Começou por demorar dias a responder a uma mensagem. Depois deixou de atender o telefone. Quando finalmente consegui falar com ele, percebi que o Hugo, o meu amigo mais divertido, aquele que tinha sempre uma piada pronta e animava toda a gente com uma alegria contagiante, estava, afinal, deprimido.
Percebê-lo não foi muito difícil, até porque os sintomas eram óbvios e estavam escancaradamente à vista: angústia, falta de esperança, mas, sobretudo – e isto é que o denunciou naquele telefonema – um desinteresse em relação a tudo e a todos, uma negligência que eu nunca lhe notara em vinte anos de amizade.
Deste lado, soaram campainhas. Não só porque consigo reconhecer os sinais mais evidentes de uma depressão – por tê-los visto repetidamente tomar posse do corpo e da alma de muitas pessoas da minha vida – mas também porque, do lado de lá da linha, o Hugo ficou em silêncio quando lhe sugeri que procurasse ajuda. Ficou em silêncio e, nesse silêncio, disse-me tudo o que naquele momento o estava a atormentar. E eu aproveitei para redobrar atenção e apurar o ouvido. Porque é na ausência de palavras que, muitas vezes, se escuta uma depressão. É ouvindo hesitações e lágrimas mudas que (também) se alcança o mundo do outro.
Mas isto, claro, não foi com o Hugo e muito menos naquele telefonema que eu aprendi. Foi algo que fui percebendo ao longo dos anos, à medida que me cruzava com a doença, quando esta se derramava e sufocava pessoas que eu conhecia, desde as mais próximas às mais distantes. Acima de tudo, com todas estas pessoas, tive a possibilidade de perceber uma coisa: que a depressão é, com toda a certeza, um dos sítios mais negros onde alguém pode ir parar, e é também um dos mais difíceis de ser percebido por pessoas que, como eu, nunca lá entraram.
Lembro-me que, há uns anos, o Hugo partiu uma perna. Andou cheio de dores, em bolandas nos médicos, e precisou muito que amigos e família o ajudassem. A coisa demorou e complicou-se, teve até de ser operado, mas tudo acabou por se resolver com gargalhadas pelo meio. Com a depressão não foi assim e um dia ele explicou-me porquê: “Isto não é uma perna partida, é uma tristeza que não tem fim. É uma angústia que pesa como se houvesse um pé a pisar-me o peito, sempre, todos os dias. Tenho medo de nunca mais conseguir sair disto.”
Quem lida de perto com pessoas com depressão, provavelmente já ouviu inúmeras variantes desta frase. E o que se sente é sempre o mesmo, por mais livros que se leiam, investigação que se consulte ou especialistas que se oiçam: uma impotência enorme. Uma forte sensação de incapacidade e limitação.
Acompanhar alguém com depressão é precisamente um dos maiores treinos em impossibilidade humana. Isto porque o que mais queremos é que o outro consiga viver na medida exata que nós sabemos ser possível, e que ele próprio conseguia antes de o negrume tomar conta dele.
Ouvir e acompanhar a dor, a angústia e o desespero, e pouco poder fazer para o aliviar, é um exercício duríssimo. Sobretudo porque é inevitável que nós, os que estamos ao lado, queiramos muito (e às vezes queremos mesmo muito, com tanta força que acabamos por fazer mais mal que bem) que os nossos amigos, companheiros, pais, irmãos, colegas de trabalho, apreciem o pôr do sol, que se riam com as piadas que lhes contamos, que tenham vontade de fazer caminhadas à beira-mar e que queiram ir ao almoço de família ou ao jantar da empresa. Queremos isto tudo, mesmo que saibamos que não apreciam, não querem, não têm vontade, não conseguem.
Não conseguem.
Mesmo que não tenham partido nenhuma perna, não conseguem.
Aceitar este facto com o coração é, para quem ama e se preocupa, uma tarefa muito difícil, ainda que haja total compreensão racional da situação. Da mesma maneira que, para quem sofre de depressão, sentir-se desamparado pode ser trágico, ainda que estar sozinho seja exatamente aquilo que mais quer e precisa.
Complexo, portanto.
Ao longo destes anos, aprendi que quando se diz que é preciso combater o estigma que existe associado à depressão estamos a falar de vidas concretas, de nomes verdadeiros de pessoas reais que não encontram um espaço para estar doentes nesta sociedade atual, onde só a alegria, a gargalhada e a perfeição têm encaixe.
São pessoas que não conseguem viver por inteiro num mundo onde se habita em função da quantidade de atividades realizadas, de sítios visitados, de amigos acumulados, de partilhas feitas nas redes sociais ou da capacidade de se ser o mais divertido do grupo. São pessoas que não assumem a depressão nos locais de trabalho nem junto dos amigos, porque receiam ser olhados como se estivessem quebrados. Porque quebrados é como se sentem.
E, sim, o estigma ainda é grande. Caso contrário, esta crónica seria muito diferente. É que, para preservar e proteger todas as pessoas da minha vida que atravessam ou atravessaram esse lugar chamado depressão, não há aqui nomes verdadeiros. Porque, claro, o Hugo não é o Hugo. Mas a história do Hugo é real e, infelizmente, muito idêntica à de tantas pessoas que todos nós, com toda a certeza, conhecemos bem.
Andreia Vieira é licenciada em Comunicação Social e mestre em Comunicação, Cultura e Tecnologias da Informação. Escreve e investiga sobre saúde há mais de vinte anos, primeiro como jornalista e atualmente como produtora de conteúdos e medical writer.
Mental é uma secção do Observador dedicada exclusivamente a temas relacionados com a Saúde Mental. Resulta de uma parceria com a Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD) e com o Hospital da Luz e tem a colaboração do Colégio de Psiquiatria da Ordem dos Médicos e da Ordem dos Psicólogos Portugueses. É um conteúdo editorial completamente independente.
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