A universidade portuguesa atravessa hoje um momento crítico de autossuficiência intelectual que progressivamente a afasta da verdadeira essência do conhecimento: a ligação com o mundo real. Transformou-se num ecossistema hermético onde teorias abstratas são perpetuadas por gerações de académicos que raramente transpuseram os muros institucionais.

O sociólogo francês Pierre Bourdieu já denunciava como as instituições educativas funcionam como máquinas de perpetuação de estruturas sociais dominantes. Neste contexto, a universidade não seria um espaço de democratização do conhecimento, mas um mecanismo de reprodução de hierarquias intelectuais desconectadas da realidade social.

O estudo da OCDE revela uma situação preocupante em Portugal, onde cerca de 40% dos adultos apenas conseguem compreender textos simples e realizar operações aritméticas básicas. Numa avaliação comparativa entre 31 países, os portugueses ficaram quase no último lugar em literacia, numeracia e resolução de problemas, superando apenas o Chile. Os dados mostram que 42% da população tem um nível muito baixo de literacia, com apenas 4% demonstrando alta capacidade de compreensão textual e apenas 2% apresentando habilidades elevadas de resolução de problemas.

A pesquisa destaca um problema estrutural na educação portuguesa, onde os sistemas de educação e formação de adultos não estão a preparar adequadamente as pessoas para os desafios do mundo moderno. O foco excessivo em certificações académicas, em detrimento de qualificações práticas e aplicáveis, criou um afastamento significativo entre o conhecimento teórico e as competências necessárias no mercado de trabalho. Esta desconexão entre a realidade socioeconómica e as decisões políticas baseadas em estudos académicos abstractos tem resultado em gerações de profissionais mal preparados para enfrentar as complexidades dos ambientes de trabalho contemporâneos.

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O problema reside na reprodução de um ciclo vicioso onde professores são recrutados não pela sua experiência profissional ou capacidade de integrar saberes práticos, mas pela sua própria origem institucional. Segundo um estudo publicado em 2023 pela Direção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência, 68% dos docentes e doutorados que ocupam posições de carreira nas universidades públicas doutoram-se na mesma instituição em que lecionam, confirmando esta prática de endogamia. São especialistas em citações, mas desconhecedores de contextos; mestres em desconstruir, mas incapazes de construir.

Os indicadores internacionais de avaliação educacional, nomeadamente os testes PISA e TIMSS, expõem uma realidade preocupante: o sistemático declínio do desempenho académico dos estudantes portugueses. No lugar de uma investigação rigorosa e isenta que identifique as causas estruturais deste fenómeno, o que se verifica é a elaboração de narrativas interpretativas condicionadas por interesses político-partidários, cujo propósito parece ser mais o de minimizar responsabilidades do que efetivamente compreender os mecanismos de tal regressão.

Recentemente, participei de um webinar organizado pela Direção-Geral de Educação que ilustrou perfeitamente esta desconexão. Fiquei estupefacto ao constatar como se defendia obstinadamente a ausência de monitorização externa no sistema educativo. Argumentava-se pela eliminação de mecanismos de avaliação objetivos, como exames ou provas de aferição, com peso na classificação, em final de ciclo, sustentando uma lógica de aprovação automática que ignora completamente o real processo de aprendizagem.

O conhecimento académico não pode ser um exercício autorreferencial, mas deve ser necessariamente dialógico e transformador. A academia deve ser um espaço de comunicação e interação, não um bunker de teorias abstratas.

O impacto mais nocivo desta desconexão académica surge quando esses “intelectuais de escritório” conquistam poder decisório nas esferas políticas. Instalou-se uma lógica demagógica onde o “direito à aprovação” se sobrepõe à verdadeira aprendizagem, criando um mecanismo de certificação artificial que nivela o conhecimento por baixo, eliminando a rigidez necessária dos processos avaliativos tradicionais.

As escolhas curriculares recentes revelaram-se particularmente prejudiciais ao fragmentarem o Ensino Básico, desvalorizando disciplinas consideradas estruturantes em nome de abordagens pretensamente interdisciplinares, desprovidas de profundidade académica. Sob o discurso de tornar o ensino “interessante” e “adaptado” às supostas preferências dos alunos, criou-se um modelo que secundariza o rigor científico.

Tomemos o exemplo do webinar: a defesa de instrumentos como os RIPA e REPA, ignorando completamente o seu contexto de aplicação, os constrangimentos práticos dos professores e a real implementação, demonstra uma cegueira institucional preocupante.

As provas de aferição, por exemplo, são apresentadas como instrumentos neutros, quando na prática são percebidas por professores, alunos e pais como meras formalidades burocráticas. Os relatórios produzidos estão inevitavelmente enviesados, considerando a rotatividade constante de professores e a falta de condições para uma análise contextualizada.

A perspetiva de que os exames em final de ciclo representam um retrocesso mascara, na verdade, uma visão demagógica e perigosa que prioriza números sobre qualidade. Trata-se de uma interpretação criativa daqueles que defendem uma democratização artificial do ensino, onde o objetivo principal é maximizar o número de alunos que chegam ao ensino superior, independentemente das suas reais condições intelectuais. O verdadeiro retrocesso reside precisamente nesta lógica de “via verde educacional”, onde o esforço, o mérito e o empenho pessoal são completamente desconsiderados.

Não há sentido em se orgulhar de enviar 100 alunos para a faculdade se apenas 10 possuem o conhecimento mínimo para aproveitar essa oportunidade. A excelência educacional não se mede pela quantidade, mas pela qualidade da formação. Retrocesso é não ser exigente, é transformar a educação num processo de aprovação automática que nivela o conhecimento por baixo, é considerar a retenção como um conceito antiquado, quando na realidade ela representa uma ferramenta fundamental de desenvolvimento e responsabilização académica. A verdadeira democratização do ensino não consiste em fazer todos passarem, mas em oferecer condições reais e rigorosas para que cada aluno possa desenvolver plenamente o seu potencial.

Precisamos urgentemente de uma revolução no modelo de recrutamento académico. Não basta o conhecimento livresco; é fundamental valorizar profissionais com percursos diversificados, que tragam experiências do mundo empresarial, social e cultural.

As instituições contemporâneas devem ser flexíveis e capazes de se reinventarem constantemente. A universidade não pode ser um repositório estático de conhecimento, mas um organismo vivo e adaptável.

A solução passa por uma abertura radical: valorizar percursos profissionais diversificados, criar mecanismos de avaliação externa sérios, promover intercâmbios constantes entre academia e tecido social, e sobretudo, cultivar uma humildade intelectual que reconheça que o conhecimento verdadeiro nasce da interação com o terreno, com a realidade, não do isolamento.

É preciso ouvir mais quem está no terreno e menos quem não sai do gabinete. O país precisa de especialistas que saibam “meter a mão na massa”, que compreendam a complexidade real dos desafios educativos e sociais.

Nos últimos 20 anos, assistimos a uma espiral descendente onde especialistas produzem estudos alinhados com afinidades ideológicas, e responsáveis políticos se desculpabilizam em vez de assumir verdadeiras reformas estruturais.

É tempo de transformar a universidade de um templo de teorias abstratas num laboratório vivo de ideias, práticas e transformações reais.