, obcecado com as injustiças sociais e raciais e incapaz de pôr as coisas em perspectiva, quer anular a história, normalizá-la, betumar-lhe as irregularidades, cobri-la, pudicamente, de um lençol higienizado, imaculado, sem a mínima mancha ou rasgadura.

Isso leva-nos aos erros históricos que abundam no artigo. Jorge Almeida fala em crime e exige arrependimento. Aparentemente não se dá conta de que relativamente à escravatura esse arrependimento, o arrependimento dos detentores do poder político, já aconteceu no século XIX, ou seja, a partir do momento em que as sociedades ocidentais começaram a encarar o tráfico e a escravização de seres humanos como actividade nocivas e criminosas — o que até então não faziam — e que foi também por isso que lhes puseram fim, classificando-as, de então em diante, como crimes contra as gentes. O tráfico transatlântico de escravos, por exemplo, acabou definitivamente em 1867. Não morreu de morte natural, foi esmagado por aqueles que, arrependidos de o ter praticado, tinham passado a considerá-lo um comércio iníquo, odioso e impolítico. O arrependimento que Jorge Almeida nos exige já aconteceu, como mostrei num artigo de 2017, no Público, mas o articulista não o terá lido, ou, então, é estanque ou refractário aos argumentos que aí desenvolvi, e resolveu vir chover no molhado com quase 200 anos de atraso, pondo-se a  pregar a convertidos, o que é um disparate.

Mas há, no seu artigo, um disparate ainda maior, tão grande que roça a mistificação. De facto, aí afirma que alguns Portugueses (os da extrema-direita e de partes da direita) se orgulham da escravatura e que isso é, de certa forma, uma herança cultural do Estado Novo que, “para justificar o colonialismo” teria construído “toda uma mitologia histórica de orgulho no esclavagismo e na opressão de outros povos”.

Mas que ficção é esta? Em que planeta viveu e vive Jorge Almeida? Alguém no seu perfeito juízo se orgulha da escravatura? Ninguém o faz agora nem no tempo do Estado Novo nem antes dele. Ninguém o fazia no passado, na época em que a escravatura era praticada. Ela era geralmente entendida como um mal necessário, um mal menor, algo triste, mas que se podia aceitar no estado do mundo e que poderia, até, vir a ter alguns aspectos positivos para todas as partes envolvidas. A escravatura não era motivo de orgulho. Era, isso sim, algo que se tolerava, ainda que se lamentasse.

A escravidão e o tráfico de escravos foram legalmente abolidos e, depois, efectivamente suprimidos com mais ou menos vontade e dificuldade. Os Estados que os praticavam mudaram de conduta. Mas para os arautos e militantes do movimento Woke nada disso vale. É como se esses factos nunca tivessem existido. E é por isso que os vemos, ansiosos, a bater insistentemente ao guichet da história e a pedir uma segunda via do arrependimento. Não o confessam, mas o que de facto querem não é arrependimento, é uma nova abolição acompanhada de reparações sociais e materiais.