Recentemente, Sérgio Sousa Pinto lembrou-nos que «vivemos numa série de ideias feitas. Por exemplo, a mania de que as pessoas preferem liberdade à ditadura; a mania de que as pessoas preferem a democracia a um regime autoritário». Feliz ou infelizmente, os estudos comprovam que Sousa Pinto está correto. Há um crescimento do descontentamento com a democracia e há uma procura por regimes autoritários.

Não é surpreendente que as representações liberais – que se edificavam sobre a ordem política e que garantiam a defesa do direito à diferença – estejam a cair. Por outras palavras, não é de admirar que exista uma dissolução do traço liberal das nossas democracias liberais. Mas será que isto acontece porque vivemos a acreditar que as pessoas querem a democracia liberal quando na verdade isso é uma mera ilusão, como defende Sousa Pinto?

1 Se para cada ação há uma reação, podemos perceber que a afirmação de vozes cidadãs não liberais e não democráticas não passa de uma reação às crescentes tendências anti-liberais e anti-democráticas dos mediadores políticos. Portanto, não só as pessoas não são necessariamente alinhadas com a dinâmica demo-liberal, como as elites governativas e os representantes políticos não são alinhados com esse mesmo regime.

E quando assim é, não existe uma relação necessária entre os representados e os representantes, os governados e os governantes. Pode acontecer que a crescente atitude crítica da democracia e do liberalismo não apareça por mimesis dessas tendências não democráticas e não liberais dos que estão em cima, mas porque os que estão abaixo se revoltam naturalmente e potencializam respostas autoritárias às tendências totalitárias, anti-liberais e/ou anti-democráticas dos que estão acima.

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Um importante alicerce do carácter liberal da nossa democracia é a existência de uma fronteira entre a esfera político-estatal e as esferas apolíticas da existência humana (social, económica, cultural, religiosa, etc.). No entanto, tendo em conta que todos os problemas são potencialmente políticos, vemos que os seres humanos têm uma natural tendência para a politização das esferas anteriormente apolíticas e é essa uma das dificuldades da coexistência entre a democracia e o liberalismo.

Por conta disso, da natural tendência para tudo politizar e para dissolver todas as esferas apolíticas, verifica-se a identificação democrática entre Estado e Sociedade que fomenta a politização total da existência (social) humana. Desfazem-se esferas apolíticas com a ideia de que a Sociedade é opressora e generaliza-se a ideia de que a igualdade imperará.

Com a ideia de que a igualdade imperará, esquece-se que não existe a possibilidade de igualdade sem diferença. O que acaba por acontecer é que a desigualdade – que estaria na esfera política, na qual passa a imperar a igualdade – transita para outra esfera da vida humana (a esfera económica, por exemplo). Outra consequência a listar é o favorecimento da divisão interna dessa sociedade e a sua fragmentação em grupos contrapostos.

Politizar tudo quanto existe com vista a homogeneizar politicamente leva-nos a um efeito natural: a criação de mecanismos de neutralização que permitam realizar a impreterível despolitização e recuperar esferas e âmbitos da vida livres. Esses são os mecanismos que aparecem maioritariamente sob a forma de autoritarismos – dos quais falava acima – sustentados pelos que são, no fundo, oprimidos.

2 Observamos que hoje, volvidos quase 50 anos desde que Portugal se tornou uma democracia liberal, desde que o governo está do lado do povo, desde que terminou tudo que oprimiu o português, desde que se restituiu a dignidade humana em Portugal, o liberalismo está em crise.

A última manifestação escandalosa desta crise foi feita pelo ministro da “cultura” que esqueceu o seu lugar na esfera político-estatal e penetrou virilmente, como se de um herói salvador se tratasse, no espaço apolítico da vida social. Pedro Adão e Silva investiu-se do direito de decretar o que é a dignidade humana no nosso país ao defender que o espetáculo feito por uns anões espanhóis que fogem de vacas e fazem rir o povo “é atentatório à dignidade humana”. Por si só, dá para rir mais a ler o que Adão e Silva diz do que a imaginar os anões profissionais a dar um show… Mas a questão torna-se séria.

Enquanto Pedro Adão e Silva defende os anões espanhóis, que não precisam de ajuda nenhuma, apelando à noção de dignidade humana, esquece-se da dignidade humana dos portugueses trabalhadores da cultura. O ministro defendeu no Parlamento que “não podemos ter como ambição acabar com todos os vínculos precários da cultura, isso não é desejável” e que “a precariedade em muitas situações não é um mal absoluto”. Portanto, o ministro recebeu uma bazuca e, embora não lance com ela anões pelos ares, bombardeia com cortes orçamentais o Instituto do Cinema e do Audiovisual (apontados pela deputada Diana Ferreira) e legitima a precariedade dos trabalhadores culturais que têm contas para pagar todos os meses (e impostos também).

Aos anões que vêm de Espanha, Pedro Adão e Silva diz para não trabalharem porque as suas profissões são um atentado à dignidade humana. Aos que em Portugal fazem parte dos 47 projetos do programa Garantir Cultura com pagamentos em atrasos, se bem entendo, o ministro propõe que se desenrasquem, sendo que a precariedade é uma solução plausível para qualquer outro que queira fazer parte da cultura. Mas onde é que fica a dignidade dos que estão por cá?

Tratar o povo que sempre fez festa na sua aldeia como se esse povo fosse antipovo fortalece o discurso daqueles que realmente unem os interesses do povo contra o verdadeiro antipovo: aquele que não aceita a capacidade individual que cada um tem para se afirmar autonomamente e defender a sua dignidade humana, bem como para agir livremente. O antipovo é o que não reconhece o direito de ser, não é o que se ri daquele que é.

Se estas declarações de Pedro Adão e Silva fossem um braço de ferro entre o ministro da cultura e o Presidente dos Bombeiros Voluntários de Benedita que pagará aos espanhóis, o caso passaria despercebido. No entanto, esta postura anti-gentes, com a qual o Estado intervém para condicionar o pensamento sobre as questões, tem sido a postura assumida pelos representantes da maioria absoluta no Parlamento.

Mais uma vez, eis porque faz sentido o que Sérgio Sousa Pinto disse, e eis porque vale a pena pensar duas vezes, na senda do que disse Henrique Monteiro, antes de preferir um vegan da cultura a um bêbado culto: o vegan podia ser um Hitler e o bêbado podia ser um Churchill.