Nunca tive problemas de identidade de género, mas sim de espécie e de etnia. De espécie porque gostaria de ser ave, para me poder deslocar por via aérea e não ter de pagar impostos. E de etnia porque sou branco, ou caucasiano, como agora se diz dos desgraçados que não têm a sorte de ser de nenhuma minoria étnica, ou espécie protegida. Mesmo sendo duro de ouvido e caixa-de-óculos, nem sequer pertenço à privilegiada minoria que, à conta das suas deficiências, tem direito a um lugar de estacionamento privativo na via pública.

Que significa, hoje, ser branco? Pois bem, em princípio ter a culpa de todos os malefícios da civilização ocidental. Se eu fosse africano, era uma vítima por direito próprio e poderia lamentar por esse mundo fora a desventura da escravatura, da opressão, do colonialismo, do imperialismo, das descobertas, da evangelização, etc. Mas sendo como sou, é óbvio que sou um opressor, um colonialista, um mercador de escravos, um imperialista, etc.

Se ao menos fosse uma jovem sueca com pouca vontade de estudar, gosto em velejar e queda para a pieguice, podia percorrer os fóruns internacionais – consta que em breve, se vai estrear no parlamento português! – choramingando a minha infância roubada e os meus verdes sonhos desfeitos. Com efeito, são conhecidas as imensas dificuldades em que vivem as jovens escandinavas, ao contrário da escandalosa opulência das adolescentes sírias, nigerianas, paquistanesas, sudanesas, etíopes, venezuelanas, etc. Como adulto, eu sei que sou o principal responsável pelas alterações climáticas, pela extinção dos ursos polares, pelo aquecimento global, pelos plásticos que inundam os oceanos, pelo buraco do ozono e pela subida do nível da água do mar.

Tenho também o infortúnio de pertencer a uma família normal: o meu pai não era alcoólico, nem batia na minha mãe, em cujo caso eu seria um coitadinho inimputável, com direito a selfie presidencial e visita ministerial, à conta dos traumas de uma infância desgraçada. Talvez até pudesse invocar uma terrível herança genética, que me fizesse impune de qualquer tropelia e me desse direito a viver do rendimento social de inserção, como qualquer honesto subsídio-dependente.

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Para maior desgraça, sou cristão, ou seja, representante da inquisição, das cruzadas, da fé cega que sempre lutou contra a razão das luzes, das trevas de mil anos que impediram o desenvolvimento da civilização ocidental, até ao seu glorioso ressurgimento, por virtude e graça da revolução francesa e, sobretudo, da guilhotina. Sim, fui eu que queimei, na fogueira da intolerância religiosa, Giordano Bruno e Joana d’Arc e calei, para sempre, Galileu, que se atreveu a dizer que não era o sol que girava à volta da terra, mas o contrário. E, através do Index, censurei todas as obras-primas do livre pensamento.

Pior ainda, sou padre. Ora, é sabido que esta gente é, segundo a comunicação social, do piorio. Um qualquer engenheiro comete um crime e, na imprensa, a sua profissão e título académico são silenciados, a favor de uma genérica alusão à sua condição masculina (homem/indivíduo) e idade (sexagenário, etc.). Mas se um sacerdote for acusado de um hediondo crime, mesmo sem qualquer fundamento, como recentemente aconteceu com um pároco da diocese de Setúbal, é certo e sabido que a comunicação social publicitará a sua condição sacerdotal. Mas depois, quando se apurar a sua absoluta inocência, como já aconteceu, fará o favor de nada dizer.

Ora bem, a Comissão para a Igualdade e contra a Discriminação Racial (CICDR), do Alto Comissariado para a Imigração e Minorias Étnicas, da Presidência do Conselho de Ministros, na sua “Posição sobre referências a nacionalidade, etnia, religião ou situação documental em notícias a partir de fontes oficiais e em meios de comunicação social”, de 10 de Abril de 2006, expressamente recomenda aos media que “evitem na construção de notícias, a referência a nacionalidade, etnia, religião ou situação documental, sempre que esta não seja um eixo explicativo do essencial da notícia” (nº 2).

Ou seja, se um conjunto de pessoas de uma determinada minoria, ou etnia, ataca um posto da GNR, ocupa uma esquadra da PSP ou invade um quartel de bombeiros, a imprensa não deve revelar a sua nacionalidade, raça, religião ou situação documental. Seria portanto politicamente incorrecto dizer que um ciclista, com o cartão de cidadão caducado, atropelou uma idosa; ou que um ateu praticante exerce como carteirista no eléctrico nº 28; ou que um caixeiro-viajante de Minde, etnia que até tem um dialecto próprio, se dedica à contrafação; ou que um empresário apache tem dívidas ao fisco.

Portanto, o que está a dar é ser minoria. Ora, os cristãos são, obviamente, uma minoria em termos globais, e os padres uma espécie em vias de extinção, que carece, por isso, da proteção da CICDR. De facto, os católicos, enquanto povo de Deus e súbditos do Papa, que é o chefe do Estado do Vaticano, têm uma nacionalidade própria e são equiparáveis a uma comunidade de imigrantes. Por outro lado, pelo baptismo, pertencem à ‘raça’ dos filhos de Deus e poucos têm a situação documental em dia (sobretudo as contas com Deus Nosso Senhor). Portanto, a CICDR, tal como fez em relação aos africanos e roma, aliás ciganos, deve obrigar a imprensa a não denunciar a condição cristã dos protagonistas das notícias que constroem – é o termo empregue no documento citado! – por vezes, diga-se de passagem, com grande criatividade…

Há, contudo, uma excepção, em cujo caso a referência cristã ou sacerdotal não deve ser silenciada: quando essa condição é o “eixo explicativo do essencial da notícia”. Seria o caso de um padre que se embebedou com vinho de missa, ou de uma beata que, violando a lei seca, fabrica e comercializa, clandestinamente, água-benta.

Se, porventura, a CICDR não permitir a equiparação dos fiéis católicos, leigos e clérigos, a uma minoria étnica a proteger e salvaguardar dos ataques mediáticos, aviso já que me declaro africano-descendente. É, aliás, muito provável que o seja, porque tudo indica que o primeiro casal humano surgiu em África e, portanto, todos somos originariamente africanos. É verdade que tenho a tez clara, mas não é óbice, porque também há africanos albinos, que são até mais brancos do que eu. Ou então, à conta do meu reincidente nomadismo – nasci na Holanda, vivi no Brasil, na Grécia, em Espanha e Itália e, em Portugal, já residi em Braga, Coimbra, Porto, Oeiras e Lisboa! – assumo-me, com muita honra, cigano!

NOTA. Com este texto não se pretende justificar a injusta discriminação de nenhuma etnia ou minoria, nem desconsiderar a escravatura, o alcoolismo, a violência doméstica, a Inquisição, os deficientes ou os beneficiários do rendimento social de inserção. Apenas se chama a atenção para a forma como alguma imprensa discrimina os cristãos, sobretudo os sacerdotes católicos.