No passado dia 1 de maio, foi publicado, no jornal em linha do Observador, um artigo assinado por dois professores, Alberto Veronesi e Susana Mendes. Consoante a forma como está escrito, poderia ser uma peça de ficção de muito mau gosto, a começar pelo título A inclusão pedagogicamente “assassina”. No entanto, como os próprios autores do artigo fazem questão de ressaltar ao leitor, a história que irá ler “não é ficção”.

Apresentam a descrição de uma criança imigrante, com diagnóstico do Espectro do Autismo, que, por razões óbvias, não compreende nem fala português. Segundo os autores da matéria não ficcional: “No primeiro dia do seu ‘despejo’ na escola, correu pelos corredores, rebolou no chão, bateu nas paredes e portas que encontrou, entrou pelas salas, atirou-se para o chão, gritou, chorou, mordeu e bateu em todos os professores e auxiliares que a queriam ajudar.

Se alguém já teve a oportunidade de ver o filme L’enfant sauvage (O menino selvagem), de François Truffaut, de 1970, conseguirá estabelecer semelhanças com as descrições acima. Tal analogia, contudo, limita-se ao enredo apresentado pelos autores do artigo. A criança desta história real é de origem nepalesa e não é um menino selvagem, ainda que seja esta a ideia que os professores em questão desejam transmitir ao leitor do seu texto. A escola, os professores e os auxiliares, por sua vez, desempenhariam um papel mais nobre, são os “civilizados”, que tentam suplantar a “animalidade” desta criança. Afinal, nada que seja muito humano e que revele comportamentos disruptivos poderá existir ou mesmo ser visível nesse local chamado Escola.

Entende-se, ainda que absurdamente, a perceção dos professores que assinam o artigo. Têm o direito de expressar a opinião acerca do seu local de trabalho. Contudo, extrapolam esse direito quando, no intuito de reafirmar valores pessoais ou relevantes à sua categoria profissional, expõem o caso dramático de uma criança, e sua família, como um sofismo contrário a valores humanos conquistados, como o direito de estar em sociedade.

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Alberto Veronesi e Susana Mendes afirmam já não saber se na escola ensinam ou “se nos arrastamos penosamente como escravos das idiotices pedagógicas portuguesas, as do século XXI.” O Decreto-Lei (DL) 54/2018, para esses professores, seria uma dessas “idiotices pedagógicas portuguesas do século XXI”. Uma conclusão com a qual não podemos compactuar. Será que não percebem que, com esse argumento, acabam por sugerir a regressão das políticas de inclusão às medidas adotadas até há pouquíssimo tempo, que relegavam às pessoas com algum grau de incapacidade e ou transtorno cognitivo e mental os subterrâneos da existência? Caros professores Veronesi e Mendes, o degredo, a humilhação em praça pública e o total descaso das autoridades para com estes também não foi “ficção”.

Já próximo do final do texto, somos surpreendidos com este apodo: “Restam os outros 24 alunos, ‘excluídos’ pela ‘inclusão’ frustrada de uma aluna com PEA (perturbação de espectro de autismo).” Este, sim, é um argumento falacioso e realmente cruel. Responsabilizar uma criança porque políticas públicas não foram implementadas adequadamente? Responsabilizar a vítima pela falha do Estado, das suas Secretarias, das Autarquias e, nomeadamente, da Equipa Multidisciplinar de Apoio à Educação Inclusiva – EMAEI – e dos profissionais dessa escola? Afirmar que “os idiotas úteis pariram o Decreto-Lei 54/2018” é de um equívoco e de um desconhecimento inadmissível – porque são mestres em educação! – das lutas de pais, associações e das próprias pessoas diretamente implicadas pelo direito à visibilidade e à existência social e cívica. Em 1994, a Declaração de Salamanca, sobre os princípios, as políticas e as práticas na área das necessidades educativas especiais, apenas oficializou uma luta antiga. O DL 54/2018 é um reflexo desse processo, bem como da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência das Nações Unidas, de 2006.

A nós, Pais em Rede – Associação, formada por pais de pessoas com algum tipo de incapacidade, o artigo de Alberto Veronesi e Susana Mendes, se não tivesse cometido os enganos apontados, poderia ter representado uma voz de quem está no dia a dia da escola a tentar fazer o melhor para o bem de TODOS. No entanto, a linguagem selvagem conferida ao relato de um caso específico – de uma criança que, ainda que não possuísse qualquer perturbação neurológica e de desenvolvimento, está na condição de estrangeira neste país, vem de outra cultura e agora está num mundo que ainda lhe é, no mínimo, estranho – dissuade-nos desta perspetiva de sensibilização para os desafios que os profissionais enfrentam nas escolas. Porém, não é pelo modo de expressão de uns que vamos deixar de ter empatia para com todos os que tentam fazer, diariamente, a inclusão dos nossos filhos no contexto escolar.

Dois professores da rede pública do ensino em Portugal assinam um texto cujas marcas linguísticas revelam preconceito, desinformação, estereótipos acerca do autismo – usando-o como qualificador negativo em “pedagogicamente autista” – e xenofobia. É muito triste perceber que, em pleno século XXI, num Estado de Direito, numa Democracia, com tanta informação, inúmeras organizações e meios de inserção social, ainda nos deparamos com uma visão docente, a nosso ver, pedagogicamente assassina.

A Pais em Rede – Associação existe em Portugal desde 2008, graças ao empenho de uma mãe, de outros pais, técnicos e amigos. Possui o estatuto de IPSS desde 2010 e de ONGPD desde 2014. Pretendemos mobilizar toda a sociedade para a causa comum da inclusão, em linha com a defesa dos direitos humanos, preconizada pela Convenção dos Direitos das Pessoas com deficiência. Tel. 213 960 176 e 937 407 473, email: geral@paisemrede.pt, internet.