Recentemente o meio cultural voltou a agitar-se para exigir mais subsídios. Praticamente ninguém discutiu o que significa fazer cultura hoje, que objetivos civilizacionais se alcançam e, sobretudo, que retorno tem a sociedade de tais investimentos?

Que a criação cultural é importante, decisiva para a evolução social, todos o sabemos. A par da preservação do que foi feito pelos nossos antepassados, a criação cultural de cada época é o seu espelho, mas também um elemento fundamental na abertura dos caminhos de futuro. Uma das mais importantes missões das artes é antecipar o que pode ser. Ideia que se torna uma evidência a partir do modernismo e, para os mais ativos criadores, um verdadeiro programa de ação cultural.

Na era dos computadores, da Internet e da Inteligência Artificial, não se pode pensar a criação cultural sem perceber a alteração radical que se operou nas nossas sociedades nas últimas décadas. Não se pode certamente continuar a fazer cultura com base nos pressupostos do século 19, nem sequer já do século 20.

Robots pintores na exposição “Artistes et Robots”, Grand Palais, Paris

A recente evolução científica e tecnológica coloca a humanidade perante desafios nunca antes experimentados. De que o prolongamento da vida, a manipulação da mesma, a possibilidade de se criarem entidades tão ou mais inteligentes do que nós, são destacados exemplos. Estes avanços carecem de enquadramento cultural, no sentido, em que este fornece a orientação ética e de destino da espécie humana, sem o qual nos arriscamos a caminhar para o desastre. Veja-se o caso da Inteligência Artificial. Às mãos do mero desenvolvimento tecnológico estamos a construir máquinas autónomas com capacidade letal. Um dia podem virar-se contra nós.

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Quanto mais o conhecimento científico e tecnológico avança mais precisamos da cultura artística, enquanto visão aberta, livre e independente de interesses conjunturais. Mas não de uma criação disparatada, irrelevante, infantil.

A criatividade artística pode não ser objetiva como a ciência, mas tem um objeto claro: enquadrar o conhecimento no melhor interesse da humanidade como um Todo. É, aliás, uma das poucas atividades em que a humanidade é entendida como Espécie e não como mera acumulação de partes. Por isso Shakespeare, Leonardo da Vinci ou as máscaras africanas são universais. E milhões de pessoas correm aos Museus para as ver. Ou seja, para ver a humanidade no melhor da sua capacidade criativa.

Infelizmente, a chamada cultura contemporânea perdeu esta noção. Na generalidade dos casos, resigna-se hoje a banais, repetitivas e derivativas expressões sem qualquer interesse, sem capacidade de influência na educação geral, na formação dos mais jovens e, ainda mais grave, sem contribuir para a orientação civilizacional. A criação cultural banalizou-se, cedendo na maioria dos casos ao entretenimento, ao decorativo, quando não à estupidez arrogante.

Por outro lado, um errado entendimento de que as artes são o oposto da ciência, quando na verdade são complementares e mais do que isso simbióticas, conduziram a uma cultura contemporânea conservadora, reacionária mesmo no seu frequente e declarado antagonismo ao conhecimento científico. A tecnofobia domina os meios artísticos, assim como muitas instituições que se dedicam à divulgação cultural. É certo que tem menor expressão na música dada a natureza técnica da mesma, mas é endémica nas artes visuais, no teatro, dança, etc.. Em resultado, para além do entretenimento, temos uma criação cultural contemporânea incapaz de suscitar interesse público, manifestando-se frequentemente como fomento da ignorância.

Precisamos de uma criação cultural realmente contemporânea, informada, atualizada, ativa na conversa sobre o nosso futuro comum. Precisamos de uma política cultural dinâmica, visionária, promotora da colaboração entre as artes e as ciências, porque essa é a única forma de garantir que a evolução científica e tecnológica se mantém no campo das utopias e não derrapa para as distopias. As artes são fundamentais para definir a orientação da evolução tecnológica. Porque, na sua componente verdadeiramente criativa, não decorativa ou anedótica, têm uma ambição que excede os interesses pontuais do mercado e o conservadorismo do que está instalado. As artes, no seu melhor, são uma permanente construção e reconstrução do mundo. Pela sua radical liberdade, são a componente do conhecimento que gera as visões de que se faz o futuro. Desse modo são também um contributo essencial para a inovação em muitos domínios, decisivo no design e na produção empresarial.

Mas não é com um Ministério da Cultura antiquado, sem visão, que não reconhece relevância à aplicação tecnológica nas artes que se consegue alterar o comportamento do meio artístico e das instituições que o apoiam. E não é certamente simplesmente com mais subsídios que isso se consegue.

Artista